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Isolamento obrigatório

Há menos de cem anos, esse era considerado o único meio de combater a hanseníase. Nas colônias, pacientes reconstruíam suas vidas, formavam famílias e aprendiam trabalhos – inclusive na área da saúde
Raquel Torres - EPSJV/Fiocruz | 01/05/2009 00h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

"Eu fui ao ginásio saber o resultado das minhas provas e da prova de Aeronáutica que eu havia feito. Eu havia passado nas duas. Estava contente, no caminho de volta para casa, indo contar à minha família, quando um homem me mandou parar a bicicleta diante de uma casa que havia sido transformada em um centro de saúde, ou qualquer coisa assim. Encostei a bicicleta ali no meio-fio e disse: 'Pois não, o que o senhor deseja?', 'Vem aqui um pouquinho...'. E eu estranhei, porque ele estava de luvas... Eu estava sozinho, tinha 15 ou 16 anos. Entrei na saleta, e o cara falou: 'Você é um leproso... e não vai mais sair daqui, seus remédios chegam hoje à tarde'. Eu disse: 'Então deixa eu avisar minha família'. E eles responderam: 'Não!'”.

Essas palavras são de Fuad Abílio Abdala – um ex-paciente de hanseníase internado em 1935 contra a sua vontade – em depoimento às pesquisadoras Laurinda Rosa Maciel, da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e Maria Leide de Oliveira, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mas poderiam ser de milhares de outros brasileiros que, no início do século XX, diante de qualquer suspeita da doença, precisavam deixar suas casas e famílias e partir para um hospital-colônia destinado a esse fim.

Para manter essas instituições funcionando deveria haver, em tese, uma série de profissionais contratados para cuidar da saúde dos pacientes, da alimentação, da limpeza dos ambientes e de toda a estrutura local. Mas, de acordo com Laurinda, isso se tornou difícil: não havia muita gente disposta a trabalhar nos hospitais-colônia e esses funcionários começaram a exigir um salário maior, com uma espécie de adicional por insalubridade. “E a estrutura era cara. Era preciso manter a alimentação, os medicamentos, a vida social dos pacientes, e não havia orçamento que comportasse isso tudo para que os hospitais funcionassem da forma como foram concebidos”, conta Laurinda. Então, com o passar do tempo, os próprios pacientes se tornaram responsáveis por determinadas funções, de acordo com suas aptidões. Embora houvesse médicos especializados na doença – então chamados leprologistas –, era comum que o cuidado fosse feito pelos próprios pacientes.

Dona Maria Junqueira, uma das pacientes que não foram embora de sua colônia quando acabou o isolamento, é exemplo disso: ela foi internada em 1942 no hospital Tavares Macedo, em Itaboraí. E foi lá que aprendeu, ainda jovem, a executar funções de técnicos em enfermagem, como fazer curativos. Hoje, aos 90 anos, ela lembra: “Tudo começou quando um médico foi acometido pela doença e internado no mesmo hospital que eu. Aos poucos, os pacientes que desejavam e que levavam jeito para o trabalho iam aprendendo com ele a fazer os tratamentos que eram usados na época”. Em 1952, Maria Junqueira mudou-se para o hospital de Curupaiti, no Rio de Janeiro, onde continuou exercendo seu trabalho até meados dos anos 1980. De acordo com Laurinda Maciel, histórias como essa estão presentes em diversas regiões do Brasil.

Política de isolamento

No Brasil, políticas públicas de combate à doença baseadas no isolamento tiveram seu auge nos anos 1930 e 1940. No entanto, o primeiro hospital brasileiro criado para essa finalidade surgiu ainda em 1744 – era o Hospital dos Lázaros do Rio de Janeiro. A exclusão social por conta da hanseníase – ou lepra, como era chamada no país até os anos 1970 e ainda é no resto do mundo – é tão antiga quanto a própria doença: a Bíblia narra o horror que se tinha aos doentes e na Europa, durante a Idade Média, houve milhares de leprosários construídos para isolá-los.

O isolamento foi praticado, durante muito tempo, devido à ausência de tratamento e à falta de informações precisas sobre a forma como se dava o contágio. Apesar de tratamentos químicos eficazes terem sido descobertos nos anos 1940, o isolamento compulsório continuou a ser ancorado por lei no Brasil até 1962, quando o decreto nº 968 o revogou.

