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O mal silencioso

Saúde mental tem tomado centralidade nos cuidados de jovens e adolescentes, sendo uma das principais causas de adoecimento e morte. Pesquisadores ouvidos pela reportagem apontam a escola como espaço de apoio importante.
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 05/04/2022 11h57 - Atualizado em 01/07/2022 09h40
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Maria*, 14 anos, não passa mais de duas horas fora do quarto há quase um ano. Sai para ir ao banheiro, comer e mais nada. Não se sente estimulada para conversar com as pessoas que moram em sua casa e começou a perder o contato com os amigos da escola. Hoje, segundo ela, prefere ver séries no celular do que gente. Maria é uma das mais de 10 milhões jovens e adolescentes brasileiros que foram impactadas pelo isolamento social e que hoje tem buscado ajuda para voltar à rotina que vai sendo retomada aos poucos. O caso dela não é isolado. E instituições de pesquisa e saúde ligaram o alerta colocando como prioridade o debate sobre saúde mental das crianças e jovens.

Pela primeira vez, em 2021, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) incluiu o tema da saúde mental entre crianças e jovens no Tratado de Pediatria, principal publicação direcionada aos médicos que cuidam de pessoas até 18 anos em todo o país. No mesmo ano, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), em parceria com o instituto Gallup, publicou o relatório ‘Situação Mundial da Infância 2021. Na minha mente: promovendo, protegendo e cuidando da saúde mental das crianças’, também elegendo a temática como prioridade de atuação. Segundo as últimas estimativas disponíveis pela pesquisa da Unicef, pelo menos uma a cada sete crianças e jovens de dez a 19 anos convive com algum transtorno mental diagnosticado em todo mundo. Além disso, também mundialmente, cerca de 46 adolescentes morrem por suicídio a cada ano, uma das cinco principais causas de morte nessa faixa etária.

Em ‘Nota de Alerta’ direcionada aos pediatras, a SBP informa que a temática que já estava tomando proporções alarmantes antes mesmo da crise sanitária se tornou central devido a diversos fatores, como o estresse da pandemia, o pânico disseminado, a desinformação, a desorganização das atividades pedagógicas e de convívio familiar e social, a impossibilidade de encontros presenciais com os amigos e parentes, a interrupção dos esportes coletivos e a incapacidade dos adultos de atender às necessidades emocionais fundamentais para o seu desenvolvimento saudável. “Na atual pandemia, pediatras têm atendido solicitações de famílias que descrevem o surgimento de insônia, anorexia, crises de ansiedade ou depressão em seus filhos. Algumas vezes, podem reaparecer comportamentos já superados pela criança, como urinar na cama (enurese) ou pedir para dormir com os pais. Mesmo crianças bem pequenas podem ser afetadas pela quebra abrupta na rotina, devido ao fechamento das creches e escolas, e pelas mudanças no comportamento dos adultos e no ritmo da casa ”, informa o texto.

De acordo com o coordenador do grupo de trabalho de Saúde Mental da Sociedade Brasileira de Pediatria, Roberto Santoro, é visível a mudança comportamental dos jovens e adolescentes durante as consultas. “Para além dos quadros que são diagnosticados, digamos que há um sofrimento público. Às vezes eles são transformados em um transtorno mental, que se demora mais tempo para perceber. Mas já sabemos que os quadros de ansiedade e depressão dobraram por conta da pandemia. Isso é percebido na clínica e ratificado em estudos científicos”, explica.

Também segundo Gabriela Mora, consultora da área de Desenvolvimento de Adolescentes da Unicef Brasil direcionada ao público adolescente, é perceptível que as questões relacionadas com a saúde mental têm se manifestado de maneira muito intensa. “O tema já era uma preocupação antes, mas pós-pandemia a gente também fez consultas rápidas com esse público por meio de enquetes em uma plataforma You Report. A partir dessas provocações, percebemos o quanto temas como a melancolia, a solidão e a angústia passaram a fazer parte do repertório de adolescentes na pandemia. Há muita incerteza com o futuro, além da perda de familiares, dos lutos todos vividos por esses adolescentes”, destaca.

Mora lembra ainda que a falta de recursos e a insegurança alimentar dentro de casa também foram relevantes nesse processo de adoecimento. “Esse afastamento que aconteceu por tanto tempo da escola e dos espaços de convivência e o contato com a pobreza impactaram muito. Com a pandemia, portanto, a gente percebeu a urgência de se trabalhar esse tema, que passou a ser um componente central na implementação de programas da Unicef no Brasil”, informa.

Questões complexas e mais profundas
Promovida pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz), a pesquisa ‘Violência autoprovocada na infância e na adolescência’ identificou 15,7 mil notificações de atendimento ao comportamento suicida entre adolescentes nos serviços de saúde no período de 2011 a 2014. O perfil que mais se destacou foi do sexo feminino, de 15 a 19 anos, de pele branca. O estudo revela ainda que é na residência o local mais frequente desta ocorrência e na região Sudeste.

