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Mães e mulheres no cárcere

A explosão da população carcerária feminina no Brasil, a seletividade do sistema penal e as péssimas condições de vida às gestantes e encarceradas
Giulia Escuri - EPSJV/Fiocruz | 12/09/2017 11h56 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

Glaucio Dettmar/Agência CNJ

Adriana Ancelmo e Sérgio Cabral se casaram em 2004. A festa foi no Copacabana Palace, enfeitado com quatro mil dúzias de rosas vermelhas. Algum tempo depois nasceram os filhos, que hoje têm 10 e 14 anos. O casal chegou ao governo do Rio de Janeiro em 2007. Em novembro do ano passado, o ex-governador foi preso e um mês depois, foi a vez da esposa. Já em março deste ano, Ancelmo conseguiu uma liminar do Superior Tribunal de Justiça para substituir a prisão preventiva pela domiciliar por ser mãe de uma criança menor de 12 anos e não ter nenhum outro responsável para cuidar do filho, o que o Código de Processo Penal permite no artigo 318. 

Logo depois de a ex-primeira dama ir para casa cumprir sua pena, a ministra dos Direitos Humanos, Luislinda Valois, enviou ao Supremo Tribunal Federal (STF) um pedido para que o benefício da prisão domiciliar fosse estendido às outras mulheres em situação semelhante. Em maio, foi a vez do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu) enviar ao STF outro pedido de habeas corpus coletivo para presidiárias grávidas, puérperas (que deram à luz em até 45 dias) e mães que sejam as únicas responsáveis por crianças com até 12 anos de idade. “O impacto desproporcional ficou ainda mais evidente no episódio envolvendo a prisão preventiva de Adriana Ancelmo, ex-primeira dama do estado do Rio de Janeiro [...] O episódio, que poderia simplesmente indicar a correta aplicação da lei, expôs a enorme seletividade do sistema de justiça”, diz o texto enviado ao STF pelo Coletivo.

Somente no dia 25 de agosto o STF, que havia recebido os dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), órgão do Ministério da Justiça, de que a população carcerária feminina no Brasil havia aumentado quase 700% em 16 anos, decidiu que seria julgado o pedido de habeas corpus coletivo. Para isso, as encarceradas não devem ainda ter sido julgadas pela Justiça, o que soma até 43% das detentas, segundo dados do último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen).

Se aprovada, será a primeira sentença coletiva do país. A professora de Direito Penal e Criminologia e coordenadora do Grupo de Pesquisa em Política de Drogas e Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Luciana Boiteux, acredita que a soltura da ex-primeira-dama foi importante para dar visibilidade ao tema e que a iniciativa do habeas corpus coletivo é positiva, mas o maior desafio ainda é a sua efetivação. “Nós já reivindicávamos esse direito para as mulheres há alguns anos. O caso da Adriana Ancelmo foi importante porque pode ajudar a sensibilizar as autoridades para o problema”, destaca.

Caso o pedido seja aprovado, Boiteux considera que a maior dificuldade será encontrar essas mulheres. “Minha preocupação é como essa decisão vai chegar a tantas mulheres, já que sequer temos o mapeamento do nome dessas detentas. Então é importante não só que tenha uma decisão do Supremo que seja favorável, como também se consiga efetivar a liberação dessas mulheres”, completa.

Elas existem

O primeiro presídio feminino foi criado no país em 1937. No entanto, o primeiro relatório nacional sobre a população penitenciária feminina só foi publicado 78 anos depois, em 2015. Caroline Bispo, advogada e fundadora da associação 'Elas Existem – Mulheres Encarceradas', acredita que o assunto vem ganhando relevância por causa dos dados assustadores relacionados ao crescimento do número de mulheres presas. “Em 2015, o crescimento apontado pelo Infopen foi de 500%. Foi um marco, todo mundo caiu em si sobre como prendemos a cada dia mais mulheres. Até há pouco tempo, elas sequer existiam. Só se falava de presos, de superencarceramento e das rebeliões. Faz pouco tempo que começamos a falar sobre essas mulheres, de ex-presas e de grávidas no sistema prisional”, comenta.

Mães no cárcere

Tânia Rêgo/Agência Brasil

Um estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) lançado em agosto deste ano analisa as condições de tratamento dadas às gestantes no cárcere. Segundo a pesquisa 'Nascer na prisão: gestação e parto atrás das grades no Brasil', na maioria dos estados no terceiro trimestre de gestação a grávida deve ser transferida de sua prisão de origem para unidades prisionais que abriguem mães com seus filhos. Ainda de acordo com o protocolo, elas devem ser levadas ao hospital público para o parto e, depois, retornar à mesma unidade onde permanecem com seus filhos por, no mínimo, seis meses.

No Rio de Janeiro, a Unidade Materno Infantil (UMI) é destinada a receber essas mulheres. A UMI, segundo Bispo, tem sido referência no país mas, ainda assim, não é o ideal. “O certo seria que a mulher estivesse em prisão domiciliar, lembrando que se ela não for sentenciada ela poderia - e deveria, segundo a lei - cumprir prisão domiciliar. Nada se compara à liberdade, por mais que a UMI seja bonita, rosa e tenha flores”, completa.

