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Mediação para quem?

Representantes de operadoras de planos de saúde vão integrar núcleo criado para ajudar a justiça de São Paulo nas ações movidas pelos consumidores contra as próprias empresas. Instituições e pesquisadores da área apontam conflito de interesses na parceria, que conta com a participação também da ANS.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 14/05/2015 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

De um lado, consumidores que veem seus direitos negados têm recorrido cada vez mais a ações na justiça contra os planos de saúde. De outro, as operadoras alegam que o cumprimento das sentenças judiciais, que em geral as obrigam a autorizar procedimentos que elas haviam recusado, está aumentando os custos e causando prejuízo. Para “conciliar” essa queda de braço, em que interesses opostos estão em jogo, o Tribunal de Justiça de São Paulo acaba de criar um Núcleo de Apoio Técnico e de Mediação (NAT) que, se der certo, pode virar modelo para todo o país. Qualquer esforço para minimizar conflitos parece interessante mas, nesse caso, a questão é que apenas um dos lados foi chamado para participar da “mediação”. Isso porque o NAT vai funcionar a partir de um Termo de Cooperação Técnica firmado com a Associação Brasileira de Medicina de Grupo (Abramge) e com a Federação Nacional de Saúde Suplementar (Fenasaude), entidades que representam exatamente os interesses das empresas de planos de saúde. “Claro que todos nós queremos evitar conflitos, queremos que as pessoas sejam atendidas o mais rapidamente possível, que não enfrentem barreiras de acesso que prejudicam a saúde. Mas isso é papel da ANS [Agência Nacional de Saúde Suplementar], não das empresas de saúde. Com isso, as empresas de planos de saúde estão institucionalizando uma barreira de acesso. É um absurdo”, opina Ligia Bahia, professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

De fato, os acordos firmados para a criação do Núcleo parecem atentar mais para a queixa das operadoras do que para o problema dos consumidores. Entre os “considerandos” elencados no Termo de Cooperação Técnica assinado com as representantes das operadoras, por exemplo, não existe qualquer referência à dificuldade de acesso que leva o consumidor à justiça, mas não passa despercebido o impacto negativo que isso tem para as empresas de planos de saúde. Assim, o texto diz “considerar”, por exemplo, os “altos custos com a judicialização de conflitos que as entidades privadas de saúde experimentam, sem que lhes seja dada a oportunidade de oferta aos seus clientes de alternativas ou serviços satisfatórios em tempo célere e em ambiente neutro”.

A “oportunidade” de acelerar o tempo para oferecer “serviços satisfatórios” aos clientes pode indicar uma preocupação também com o cliente dos planos mas, para Joana Cruz, advogada do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), no NAT essa ‘disposição’ das empresas chega de forma tardia. “A gente acha que conciliação é ótimo e que as operadoras realmente deveriam propor uma solução em 24 horas, mas não no momento em que o consumidor procurou a justiça. Elas deveriam propor essa solução em 24 horas no momento em que ele contactou a empresa pela primeira vez para falar do seu problema. Porque quase ninguém vai para o judiciário sem ter tido uma negativa da operadora”, diz.

Ela explica que o tipo de mediação que o NAT fará não evita a ação judicial, apenas acelera o processo fazendo com que ela talvez não precise ir até o fim. Mas, para esse objetivo, a advogada acredita que já existem outras medidas mais eficientes. “Alguns magistrados do próprio TJ de São Paulo aplicam multa de litigância de má fé em operadoras que fazem recursos repetitivos só para protelar o pagamento daquele procedimento ao consumidor”, exemplifica. Ela explica que se configura litigância de má fé quando uma das partes do processo — no caso, as operadoras — sabe que muito provavelmente vai perder a causa e fica recorrendo para demorar mais a pagar.

Conflito de interesses?

A ideia é que o NAT seja formado por profissionais das próprias operadoras de planos de saúde que terão a função de, no prazo máximo de 24 horas, fornecer ao TJ uma “proposta de composição amigável e/ou parecer técnicos sobre o pedido constante da petição inicial, inclusive quanto à urgência”. Também de acordo com o Termo assinado, o “Núcleo ofertará apoio aos juízes consistente na emissão de pareceres técnicos que propiciem auxílio prévio quando da análise de pedidos de concessão de provimentos jurisdicionais de urgência”. A agência reguladora desse setor, ANS, também participa dessa iniciativa, por meio de um outro Termo de Cooperação assinado com o TJ-SP em que se compromete principalmente a disponibilizar informações técnicas atualizadas sobre a regulação da saúde suplementar. “É preciso ter em mente que a parte vulnerável nesse processo judicial e nessa relação de consumo é o consumidor. Considerando que a ANS e as operadoras têm diretrizes técnicas que fundamentam muitas vezes a não cobertura de um procedimento, nós ficamos preocupados com qual vai ser o teor desses pareceres técnicos”, diz Joana. E ilustra o dilema: “Pode-se ter vários motivos científicos para dizer, por exemplo, que um pet scan deveria ser colocado para uma pessoa com um câncer x em estágio tal. Mas a partir do momento em que o médico, que é a pessoa neutra e idônea, pede um pet scan para aquele paciente, mesmo que isso não se encontre na diretriz, ele tem o direito. Principalmente porque a gente está falando da vida de alguém”.

