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MEC anuncia ensino médio em tempo integral: mas o que isso quer dizer?

Ministro Haddad diz que planeja ampliar o tempo de estudo para todo o ensino médio, com oferta de educação profissional
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 14/01/2011 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Logo na primeira semana do ano, o ministro da Educação do governo Lula, mantido no cargo pelo governo Dilma, Fernando Haddad, afirmou que uma das principais propostas da pasta nesta gestão é aumentar a oferta do ensino médio em tempo integral. O ministro divulgou também que a ideia é que os estudantes tenham durante este tempo uma formação profissional. O governo Lula investiu na educação profissional, principalmente através da ampliação da rede federal, que, segundo o próprio Ministério da Educação (MEC), conta hoje com 214 escolas em todo o país. Mais do que um aumento quantitativo, o MEC fortaleceu um projeto de educação profissional integrada ao ensino médio. A questão é: essa política continua na próxima gestão?

De acordo com as declarações do ministro da Educação, a proposta do ensino médio integral (em dois turnos) é trabalhar a educação profissional de forma concomitante - e não integrada - ao ensino médio. Isso significa que o aluno vai fazer dois cursos em duas instituições ou, quando for o caso, na mesma escola - um dedicado à formação geral do ensino médio e outro voltado para a formação técnica profissional escolhida por ele. "O ministro, quando faz a proposta da concomitância, pensa em dois grandes problemas: o primeiro é a  necessidade de termos uma formação profissional bastante ampla para dar conta da previsão de crescimento do país. A outra questão que ele une nessa proposta é o que se tem chamado de ‘crise do ensino médio', que envolve o seguinte problema: como fazer com que o adolescente se interesse pelo conhecimento que está sendo trabalhado no ensino médio? Ele entende que quando se alia o ensino médio a uma proposta de formação profissional , esses componentes curriculares podem ter um tratamento mais interdisciplinar e contextualizado, e isso daria mais ânimo para os estudantes permanecerem no ensino médio", explica a diretora de políticas de educação profissional do MEC, Caetana Juracy.

A diretora reconhece, no entanto, que a forma ideal seria a de um ensino médio integrado. "Mas o que temos é uma estrutura real das redes públicas de ensino, de não ter condição ainda de estabelecer uma oferta de ensino médio integrado que atenda plenamente à demanda colocada por formação. Então, a proposta é conciliar várias alternativas, dentre elas a oferta de cursos concomitantes. O que, na prática, acaba se configurando como uma escola de tempo integral", afirma Caetana. De acordo com ela, entretanto, o processo de integração não será abandonado. "O ministro opta pela concomitância sem abrir mão de um processo de expansão da integração também", garante.

A diretora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Isabel Brasil, frisa que a EPSJV considera que a modalidade integrada é a melhor  proposta para o ensino médio. "Com o ensino médio integrado, os conceitos ficam integrados, não se descola a formação geral da formação profissional. Com o curso concomitante, sobretudo em outra escola, fica muito difícil integrar no currículo os conceitos. O estudante fica sob a égide de duas escolas, com diferenças nos projetos político-pedagógicos", diz.

Caetana explica que é preciso analisar a situação da rede pública de educação estadual, que é diferente da situação da rede pública federal. "Nós apostamos no currículo integrado para as escolas de educação profissional mantidas pelo governo federal, mas precisamos pensar também na rede pública estadual, que não tem condições de transformar todas as suas escolas de ensino médio em escolas de ensino médio integrado com curso técnico. Por exemplo, uma escola de ensino médio numa periferia pode não ter condições de implementar uma escola de educação profissional, mas existe a possibilidade de formação profissional daqueles alunos em outras localidades, como escolas federais ou outras escolas estaduais. Pensamos na rede como um todo, e isso abre espaço para a escola estabelecer acordos de cooperação com outras escolas de educação profissional e possibilitar uma certa mobilidade maior dos estudantes entre as ofertas formativas das várias escolas", pontua.

