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Há futuro para a democracia no Brasil?

Pergunta norteou o grande debate do 4º Congresso Brasileiro de Política, Planejamento e Gestão da Saúde e foi respondida pelo cientista político Renato Lessa e pela sanitarista Sonia Fleury
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 26/03/2021 15h40 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

Em meio à pandemia, pensar no futuro se tornou uma tarefa bastante difícil para a maior parte das pessoas. Pensar no futuro do país, então, nem se fala. Mas para tarefas complexas – e urgentes – como esta existe as ciências humanas. E o grande debate do 4º Congresso Brasileiro de Política, Planejamento e Gestão da Saúde foi uma oportunidade de entender exatamente sua importância.

O evento promovido pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) entre os dias 23 e 26 de março contou com dois representantes de peso para dar conta da questão: Renato Lessa, professor associado de filosofia política da PUC-Rio e investigador associado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, e Sonia Fleury, pesquisadora do Centro de Estudos Estratégicos (CEE/Fiocruz).

Ampliando a definição de democracia

Renato Lessa começou sua exposição explicando que a democracia não é apenas uma forma de governo, mas uma “forma de vida” que envolve várias dimensões. Ele brincou dizendo que a culpa pela ideia que aprisiona a democracia dentro da moldura de regime político é dos próprios cientistas políticos, mas convidou os ouvintes a olharem para a história, pois foi depois da Segunda Guerra Mundial que se cimentou o que entendemos hoje por democracia.

Para início de conversa, a democracia combina, segundo ele, uma dimensão socialista com a tradição liberal”. Da primeira a democracia herdou o tema dos direitos sociais inscritos na agenda da sociedade a partir da presença de partidos comunistas, socialistas, etc. Já da tradição liberal, a democracia herdou a ideia de Estado de direito e um conjunto robusto de direitos civis que são limites à ação do Estado nas escolhas dos cidadãos. E também uma terceira dimensão social: o homens e mulheres são iguais, ricos e pobres são iguais, o povo é soberano.

Nesse sentido, surge o primeiro paradoxo, pois a democracia se universalizou em sociedades de mercado capitalistas – o que a torna, na análise de Lessa, um “experimento complexo e dotado de instabilidade”, pois tem que lidar com interesses contraditórios e às vezes antagônicos entre si.

Além disso, continuou ele, a experiência democrática inclui também a existência de um espaço público habitado pela diversidade das formas de organização social que não são nem Estado, nem indivíduos. Entram aí, por exemplo, a imprensa e os produtores culturais. “É uma espécie de repertorio imaginativo no qual perspectivas de sociedade brotam, um espaço reflexivo no qual o senso crítico dos cidadãos é estimulado, é onde as informações circulam e, portanto, a credibilidade das informações é fundamental”, explicou.

Nesse sentido, continuou Lessa, quando alguém diz que as “instituições estão funcionando” – ou que não estão funcionando – a frase é reducionista tanto por confundir instituições com os três poderes da República, por exemplo, quanto por dar a falsa noção de que instituições “são eletrodomésticos conectados a uma tomada”.

“Instituições são valores decantados, podem mudar. São experimentos do tempo, não são formas eternizadas e podem ser reinventadas a partir dos próprios valores que as colocaram no mundo. A possibilidade da perda ou degradação da experiência democrática não é simplesmente o risco de um experimento politicamente autoritário. É a dissolução de uma forma de vida que envolve todas essas dimensões”, analisou.

E o Brasil?

Dito isso, Renato Lessa passou à análise da situação brasileira. Para ele, aí também cabe uma introdução: “A democracia brasileira já era imperfeita, incompleta e criticável antes de 2016 e de 2018, sobretudo porque não cumpriu expectativas. Mas não há nada de errado nas expectativas que ela suscitou”.

Mas ele reconhece que em 2016, e depois em 2018, as ameaças à democracia se abateram “em uma escala inaudita, comparável a 1964”. “Com isso minha intenção não é comparar com o passado, mas destacar que o processo vai na contramão dos elementos constitutivos da nossa experiência democrática”. Nesse sentido, o cientista acredita que está em marcha um “experimento de destruição” fundado na desmontagem de toda a malha normativa que configura a sociedade.

“A eleição de um extremista para a Presidência abala qualquer tradição democrática, não é um fato da conjuntura ou ciclo político na rotatividade normal da ocupação do poder em uma democracia eleitoral. O conteúdo dessa irrupção traz dentro de si elementos de destruição do tecido democrático”, considerou.

E continuou: “Toda sociedade civilizada é organizada por dimensões abstratas, simbólicas que defendem uma boa forma de viver. O marco constitucional abriga essas definições. Se você for ler a Constituição Federal, ela é cheia de abstrações, mas sem isso é a vida dura, a educação pela pedra, seres humanos reduzidos a uma dimensão animalesca que não podem ser pensados como sujeitos de direitos”.