O Portal EPSJV/Fiocruz perguntou, via assessoria de imprensa, se a ANS identificava conflito de interesses na atuação de um núcleo que funcionaria com profissionais das empresas de planos de saúde e questionou também como a Agência pretende agir para evitar que essa aceleração dos processos possa se dar contra o consumidor. Em resposta, a ANS enviou uma nota que explica o seu papel na parceria, tal como está definido no Termo de Cooperação Técnica, e elogia a iniciativa: “O objetivo da parceria firmada entre a ANS e o TJ/SP é viabilizar o intercâmbio de informações e promover a atuação integrada das duas instituições. Esse tipo de cooperação, recomendada ao Tribunal pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), é uma ação positiva, que contribuirá para a solução extrajudicial de conflitos entre beneficiários e planos de saúde e que representa um importante avanço contra práticas lesivas ao consumidor”. A nota afirma ainda que a Agência não tem participação na indicação das empresas para compor o Núcleo. Fazendo referência à crítica que o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) fez na matéria da Folha de S. Paulo, diz o texto: “Por fim, a ANS esclarece que a criação e composição do Núcleo de Apoio Técnico e Mediação (NAT), bem com as parcerias estabelecidas pelo TJ/SP com outras entidades para este fim, objeto das críticas de entidade representativa dos profissionais médicos, são de competência exclusiva do Tribunal de Justiça. Diferentemente do que foi noticiado pela imprensa, a ANS não participará da composição e tampouco interferirá na atuação do núcleo. Cabe, portanto, ao TJ/SP responder sobre as atividades e expectativas resultantes do trabalho que será realizado pelo grupo”. O Portal EPSJV/Fiocruz enviou perguntas também para o Conselho Nacional de Justiça, mas não teve resposta.

No termo assinado entre a ANS e o TJ-SP, aparece como um dos “objetos” da parceria “promover uma atuação integrada, com vistas a garantir a proteção e defesa dos direitos do consumidor de planos privados de assistência à saúde”. Já na lista de “considerandos”, a referência é ao “atual estágio de desenvolvimento do mercado de assistência suplementar à saúde e a necessidade de fortalecimento dos meios de prevenção de práticas lesivas a tal mercado e aos seus respectivos participantes”.

Pressão sobre o judiciário

Num evento realizado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) no dia 16 de abril deste ano, com o título ‘A apropriação de recursos públicos e as várias faces da corrupção’, a desembargadora federal Salette Maccalóz contou uma história que ilustra a aproximação e a pressão que as empresas de planos de saúde tem tentado sobre o judiciário. Segundo ela, três vezes por ano a Unimed convida juízes estaduais e federais para passarem uma semana em Washington, nos Estados Unidos, visitando a justiça federal e a Suprema Corte. Ela esteve em um desses encontros em novembro do ano passado e conta a estratégia utilizada para tentar convencer os magistrados a não condenarem a empresa. “No último dia, chega o diretor geral da Unimed do Brasil, os financiadores, cinco ou seis médicos e eles nos apresentam qual é a arrecadação da Unimed. [Dizem que] a Unimed está a perigo porque arrecada R$ 110 bilhões/ano, sempre manteve suas despesas em torno de 80%, só as condenações judiciais de internação, remédio e principalmente home care estão reduzindo a lucratividade da Unimed. No exercício 2013, ela tinha ficado em reles R$ 9 bilhões de lucro”, ironizou.

O argumento de que o crescimento das ações tem prejudicado a arrecadação das empresas é frequente. Em declaração feita na matéria da Folha de S. Paulo do dia 13 de maio que trata sobre o assunto, o diretor da Abramge, Pedro Ramos, não deixou dúvidas sobre a motivação das empresas na criação do NAT. “Mais do que a mediação, estamos preocupados com a sobrevivência do setor”, afirmou. A representante do Idec lamenta: “Eles deveriam estar preocupados com a sobrevivência dos consumidores”.

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