Isabel concorda que a estrutura atual de muitas das escolas da rede pública estadual é precária e que precisariam de mudanças para que passassem a oferecer o ensino médio integrado. "É preciso investir no ensino médio dessas escolas que farão a concomitância externa e investir significa verba e qualificação dos professores, para que ela chegue a um patamar no qual possa oferecer o ensino médio integrado. É preciso articular os planos nacional e o estadual para garantir esse apoio porque não há mágica que fará essas escolas ficarem melhores", discute. A professora ressalta que se a solução for de fato estabelecer a concomitância entre duas instituições diferentes, como medida paliativa, o MEC poderia tentar aproximar as duas instituições, com vistas a chegar o mais perto possível de uma proposta integrada. "O MEC teria que pautar alguns conceitos da formação geral que precisariam estar também na formação profissional. Poderia se pensar também em fóruns e encontros dos profissionais das duas escolas", sugere. Já no caso da concomitância interna - ou seja, a formação geral e a formação profissional na mesma instituição -, a professora questiona se, nesses casos, já não seria melhor apostar na modalidade integrada.

O tempo todo na escola para quê?

"Cabeça vazia, moradia do diabo". Apesar de parecer inofensivo, o ditado bastante popular e muitas vezes dedicado à juventude revela uma concepção que desvaloriza o tempo livre, como se isso fosse propício ao aprendizado de más condutas. Quando se fala em educação em tempo integral, muitas vezes também essa concepção se sobrepõe: a de ocupar totalmente o tempo do adolescente. Isabel alerta que para se pensar em uma formação de tempo integral, é preciso refletir sobre por que razão se quer fazer a ampliação da carga horária do estudante na escola. "É preciso desconfiar das propostas que pensam na educação em tempo integral para tirar o adolescente da rua para que ele não aprenda maus vícios. Não é por aí. Porque nós entendemos que a escola é um lugar social, e a sociedade está aqui dentro, querendo ou não", critica. E completa: "Mas por que é interessante um ensino em tempo integral? Primeiro porque, com um currículo num tempo só, pode-se sacrificar a questão da arte, da cultura, da pesquisa. Um único horário não é suficiente, porque existe uma carga horária a ser cumprida - então, para colocar um conteúdo profissionalizante da educação profissional e também relativo à ciência e à cultura, é preciso um horário maior", define.

A professora de Políticas Públicas e Educação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro Eveline Algebaile também explica que a ideia da educação em tempo integral é composta por duas vertentes de pensamento. "De um lado, uma visão correcionista e salvacionista, que entende a educação como mecanismo de correção social dos pobres, que não teriam uma educação adequada e que, fora da escola, não teriam os comportamentos, os conhecimentos e as capacidades consideradas adequadas para viver na sociedade. Como se a nossa escola e, inclusive, a nossa escola precária não fossem expressão das desigualdades sociais produzidas como um todo. Mas simultaneamente existe um conjunto variado de concepções de formação que reconhecem na extensão do tempo escolar uma oportunidade de se trabalhar com calma e profundidade um conjunto variado de conhecimentos, cuja articulação favorecem uma formação humana integral", detalha.

Eveline observa, no entanto, que nem todas as propostas de educação em tempo integral trazem junto o conceito de formação integral. Caetana confirma a diferença: ela explica que formação integral "relaciona-se com a perspectiva da formação do ser humano como um todo, integrando as várias dimensões da vida - trabalho, cultura, ciência e tecnologia - no processo educativo". Já o conceito de formação em tempo integral, segundo ela, "é uma estratégia de acesso a várias oportunidades formativas que podem ocorrer simultaneamente à educação básica, ampliando a formação geral do educando" e "faz referência à jornada diária do estudante em atividades educativas. Mas diretora ressalta que, para o MEC, o conceito de formação integral é um princípio. "Em nosso trabalho, na formulação de políticas para a educação profissional e tecnológica, acreditamos que a formação integral é um princípio filosófico que deve orientar todo e qualquer curso independente do nível, modalidade ou forma de oferta. Acreditamos que se deve perseguir uma formação capaz de superar o ser humano fragmentado historicamente, pela divisão social do trabalho, entre a ação de executar e a de pensar, dirigir, planejar", descreve.

