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Greve no serviço público: regulamentar ou proibir?

Projetos que tramitam no Congresso põem em debate o direito de grevedos servidores públicos. Pesquisadores apontam que, historicamente, a regulamentação tem sido uma tentativa de restringir o direito.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 28/11/2012 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Talvez você não tenha percebido, mas esta revista tem uma periodicidade diferente: abarca quatro meses e não apenas dois, como é de costume. Isso porque quando a edição anterior deveria estar sendo preparada, os trabalhadores da Fiocruz, junto com mais de 30 outras categorias, participavam de uma das maiores greves da história recente do serviço público federal. Os trabalhadores que paralisaram por mais tempo foram os professores universitários que chegaram a ficar quatro meses em greve.

Para alguns, essa greve foi comemorada como uma importante demonstração de força e capacidade de articulação dos trabalhadores. Para outros, foi condenada como uma irresponsabilidade com a população usuária dos serviços públicos. Já o governo federal, que é o ‘patrão' da história, resolveu ir além da crítica e mobilizou esforços para regulamentar o direito de greve dos servidores púbicos de uma forma que os sindicatos têm considerado restritiva e pouco democrática. Esse direito foi garantido pelo artigo 37 da Constituição Federal que, no entanto, precisa ser regulamentado por lei específica. Na ausência dessa regulamentação, desde 2007 o Supremo Tribunal Federal (STF) tem utilizado a lei 7783/1989, que trata da greve no setor privado, como parâmetro para a situação do funcionalismo público.

Batalha no congresso

Logo após essa recente greve, a primeira tentativa do governo federal foi aproveitar o Projeto de Lei do Senado (PLS) 710/2011, de autoria do senador Aloysio Nunes (PSDB-SP), que "disciplina o exercício do direito de greve dos servidores públicos". O projeto foi analisado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado, onde recebeu parecer favorável do senador Pedro Taques (PDT-MT). De lá, seguiria direto para a Câmara dos Deputados. Mas esse processo, que garantiria uma rápida tramitação, foi interrompido pelo senador Paulo Paim (PT-RS), que requereu que o PLS fosse analisado também pela Comissão de Direitos Humanos - da qual ele é presidente - e pela Comissão de Assuntos Sociais. "Se eu não fizesse isso, esse projeto não iria nem a debate no Senado. O meu projeto está aí há 20 anos e não se quis votar. Agora, tira-se um projeto da cartola e querem votar em uma única comissão e mandar para a Câmara?", questiona o senador. Paim é autor do Projeto de Lei do Senado (PLS) 83/2007 que tem o mesmo teor do projeto que ele apresentou na Câmara em 1988. "Eu fiz aquele projeto na época porque já temia que os setores conservadores pudessem tentar proibir o direito a greve", explica.

Segundo Paim, o governo desistiu desse caminho e deve enviar ao Congresso um novo projeto, elaborado pelo Executivo. "Se vier, eu vou pedir para apensar o meu, que é mais antigo. Vamos fazer audiências públicas e ouvir a sociedade. Não dá para querer votar uma matéria delicada como essa do dia para a noite", avisa.

Regulamentar ou proibir?

Uma das maiores polêmicas do projeto 710/2011 é o artigo que estabelece percentuais mínimos de servidores que devem permanecer trabalhando durante a greve. De acordo com a proposta, nas atividades consideradas essenciais, 60% dos servidores ficam impedidos de paralisar as atividades; no caso dos serviços relacionados à segurança pública, esse número sobe para 80% e, mesmo nas áreas consideradas não essenciais, 50% dos funcionários precisam continuar trabalhando. "Isso não é greve. Significa que 80% vão trabalhar e os outros 20% vão ficar sem direito a nada", avalia Paim. O projeto do senador petista delega aos próprios trabalhadores a organização de escalas que deem conta dos serviços considerados essenciais.

A definição do que deve ser considerado atividade essencial é outro ponto nada pacífico nessa discussão. O projeto de Aloysio Nunes elenca 21 áreas essenciais. O de Paim identifica apenas as urgências médicas, necessárias à manutenção da vida. Mas mesmo essa definição mais ampla não é consenso entre as centrais sindicais. A CSP-Conlutas, composta em sua maioria por entidades representativas do funcionalismo público, por exemplo, defende que a lei não deve citar nenhum serviço essencial. "O que era essencial 20 anos atrás não é mais hoje. E certamente daqui a 20 ou 30 anos serão necessárias outras adaptações. Por isso, achamos que a essencialidade deve ser definida na mesa de negociação. Numa greve, devem funcionar as áreas que, de comum acordo, governo e servidores entendam como essenciais naquele momento", explica Paulo Barela, da Secretaria Executiva da CSP-Conlutas. E exemplifica: "Nunca se deixou de atender um cidadão que precisava de hospital de emergência porque se estava em greve; nunca se deixou de liberar uma carga perecível que serviria ao abastecimento da população no porto por causa de greve".