Quase 90% das mulheres que foram mães em penitenciárias e participaram do estudo da Fiocruz já estavam grávidas no momento em que foram presas e cerca de 65% delas não gostariam de ter engravidado em nenhum momento. Mais de 60% já têm entre dois ou quatro filhos. E cerca de 37% considerou o pré-natal dentro da unidade prisional inadequado.

Mesmo sendo assustadores, os números não conseguem expressar a dura realidade dessas mulheres que, não raramente, são levadas ao hospital pelo carro de polícia. “Sob a justificativa da segurança, as mulheres são levadas às unidades de saúde pelo mesmo camburão que transporta presos. Muitas vezes, elas estão há tanto tempo em trabalho de parto que  acabam dando à luz dentro do transporte. O Estado tem que se responsabilizar, não pode naturalizar esse tipo de atendimento”, conta Boiteux. Segundo os dados, cerca de 17% das mulheres esperam até cinco horas pela chegada de um transporte e 36,6% são levadas no carro da polícia.

Apesar de a Lei nº 123.433, que altera o Artigo 292 do Código de Processo Penal, proibir o uso de algemas em mulheres durante o trabalho de parto e durante o parto, cerca de 35,7% relataram terem sido algemadas. Além disso, 97% dessas mulheres não puderam ser acompanhadas por algum familiar durante o parto.

“Essas mulheres não deveriam estar, ao mesmo tempo, grávidas e presas.A gravidez em situação prisional é uma gravidez de risco. Não só pela falta de acesso à saúde e a um pré-natal adequado, mas também pela má qualidade da comida, da água, pela ausência de sol e de condições mesmo de sobrevivência, expressa pela frequente depressão dessas mulheres encarceradas. Quando a gente pensa no momento da gravidez há uma opressão muito grande.Essas mulheres não são respeitadas, há um despreparo”, acredita a professora.

Tráfico como sustento

O esquecimento parece fazer parte da rotina dessas mulheres encarceradas. Segundo dados da Secretaria de Administração Penitenciária (Seap), apenas 34 das 2.104 detentas das seis unidades prisionais que abrigam mulheres no Rio de Janeiro recebem visita íntima. “Quando essas mulheres são presas, os laços familiares se rompem. No dia de visita em cadeia masculina, são filas enormes: são as mulheres que levam os filhos, são as mães que vão ver seus filhos. Quando a gente entra num presídio feminino, a fila é mínima, elas recebem pouquíssimas visitas, elas são abandonadas”, explica Boiteux.

De acordo com o Infopen, 68% dessas mulheres foram presas por tráfico de drogas. Luciana Boiteux explica que o aumento do encarceramento feminino nos últimos anos é resultado da política repressiva antidrogas. “Existe o fenômeno da ‘feminilização’ da pobreza, que é o seguinte: as mulheres são a maioria dentre os pobres e recai sobre elas não só o cuidar dos seus filhos e demais familiares, como também o sustento da sua família. A necessidade financeira, na maior parte dos casos, as induz a praticar o crime para se sustentar e sustentar seus filhos”.

Gláucio Dettmar/Agência CNJ

O desafio da saúde para a população carcerária

O estado dos presídios também é devastador. No Rio, entre 1º de janeiro de 2015 a 1º de agosto deste ano 517 presos morreram em decorrência de diversas doenças tratáveis, como hanseníase, tuberculose, HIV-AIDs e até infecções de pele, segundo dados do Ministério Público do Rio de Janeiro e do Instituto Igarapé. Mais recentemente, a notícia de que Rafael Braga, preso por portar produtos de limpeza em uma manifestação em 2013, contraiu tuberculose no presídio, ganhou visibilidade nas redes sociais. Nas penitenciárias femininas, a falta de condições básicas de higiene e tratamento não são diferentes.

“O Estado está falido.Na hora de fazer o pedido de compras de produtos de higiene, sempre acaba deixando para trás as mulheres. Por exemplo, eles entendem que quatro absorventes por ciclo menstrual para cada mulher é suficiente”, conta Caroline Bispo que já realizou um trabalho com a Associação de levar esses itens para as mulheres. Além disso, ela também aponta que até junho deste ano existia apenas um ginecologista para todas as mulheres do sistema prisional no estado do Rio de Janeiro, mas que a situação foi revertida quando a Defensoria Pública estadual entrou com uma ação civil pública para que cada unidade contasse com, pelo menos, um médico.

Encarceramento em massa

Segundo dados do Ministério da Justiça, o Brasil possui a quinta maior população carcerária feminina do mundo. Luciana Boiteux acredita que para superar esse problema é necessário rever a política da repressão às drogas. “Se formos nos limitar a pensar como podemos melhorar mantendo essas mulheres presas, não vamos resolver a situação porque nos presídios, mesmo nos países onde os eles são os melhores, a situação é de opressão e violação de direitos. Precisamos é tirar essas mulheres dos cárceres, impedir que toda mulher grávida seja enviada ao cárcere e também pensar em outras alternativas penais para essas mulheres. A prisão não traz nenhum resultado positivo e ainda agrava a situação delas”.

A realidade poderia ser diferente se houvesse um maior investimento em políticas sociais, segundo a professora: “Esse dinheiro enorme que hoje é investido em presídios, que é uma ação altamente cara, poderia ser investido em políticas sociais, em garantia de direitos, garantia de acesso à creche, melhoria do sistema de saúde, da educação e no fortalecimento e empoderamento dessas mulheres”.

 

 

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