Para Eveline, há ainda duas questões fundamentais nesta discussão: garantir que a escola tenha condições estruturais para se afirmar como um espaço de qualidade e trabalhar a própria concepção de qualidade que norteia a escola. "Nós percebemos muito hoje em dia um discurso de qualidade escolar muito referido a uma suposta eficiência e modernização da gestão, a resultados favoráveis nos rankings de avaliações, quando temos acúmulo suficiente tanto nos estudos, quanto nos debates do movimento social a respeito de avanços elementares que seriam necessários para termos uma educação de qualidade - e que envolvem diferentes aspectos da organização e da ação escolar, como uma escola bem estruturada na qual o aluno tenha recursos, espaço, tempo, organização, bases e meios para se relacionar de modo diferenciado com diferentes formas de conhecimento, passando da formação artístico-cultural até a relação com a ciência, com a tecnologia", afirma.  

Formação dos professores

Para tornar realidade o plano do ministro da Educação de garantir o ensino médio em tempo integral em concomitância com a educação profissional, será preciso que mais professores se dediquem a esse tipo de atividade docente. Apesar de não confirmar o número divulgado na imprensa na semana passada, de que seriam necessários 300 mil professores caso essas medidas sejam implementadas, o MEC afirma que há um déficit grande de profissionais de educação. E para garantir que o princípio da formação integral seja de fato uma realidade, o MEC aposta que é preciso investir na formação dos docentes. "Isso vai exigir da nossa parte um grande esforço de formação de pessoal. O interesse é que as instituições de educação superior possam abrir oferta regular de licenciaturas, que tenham esse perfil de entrada para pessoas que já têm outras graduações. A ideia que nos orienta é que a formação seja feita por grandes áreas. Por exemplo, que se abram turmas de licenciatura em educação profissional específicas voltadas para profissionais que venham do campo da infraestrutura, da parte de construção civil", explica Caetana.

Tramita no Conselho Nacional de Educação, desde 2008, uma proposta encaminhada pelo MEC de Diretrizes Curriculares Nacionais para cursos de Licenciatura em Educação Profissional e Tecnológica. Segundo Caetana, são essas diretrizes, caso aprovadas, que darão suporte as esses cursos de licenciatura. A professora explica que a formação dos docentes para atuar na educação profissional deve ser diferente da formação do docente para atuar na universidade. "São vários assuntos bastante importantes na formação de um professor para atuar na educação profissional. Uma auto-crítica que fazemos é: nós nunca consideramos a categoria trabalho nas formações anteriores, nós formamos pessoas em direito, medicina, engenharias, mas não discutimos a categoria trabalho com eles, fazemos as mesmas coisas com as licenciaturas e, para a educação profissional, é essencial que uma formação de professor faça a discussão sobre essa categoria", aposta a diretora.

Eveline lembra que o Brasil tem, historicamente, sérios problemas de formação de professores de um modo geral. Com relação aos docentes com atuação específica na educação profissional, o desafio é ainda maior. "Um desafio particular é o da formação de um professor que não se concebeu originalmente para trabalhar com a difusão do conhecimento que ele domina. Não se trata só de uma formação inicial em cada área que se torna disciplina formativa, mas, muitas vezes, de trazer alguém que possa ser professor exatamente porque agrega a formação especializada inicial a uma experiência profissional que permite passar ao aluno conhecimentos relevantes sobre determinadas técnicas", diz.

Para solucionar esse problema, Eveline acredita que de fato é importante difundir a formação para atuação docente em diversas áreas do conhecimento. Para isso, de acordo com ela, é preciso contar com a universidade - e aí começa outro desafio. "A própria universidade está organizada de uma forma muito dispersa em relação à agregação de conhecimento que seria necessária para que funcione de fato como um espaço de produção e suporte à formação de profissionais da área social, de profissionais educacionais. Existe uma separação entre os profissionais que vão atuar no campo científico e nas atividades tecnológicas, por um lado, e os profissionais que vão atuar na educação, por outro. Isso vemos dentro dos cursos de licenciatura. E eu diria que essa discriminação se dá pelos lados de ambos os profissionais", analisa.