Essa central sindical defende que nem era preciso uma nova lei para regulamentar o direito de greve dos servidores públicos, entendendo que a Constituição Federal daria conta, desde que se combinem o artigo 9 e parte do artigo 37. O artigo 9 assegura o direito de greve em geral e estabelece que compete "aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender". Já o artigo 37 diz, no inciso VI, que "é garantido ao servidor púbico civil o direito à livre associação sindical". Mas o entendimento geral de que é preciso regulamentar se dá pelo inciso VII, que diz que "o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica". "Para nós, a regulamentação está na própria Carta Magna. Até porque, em geral, a lei ordinária é contaminada por aspectos conjunturais. Se uma lei de greve for votada agora, certamente vai estar contaminada por essa greve poderosa que fizemos. E isso subordina a liberdade de associação aos interesses políticos", opina Barela. Marcelo Badaró, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), que estuda sindicalismo, também ressalta os riscos dessa regulamentação. "A greve é um direito constitucional. A sua ‘regulamentação' é a previsão de sua limitação. Todos os exemplos de ‘regulamentações' do direito de greve que conhecemos no país sempre tentaram cercear ao máximo o exercício do direito", explica. Mas completa: "Porém, as lutas da classe trabalhadora muitas vezes derrubaram na prática esses dispositivos legais. Pela lei, a greve dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo em 1978 e todas as milhares de greves que se seguiram naqueles anos derradeiros da ditadura nunca teriam existido". Embora defenda que é necessário algum tipo de regulação, para que não se perca o critério de "interesse público", Roberto Véras, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), concorda com a análise: "A tentativa de ‘disciplinar' o direito de greve não é nova no Brasil. As classes dominantes, seja na condição de empregadores, seja na condição de representantes do Estado, não cessam de tentar controlar, impedir, desmobilizar, cooptar, ignorar as lutas dos trabalhadores, incluindo os servidores. Os contextos mudam e as estratégias também".

Mas o fato é que, no contexto atual, o entendimento jurídico é de que a regulamentação do artigo da Constituição é necessária. E, por isso, há dezenas de projetos tramitando no congresso sobre esse tema. Embora, no Senado, o projeto de Paulo Paim seja o que hoje faz mais frente ao de Aloysio Nunes - que as centrais sindicais consideram muito restritivo -, Barela aponta o PL 4532/2012, da Câmara, de autoria do deputado Policarpo (PT-DF), como o mais avançado. De fato, o texto é menos específico no que diz respeito à essencialidade: garante que durante a greve devem ser atendidas as "necessidades inadiáveis da sociedade", mas não as nomeia. Além disso, diz que o exercício da greve deve ser autorregulado pelas entidades sindicais.

Conflito de direitos?

A definição do que é atividade essencial remete ao principal argumento contrário à greve do funcionalismo público, aquele segundo o qual o direito de greve estaria em conflito com o direito da população aos serviços, principalmente aqueles considerados ‘sociais', como saúde e educação. "Existem características peculiares do trabalho no âmbito do serviço público que tornam o disciplinamento do exercício do direito de greve uma tarefa delicada. Em primeiro lugar, porque existe o princípio administrativo de base constitucional da continuidade dos serviços públicos", justificou Aloysio Nunes em discurso ao Senado.

Renato Lessa, professor da UFF, que se manifestou publicamente de forma crítica à recente greve nas universidades, é um dos que identificam esse conflito. "Embora a greve seja uma coisa a que os trabalhadores de um modo geral podem recorrer, essa cultura de greve é, do meu ponto de vista, nociva, porque interrompe o serviço público, deixa centenas de milhares de estudantes meses sem alternativa para suas rotinas. E isso é uma contradição, porque um fundamento do movimento sindical dos docentes é que a universidade pública, gratuita e de qualidade é um direito dos brasileiros. Mas uma greve como essa interrompe o usufruto desse direito", analisa.

Para Marcelo Badaró, esse argumento é "falacioso". "As greves no serviço público sempre defenderam a melhoria das condições salariais e de trabalho como parte da melhoria do serviço público em si. Por exemplo, quando os profissionais de saúde paralisam um hospital para exigir salários dignos e condições de trabalho, estão defendendo o usuário da saúde pública , que morre por falta de hospitais, leitos, médicos, remédios, etc.", diz.

Roberto Véras reconhece que "o enfrentamento dessa situação não é simples". "Há tanto uma tensão constitutiva na condição do sindicalismo do serviço público quanto uma exploração de tal potencial por parte da mídia e governos. Assim como também há inabilidades das vanguardas sindicais que concorrem para acirrar o problema. Da parte do sindicalismo, é preciso saber se utilizar de formas de lutas diversas, evitando a greve até onde for possível", opina.

Já Paulo Paim não identifica esse conflito de interesses como especificidade do setor público. "Se esse princípio for verdadeiro, como vamos ter greve no setor de alimentação? Vamos proibi-lo também, porque fere o direito dos outros. Se estou produzindo uma máquina importante numa metalúrgica, eu feri o direito de outro porque aquela máquina não vai chegar", exemplifica, e completa: "A greve é um instrumento extremo que o trabalhador sabe que usará sofrendo as consequências de ter um resultado positivo ou negativo e de ter que enfrentar um debate com a opinião pública. Isso faz parte do jogo democrático".