E nem sempre as pessoas internadas tinham, de fato, o que hoje conhecemos como hanseníase: qualquer mancha ou erupção na pele podia ser denunciada e levar ao isolamento. Fuad Abdala, autor do depoimento do início desta matéria, foi internado por causa de manchas na pele que não eram da doença e pegou hanseníase depois de passar anos dentro de um hospital-colônia.

Laurinda conta que muitos dos hospitais-colônia eram verdadeiras cidadelas, com a reprodução das instituições e da vida social presentes nas ‘cidades sadias’: havia igrejas, correios, prisão, cinema, teatro, hospital, bailes, criações de animais, carnaval. Via de regra, havia pavilhões separados para mulheres e homens solteiros. Era possível casar dentro das colônias, com permissão da diretoria, e os casais podiam sair desses pavilhões e viver em outras casas. Mas os filhos de pacientes eram separados dos pais logo ao nascer, e eram transferidos para uma outra casa chamada ‘preventório’. As visitas eram permitidas, mas nesses momentos pais e filhos tinham que ficar separados por uma barreira de vidro. Aliás, essa era a regra geral para qualquer tipo de visita: “Normalmente os leprosários tinham um parlatório separado por um vidro para que não houvesse contato entre o doente e quem o visitava, para evitar o contágio – ou seja, para não tornar ‘imundo o mundo dos limpos’”, conta a pesquisadora.

Apesar de o isolamento compulsório ser uma política dura, as intenções nem sempre eram das piores. O médico sanitarista Belisário Penna (1868-1939), defensor dessa estratégia, questionava: “Qual a condição menos penosa para o doente? A de estar enclausurado em família, sentindo-se temido dos mais próximos parentes e dos amigos, sabendo que constitui de fato permanente perigo para eles, ou afastar-se para ficar em liberdade, com a consciência tranquila, pela certeza de não transmitir aos entes queridos a sua desdita?”. Para Laurinda, essa corrente tinha um viés duplo. “Ao mesmo tempo em que se buscava dar algum conforto para essas pessoas, para que tivessem uma vida mais ou menos normal e sem a estigmatização que havia do lado de fora, essas políticas acabavam ratificando esse horror social”, opina a pesquisadora.

Quando os hospitais-colônia enfim abriram suas portas, nem todos os pacientes foram embora. “Muitas pessoas foram internadas quando ainda eram crianças. Elas construíram sua vida e suas relações sociais dentro dos leprosários”, explica Laurinda. Por isso, hoje ainda há ex-pacientes vivendo nesses locais, com familiares que vieram a morar ali também. “Alguns deles se transformaram em hospitais de atendimento geral, ou em institutos de pesquisa especializados em dermatologia. Mas a maioria está numa decadência muito grande”, completa a pesquisadora.

Os trabalhadores em saúde nas famílias

Hoje, a prevenção e o tratamento da hanseníase fazem parte do Programa Nacional de Controle da Hanseníase, ‘herdeiro’ do antigo Serviço Nacional de Lepra, criado em 1941. O trabalho é feito pela Estratégia de Saúde da Família. “E como as ações das equipes são bastante generalistas, dando conta de diversos agravos, é importante que os profissionais de todos os níveis recebam uma capacitação especial, de maneira continuada, para reconhecer e orientar o tratamento dessa doença”, diz a hanseniologista Maria Eugênia Gallo, que presta assessoria ao Programa e trabalha com essa formação.

De acordo com a médica, o agente comunitário de saúde (ACS) é um dos trabalhadores mais importantes na cadeia de profissionais envolvidos. “É ele que tem maior contato com os usuários: entra em suas casas, conhece suas famílias, sua rotina, seus hábitos”, afirma, explicando que os agentes devem ser sensibilizados para reconhecer os sintomas e, em caso de suspeita de hanseníase, encaminhar o paciente a um médico o mais rápido possível. “É o ACS quem deve orientar a respeito da doença, explicar como é o contágio e o tratamento, e é também ele quem deve acompanhar esse tratamento, verificando se os pacientes estão tomando a medicação corretamente”, diz Marie Eugênia. Ela afirma que, teoricamente, todas as equipes devem receber esse tipo de formação. “Mas nem sempre essa é a prioridade dos gestores”, explica.