A professora aposta também que, além de tentar solucionar esses problemas, é preciso olhar para os processos de formação dentro das próprias escolas. Ela sugere que garantir a dedicação exclusiva para o professor é um passo importante para que ele avance no processo formativo coletivo dentro da escola e consiga um bom trabalho junto aos estudantes. "Predomina no Brasil uma concepção de formação docente muito restrita à promoção de cursos, seja de formação inicial, seja de formação continuada, e se dá muito pouco espaço para uma concepção de formação que inclua um melhor aproveitamento do tempo do trabalhador nas instituições como um tempo de formação coletiva. Temos, no país, regimes muito diferenciados de carga horária. Alguns professores entram com 16 horas, outros com 40 horas, outros com 30 horas e com 20 horas. Professores  com carga horária curta, em geral, atuam em várias instituições, portanto não se enraízam em nenhuma delas", critica. Eveline afirma que as condições de trabalho também são formativas. "Se estou em uma escola em que falta tudo, o tempo inteiro, em que é preciso correr atrás para produzir a infraestrutura mínima todo dia para uma aula acontecer, sou desviada das minhas atividades-fim, e isso vai atuar formativamente sobre mim, vai alterar o meu ânimo, a crença no meu próprio trabalho e vai me ensinar a reduzir o horizonte da minha atuação. O professor que trabalha em condições instáveis é um professor que começa a não formular objetivos de longo alcance", alerta.

ProMédio

O anúncio do ministro da educação sobre a proposta de ensino médio em tempo integral teve ampla repercussão na imprensa e, em alguns casos, os jornais relacionaram o ensino médio em tempo integral com a promessa do ProMédio, um programa prometido pela presidente Dilma Roussef, no discurso de posse. Como a própria presidente afirmou, será, caso implementada, uma iniciativa nos moldes do ProUni - Programa Universidade para Todos, que trata da reserva de vagas nas instituições privadas filantrópicas para estudantes de baixa renda.   "A questão do ProMédio é muito embrionária ainda e tem vários entraves do ponto de vista da legislação. Quando se cria o ProUni, há a figura da instituição de educação superior filantrópica, e aí se faz uma regulamentação da filantropia na educação superior a partir da reserva de vagas. Quando falamos do ProMédio, é preciso considerar que as escolas técnicas não são subordinadas à União, mas sim aos estados,  e são os conselhos estaduais que fazem o credenciamento e a autorização de cursos e tudo o mais. Para a educação superior, nós temos o Enem como porta de entrada para o ProUni. Para a educação de nível médio qual seria a porta de entrada? Então, a primeira questão é essa: como organizamos algo que não está sob nossa supervisão, mas sob a supervisão dos estados. Temos um desenho que precisamos estudar com muito cuidado. Precisamos saber também qual o tamanho da oferta da rede privada e qual a qualidade dela", esclarece Caetana. A diretora do MEC ressalta, no entanto, que o ideal é garantir a expansão da rede pública. "Eu digo isso com toda a certeza: o ideal é fomentarmos a oferta pública, a construção, o estabelecimento e a ampliação de uma rede pública de ensino. Mas olhando para a demanda do país, percebemos a necessidade de recorrer ao que está instalado hoje e viabilizar aos trabalhadores de baixa renda a modificação desta realidade", acrescenta.

Para Isabel Brasil, é muito importante considerar que a ampliação do ensino médio integral proposta pelo ministro da educação seja feita via rede pública de ensino. "O ensino técnico privado vive ao sabor do mercado e não das exigências reais do campo. No caso da saúde, por exemplo, que é nossa área de atuação, o ensino privado tem como norte o que o mercado considera que deve ser prioridade nas profissões técnicas em saúde: deixa de lado prevenção e promoção e aposta  só em laboratório. Isso deforma e não atende às reais necessidades do campo da saúde", pontua.

Confira na próxima edição da revista Poli (edição nº 16) a reportagem completa sobre a proposta do ProMédio . A revista será lançada no mês de março.

 

Confira também reportagem especial da revista Poli nº 15: Educação profissional e ensino médio integrado no Brasil - um balanço das conquistas e reivindicações