Por isso, a ideia de que o Estado não tem o que fazer diante de mortes – e que as mortes são inevitáveis, “um fato natural” que de acordo com ele ficou flagrante durante a pandemia, vai de encontro às bases da teoria do Estado lançadas no século 17 com a obra de Thomas Hobbes, segundo a qual o Estado foi inventado para dar um horizonte de previsibilidade e de proteção aos seres humanos diferente do estado de natureza.

“Além de todo drama sanitária e humano, é um cenário no qual podemos observar os valores de uma forma de condução do país que reivindica a destruição e destoa da ideia tradicional de fascismo, no exemplo italiano, a ideia do fascismo era colocar a sociedade toda dentro do Estado. Nós estamos iniciando um experimento no qual se trata de expulsar a sociedade do Estado, institucional e normativamente. Quem faz a política indigenistas são os garimpeiros, quem faz a política agrária são os grileiros”, exemplificou.

Para ele, a ideia é que em nome de um estado de natureza constituído por sujeitos desiguais a sociedade “seja solta” da estrutura normativa – já que supostamente esta seria a “realidade da sociedade, enquanto o campo dos direitos seria ficcional”.

“O bolsonarismo se alimenta dessa promessa de uma sociedade entregue a si mesma. Há uma dimensão libertária, de libertar-se dos males normativos – e dar armas tem a ver com essa dimensão de uma sociabilidade selvagem”, interpretou.

O futuro

Para Renato Lessa, nunca antes o presente foi tão “crucial” para que se imagine o futuro. “Como saber o que vai acontecer em 2025 sem saber o que vai acontecer em 2022?”, destacou.

A possibilidade de radicalização está na mesa, segundo ele. “A questão aqui é: na hora em que eventos dramáticos vierem a acontecer como as forças da ordem brasileira vão se comportar? Como as instituições policiais vão se comportar? As Forças Armadas também fazem parte dessa incógnita. Há muito blefe, a sociedade não é inerte, há movimentos na sociedade e na própria política que mostram vetos, mas [a radicalização] é uma possibilidade”, alertou.

No longo prazo – ou “tempo posterior”, como caracterizou o cientista –, o desafio ficará por conta do “processo de desbolsonarização da sociedade”.
“O bolsonarismo é uma forma de vida, tem um animal próprio, o Homo bolsonarus, o homem novo da revolução reacionária. Violento. Violência sempre houve, mas encontrara no bolsonarismo um mito de coagulação”, concluiu.

Uma análise da conjuntura

Para a sanitarista Sonia Fleury, a Reforma Sanitária brasileira captou a democracia como forma de vida quando formulou o slogan: “saúde é democracia, democracia é saúde”. “Ou seja, não haveria saúde a não ser que houvesse um patamar civilizatório que correspondesse – e que agora está sendo destruído. E destruído com apoio popular”, notou. 

Para ela, as “instituições não estão funcionando” desde 2016 – a despeito de quantas vezes se repita essa frase. E deixar de lado “todos os problemas que essas instituições mostraram depois do golpe” faz parte do processo de corrosão da democracia brasileira. 

Ela colocou em destaque certos movimentos contraditórios na sociedade, como o fato de a mídia comercial – que “dia e noite atacava o SUS” – ter se dobrado na pandemia ao conhecimento científico produzido pelas instituições de ensino públicas e pelo próprio reconhecimento internacional que o sistema público universal de saúde brasileiro tem em âmbito global. “A mídia hoje fala com epidemiologistas, tem que ouvir da OMS que o SUS é exemplo”, citou.

Outros movimentos listados por ela vêm do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional. “O STF vetou a candidatura Lula, agora revê. O próprio Centrão começa a mostrar, depois da carta dos empresários, mostra que pode se afastar, mas eles foram responsáveis por toda a calamidade sanitária e política e pela destruição da malha normativa”, criticou a sanitarista.

Em relação à carta de banqueiros, empresários e economistas que começou a circular no último final de semana, Sônia Fleury acredita que o conteúdo não traz novidades – e chegou com atraso de um ano. Para ela, o timing se explica porque “o caos no sistema de saúde chegou à área privada e eles também não podem ir para a Europa”.

Diante dessa conjuntura, a esperança fica por conta do SUS e de como o sistema mostrou na prática a possibilidade de concretização do federalismo presente na Constituição Federal.  “O federalismo tem um sentido e orientação, que é acabar com a pobreza, promover a democracia. O SUS avançou enormemente nesse sentido gerando um novo modelo federativo. Uma arquitetura institucional com enorme capilaridade, sob o princípio da universalidade”, analisou.

Por fim, a sanitarista compartilhou sua crença de que a sociedade brasileira pulsa, principalmente através das novas sociabilidades construídas nas periferias: “As esperanças vêm das cidadanias insurgentes, das pessoas que pegam todos os dias ônibus lotados, os novos navios negreiros, para ir ao trabalho e ainda assim conseguem desenvolver formas próprias de solidariedade, de ajuda mútua e de representação política. Tenho otimismo no funk, nas mulheres negras, nos movimentos de favela, nas mandatas coletivas e nas novas formas de existir”.