Fatores como violência doméstica, falta de cuidado e diálogo afetam diretamente a chegada a esse limite. De acordo com dados do estudo, as famílias pesquisadas têm histórias de rejeições, maus-tratos físicos, agressões verbais, violência sexual, uso de álcool e drogas. A história pregressa de entes próximos, como amigos, familiares e vizinhos, também foi fator detectado na pesquisa. “A grande maioria dos casos estudados têm histórico de problemas psiquiátricos na família, com destaque para ansiedade e depressão, inclusive em gerações anteriores, e praticamente a metade dos adolescentes pesquisados têm familiares que abusaram do uso de álcool”, indica a pesquisa.

A coordenadora da pesquisa, Joviana Avanci, do Departamento de Estudos sobre Violência e Saúde Jorge Careli, da Ensp/Fiocruz, ressalta que é importante jogar luz às questões da saúde mental, principalmente, na adolescência por ser uma fase de mudanças profundas, de transições biopsicossociais de extrema importância. “É um momento de mudanças corporais, mudança no seu lugar no mundo, mudança nas gerações familiares, na escola. Cuidar da saúde mental desses meninos e meninas é importante, mas, a gente precisa estar atento,  sem estigmatizar, sem ter nenhuma atitude preconceituosa, porque também é muito difícil reconhecer se estão vivendo um quadro depressivo, já que se tornam mais introspectivos. É uma fase naturalmente de muito sofrimento”, avalia a pesquisadora.

Apesar de não contemplar o tempo da pandemia em seu estudo, Joviana Avanci alerta que o tempo muito alargado da pandemia pode ter agravado os problemas de saúde mental já existentes. “Na verdade, o que [o quadro das] pessoas que antes da pandemia já davam sinais de dificuldades de se relacionar, por exemplo, se agravou. É claro que com a pandemia a gente pode ter ficado mais depressivo, por conta da perda de pessoas, de renda, de redes de apoio. E essas perdas podem desencadear um quadro de ansiedade, de depressão que se não cuidar devidamente, pode encadear em suicídio”, diz. Ela alerta, no entanto, que, em geral, há uma série de ações de planejamento e tentativas fracassadas antes do “ato consumado”. “Apesar de ter pessoas que podem ir para o suicídio diretamente, em geral, tem uma evolução. E esta também aumentou”, constata.

Em setembro de 2021, mês marcado no Brasil pela campanha de prevenção ao suicídio, o boletim epidemiológico nº 33, publicado pelo Ministério da Saúde, trouxe dados alarmantes. Entre 2010 e 2019, ocorreram no Brasil 112,2 mil mortes por suicídio, com um aumento de 43% no número anual de mortes, de 9,4 mil em 2010 para 13,5 mil em 2019. O boletim destaca o aumento das taxas de suicídio de adolescentes e jovens no Brasil. Segundo o documento, o suicídio configura a quarta maior causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos de idade. “Há uma conjunção de fatores relacionados ao comportamento suicida na juventude. Alguns fatores que se destacam são os sentimentos de tristeza, desesperança e a depressão, ansiedade, baixa autoestima, experiências adversas pregressas, como abusos físicos e sexuais pelos pais ou outras pessoas próximas, falta de amigos e suporte de parentes, exposição à violência e discriminação no ambiente escolar e o uso de substâncias psicoativas”, destaca o texto.

O documento ressalta ainda a questão geracional. Segundo os dados apresentados, a chamada ‘geração Z’, de nascidos após 1995, conhecida como ‘natos digitais’ são mais susceptíveis aos efeitos do estresse, apresentando maiores taxas de ansiedade, depressão, automutilação e suicídio. “O desenvolvimento desses jovens, com menos mecanismos para lidar com frustrações e adversidades (menor resiliência) e dificuldades em adiar o prazer (imediatismo) podem também ser fatores sociais que influenciam no desencadeamento de quadros mentais que têm contribuído com o aumento do suicídio”, informa o boletim.

Para o coordenador de Saúde Mental, Álcool e outras drogas da Secretaria de Atenção Primária do Ministério da Saúde, Rafael Bernardon, a falta de tratamento por conta, principalmente, da falta de acesso, tem agravado esse diagnóstico. “O tempo maior que o jovem fica sem acesso à rede de tratamentos, a morosidade para conseguir um diagnóstico ou um encaminhamento adequado de tratamento também contribuem com o aumento dessa taxa. O que nos chama a atenção também ao analisar os dados do boletim é a velocidade do aumento do número. E esse tempo acelerado carece de mais estudos. Sem dúvida são questões multifatoriais: é a pandemia, é o fator geracional, problemas no processo de socialização combinada com a exposição intensa à internet, essa fase de interação social mais precoce na construção da personalidade… Enfim, o aumento acelerado é um fenômeno que ainda precisa ser melhor documentado e estudado, mas já começam a aparecer estudos que mostram essa diferença e como as gerações em conjunto lidam de maneira diferenciada em relação aos problemas habituais do dia-a-dia”, avalia.