E essa ‘conta' que os servidores públicos em greve precisam acertar com a sociedade é sempre considerada pelos governos, na avaliação de Paulo Barela. "O governo, em geral, deixa a greve rolar 20, 30 dias para começar a negociar. Isso é uma tática para desgastar o movimento junto à população", diz. Por tudo isso, Roberto Véras acredita na necessidade de aperfeiçoar o diálogo com diversos setores. "É preciso saber explorar melhor as possibilidades de comunicação que as novas mídias oferecem, para estabelecer pontos tanto junto às bases sindicais como junto à população", avalia.

Pertinência e eficácia

Renato Lessa, que acha que "a população odeia os servidores públicos quando eles fazem greve", também destaca a importância da comunicação, mas como um caminho anterior e substitutivo à greve: "A alternativa é um trabalho de convencimento da sociedade, da imprensa, dos órgãos de opinião pública sobre a importância da universidade para o país, para a pesquisa científica, para a inovação". Não é por acaso que o professor trata especificamente da universidade: além de ser seu local de inserção e experiência, ele acredita que trabalhos diferentes, mais voltados para habilidade manual ou intelectual, por exemplo, requerem estratégias de reivindicação distintas. "O movimento sindical, desde os anos 1980, vem construindo uma identidade alternativa dos professores universitários como trabalhadores, sem levar em conta essa dimensão simbólica e estratégica fundamental, que talvez fosse um capital importante a explorar numa eventual reivindicação. Mas hoje o discurso sindical é um discurso obreísta, de chão de fábrica", analisa.

Fazendo um panorama histórico, Roberto Véras conta que a greve como instrumento de reivindicação surgiu com a "afirmação" do capitalismo industrial. Mas, ao longo do século XX, assistiu-se também à expansão do setor de serviços e à "ampliação das funções do Estado", que incorporou "amplos contingentes de assalariados". "Assim, a greve passou de uma forma de luta originariamente operária para um recurso de segmentos de assalariados, manuais e intelectuais, qualificados e não qualificados, do campo e da cidade, do setor privado ou público", explica.

Público e privado, corporativo e político

No discurso em que apresentou o PL 710/2011 ao Senado, Aloysio Nunes argumentou: "A greve é uma forma de o trabalhador pressionar o patrão, fazendo com que, cessando o trabalho, cesse a produção e, portanto, cesse a geração de lucro. Ora, diferentemente, no caso do serviço público, o patrão é o governo, mas quem paga a conta e quem sofre as consequências da interrupção da prestação de serviço é o público em geral, o contribuinte que, muitas vezes, não tem rigorosamente nada a ver com o conflito instaurado". Exemplificando com o caso da universidade, Marcelo Badaró discorda inteiramente dessa linha de argumentação. "A greve no serviço público não pode ser confundida com a lógica da greve no setor privado, que visa gerar prejuízo e pressionar os patrões. Na universidade, as greves são muito mais importantes por potencializarem o debate e mobilizarem setores expressivos dos trabalhadores e estudantes que nelas atuam, como ainda por esclarecerem parcelas da sociedade para o embate entre projetos governamentais e o sentido público que as instituições devem preservar para que a educação superior possa vir a ser um direito de todos", analisa.

Na raiz desse debate está uma compreensão dos objetivos das greves e do movimento sindical, especialmente no setor público. Véras, por exemplo, identifica que as "vanguardas sindicais" ligadas ao funcionalismo, em geral, assumem um discurso mais radical do que os sindicatos do setor privado. Nessa ‘radicalidade' estaria contido um objetivo que costuma ir além das pautas corporativas.

Essa é exatamente uma das características da atuação do movimento sindical universitário na recente greve do funcionalismo público que Renato Lessa critica. "Se a perspectiva for construir uma unidade dos trabalhadores contra o capitalismo, para construir o socialismo, o sindicato tem razão. Mas não é assim que eu penso o papel da universidade. Então, o sindicato tem que assumir publicamente que está politizando e que tem finalidades que vão além da universidade. É legítimo que questões como o mau funcionamento de laboratórios, carência de bibliotecas e defasagem salarial sejam tratadas por um discurso amplo, de características revolucionárias?", questiona. E completa: "A política é feita pelos partidos, pela sociedade civil. Greve é greve".

Véras explica que essa tensão entre "interesses imediatos" e "objetivos gerais", "corporativos" ou "de classe", "pragmáticos" ou "ideológicos" se resolve de forma diferente de acordo com o contexto. "Uma oscilação mais para um lado ou para o outro depende do momento, da tradição sindical, das correntes à frente da situação, do ânimo e disposição dos trabalhadores, entre outros fatores", explica, e traça um panorama do caso brasileiro: aqui, diz ele, tivemos lutas sindicais mais políticas nos anos 1970 e 1980, no contexto da ditadura militar, maior pragmatismo na década de 1990 e ambiguidade no governo Lula, nos anos 2000. "Já no governo Dilma, a luta sindical parece estar ganhando novo fôlego", aposta.