Luz no fim do túnel
Uma aposta unânime entre todos os pesquisadores ouvidos nesta reportagem é na retomada do espaço escolar como forma de apoio à saúde mental desta faixa etária. De acordo com Roberto Santoro, da SBP, as aulas online deixaram o aprendizado e a troca interpessoal muito prejudicadas. “Tem um grande sofrimento, muitas queixas dos adolescentes sobre o acompanhamento das aulas online. E isso de fato é muito ruim mesmo. Mas pior do que isso foram as crianças e adolescentes de escolas públicas, que ficaram um longo período sem aula. Isso foi uma catástrofe, só aumentou o abismo social”, afirma, e relembra: “Sempre estive em contato com os sindicatos dos professores e eu indicava que era importante o retorno das aulas presenciais, mas que eles tinham que pressionar os governos municipais, estaduais e federal para que tivessem condições seguras. Mas as condições adequadas não foram minimamente atendidas. Não há condições de fazer isso sem que o governo seja pressionado e eles façam as mudanças necessárias para dar segurança aos professores e aos funcionários, além de as crianças e adolescentes e suas famílias”, reflete.

Roberto Santoro alerta ainda que apesar de algumas iniciativas isoladas, ainda não houve uma preparação estrutural das escolas para lidar com temas relacionados à saúde mental. “Precisaria, sim, de um programa em muitas escolas para incentivar os professores, os funcionários, as famílias, as crianças e os adolescentes sobre essa questão da saúde mental, mostrando como isso é importante, como a questão da saúde mental está presente e como é essencial também a gente abrir as portas para incluir pessoas que, por conta do problema de saúde mental, antes eram isoladas e excluídas”, incentiva.
Para Gabriela Mora, da Unicef, a escola é um local privilegiado de observação do que está acontecendo no dia-a-dia dos adolescentes e crianças. “A escola é um lócus que precisa ser trabalhado no seu potencial para que aproveite cada vez mais essa capacidade de observação sobre um comportamento que seja diferente. As pessoas que estão ali no dia-a-dia com os adolescentes e com as crianças muitas vezes vão perceber primeiro quando algo não está legal, quando alguém está se sentindo afetado no seu bem estar”, indica.

Mas ela reflete que não é possível a escola dar conta de tudo, uma vez que os profissionais da educação já estão sobrecarregados com suas funções cotidianas. “É importante que eles saibam e tenham onde se vincular, que não estejam sozinhos nessa batalha de promoção de saúde mental, mas que consigam se vincular dentro da comunidade com esses outros serviços de assistência à saúde, para que, de forma intersetorial, consigam encontrar esses caminhos para promoção da saúde mental”, afirma Mora.

Ela indica como prioridade que os professores também tenham acesso a recursos para trabalhar esse tema, além de promoção de espaços de escuta e rodas de conversa, onde, segundo ela, muitas vezes os adolescentes falam sobre suas questões emocionais.  “Eles vão ali dando nome para seus sentimentos e encontrando também no seu repertório de possibilidades quais as soluções possíveis, com quem eles podem contar, quais recursos podem ter, quais materiais. Os professores são também excelentes mediadores para encontrar essas fontes confiáveis de oferta de materiais sobre saúde mental. Porque a internet é um mundo, mas é preciso essa curadoria de materiais interessantes que possam ser úteis para que os adolescentes compreendam melhor o que estão sentindo, como lidar com esses sentimentos. E encontrar também pessoas de referência, de apoio não só entre pares, mas entre adultos que ajudem, inclusive, a acessar serviços nessa área quando for necessário”, analisa.

A professora pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fiocruz (EPSJV/Fiocruz) Grasiele Nespoli ratifica a importância do papel do espaço escolar. Para ela, para essa faixa etária esse é o lugar da construção de outras formas de sociabilidade, de construção e desconstrução no processo formativo do ser humano. “O ensino remoto é mediado por um computador, uma tela fria que de certa forma dificulta o diálogo entre eles.  Faz falta o corredor da escola”, explica e detalha: “O trabalho coletivo não é efetivo de forma remota, além do espaço da escuta, da reflexão e até do próprio sofrimento, que podem ser nomeados de diversas formas, como medo, tristeza, ansiedade...”.

Maria, personagem que abriu essa matéria, relatou que anda ansiosa para volta às aulas, e que essa é uma das principais coisas que conseguem resgatá-la das séries em plataformas de streaming.

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Escola Politécnica da Fiocruz promove diversas atividades durante a pandemia para apoiar estudantes no isolamento. Matéria também elencou páginas para pedido de apoio online ou por telefone.