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O SUS entre o público, o privado e o Future-se

Minuta do projeto de lei do programa permite que hospitais universitários federais firmem convênios com planos privados. Para críticos, mudança abre caminho para a implantação da dupla porta de entrada nos HUs, e deve ampliar iniquidades no atendimento
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 02/08/2019 11h42 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

Não foram poucas as vezes em que a EBSERH, a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, foi citada durante a apresentação do programa Future-se, lançado pelo Ministério da Educação (MEC) no dia 17. A empresa, que é estatal, mas de natureza jurídica privada, foi criada em 2011 durante o primeiro mandato de Dilma Rousseff, para fazer a gestão dos hospitais universitários federais. Atualmente, a EBSERH é responsável pela gestão de 40 de um total de 50 hospitais. 

Em vários momentos durante a apresentação do Secretário de Educação Superior do MEC, Arnaldo Lima, a EBSERH foi usada como exemplo do que o governo federal quer fazer com o Future-se, programa que pretende ampliar a capacidade de arrecadação das universidades junto ao setor privado, por meio da introdução de organizações sociais para fazer a gestão administrativa, financeira e inclusive acadêmica nas universidades e institutos federais, bem como da criação de fundos de investimento para, entre outros objetivos, explorar comercialmente o patrimônio das instituições.

Durante sua apresentação, Arnaldo Lima citou a EBSERH quando falou que as universidades direcionam 55% de suas despesas de custeio com cinco áreas: vigilância, gestão de mobiliário, água, limpeza e contratos de terceirização. “A gente quer isentar os reitores dessa tarefa”, explicou o secretário da Sesu, “assim como a EBSERH fez genialmente, para que os reitores, estudantes e professores pensem em pesquisa, pensem em dar aula”, disse.

Em outro momento, o secretário lembrou que a legislação brasileira estabelece que as empresas devem ressarcir o SUS sempre que um cliente de plano ou seguro privado de saúde receber atendimento na rede pública. “A gente vai fazer a mesma coisa. Os hospitais universitários que atenderem um público, eles também vão poder cobrar convênio e vão aproximar o setor privado aqui”, ressaltou Lima, citando as formas pelas quais o governo federal pretende fazer com que os hospitais universitários contribuam com a captação de recursos extraorçamentários para as universidades. 

A frase gerou confusão. Primeiro porque o artigo 3º da lei 12.550/2011, que criou a EBSERH, já assegura o ressarcimento, pelas operadoras, das despesas que os hospitais universitários têm com clientes de planos privados de saúde. E segundo por que há uma diferença entre receber ressarcimento das empresas e estabelecer convênios com elas para o atendimento de clientes de planos e seguros privados nos hospitais universitários – o que a lei da EBSERH não prevê.

Ou melhor, ainda não.  A minuta do projeto de lei de criação do Future-se, em consulta pública até o dia 15 de agosto, quer mudar isso. Entre as inúmeras alterações legislativas propostas, há uma que incide justamente sobre a lei de criação da EBSERH. No artigo 42, o governo propõe incluir no texto da lei da Empresa a possibilidade de que os hospitais universitários aceitem convênios com planos privados de assistência à saúde. A minuta ainda retira o trecho da lei que diz que os serviços de assistência à saúde prestados pelos hospitais universitários geridos pela EBSERH se inserem “integral e exclusivamente” no âmbito do SUS. 

Para especialistas ouvidos pelo Portal EPSJV, as mudanças abrem caminho para a instauração nos hospitais universitários do que se convencionou chamar de “dupla porta de entrada”: uma para os clientes de planos de saúde, outra para quem é atendido exclusivamente pelo SUS. Analistas alertam que combinada aos efeitos da Emenda Constitucional 95, a abertura para os convênios privados pode acarretar iniquidades no atendimento realizado pelos hospitais universitários, com a priorização dos clientes de planos privados em detrimento dos que dependem exclusivamente do Sistema Único, realidade de quase 80% dos brasileiros.


"Porta mínima" para o SUS

O médico sanitarista e vice-presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) Heleno Corrêa Filho critica a perspectiva de tornar legal a prática da dupla porta nos hospitais universitários. “O que está acontecendo agora é mais uma etapa no projeto de abrir o SUS para o setor privado, fazendo com que cada vez mais a porta pública se transforme na porta mínima, com uma porta grande para os convênios privados. É a concretização de um roubo do patrimônio público, do investimento estatal na construção desses hospitais”, critica. E ressalta: “Só que quando o sujeito que entrou pela porta do plano privado descobrir que tem câncer, que necessita de um transplante, que tem uma doença autoimune que necessita de um medicamento de alto custo vai ser encaminhado para a portinha do SUS”.

A pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Ligia Bahia ressalta que a legislação já previu a possibilidade de que os hospitais universitários firmassem convênios com empresas privadas no passado. Só que isso não teve o resultado esperado. “Essa é uma ideia velha apresentada como nova. Quando o [Adib] Jatene era ministro da Saúde, os hospitais universitários podiam ter convênios com planos privados. Mas isso deu errado. Os próprios hospitais deixaram de ter espontaneamente porque as empresas não querem ter convênio com hospital universitário. Há um preconceito, porque é público, tem estudantes fazendo atendimentos”, explica Ligia. Para ela, os hospitais universitários serão opção apenas dos planos de saúde muito baratos, que não resolvem o problema do financiamento dos hospitais. “Para dar certo as empresas tinham que querer, e isso tinha que de alguma maneira solucionar o problema de financiamento dos hospitais universitários. Não é esta lei que vai fazer isso”, avalia.

O diretor da Faculdade de Medicina da UFRJ, Roberto Medronho, concorda: “Você acha que um paciente que está pagando para ser internado vai querer ser examinado por alunos de Medicina? Muito provavelmente não”, pontua. Ele acrescenta que, no passado, os convênios com planos privados não significaram um aporte de recursos significativo para os hospitais universitários. “Uma unidade hospitalar universitária é muito mais cara que qualquer outro hospital porque ali você tem que ensinar e pesquisar. Mas o custo que se paga a mais pelo hospital universitário é revertido para a sociedade em novos profissionais qualificados para o Sistema Único de Saúde. É uma outra lógica, que não é mercadológica”, ressalta.

Medronho também alerta para os riscos de ampliação da iniquidade no atendimento com a dupla porta de entrada nos hospitais universitários. “Há o perigo de o número de leitos privados no hospital ir aumentando proporcionalmente ao longo do tempo, na medida em que o governo reduzir os recursos públicos pela Emenda Constitucional 95. E o gestor, para não fechar o hospital, terá que aumentar o número de leitos para a área privada. Isso é grave”, afirma, sintetizando os problemas que os convênios devem acarretar. “A aplicação disso não só fere princípios do SUS como trará dificuldades internas na gestão dessas unidades. Teremos pacientes que podem ser examinados pelos alunos e pacientes que não podem, como se fosse primeira e segunda categoria. Segundo: vai haver médicos que atendem pelos planos que vão ter uma remuneração a mais do que os que têm dedicação exclusiva ao SUS. É absurdo”.


E o ressarcimento?

Ialê Falleiros, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), destaca que os planos privados já estão presentes hoje em muitos hospitais universitários pelo país, e aponta que as mudanças propostas pelo Future-se devem garantir “segurança jurídica” para a ampliação da prática. “É como se o Future-se fosse mesmo uma abertura total onde já se via algumas brechas, dando toda a legitimidade jurídica para essas iniciativas”, avalia. Para ela, essa é a única “novidade” prevista pelo programa, ainda que o governo federal cite o ressarcimento feito ao SUS pelas empresas de planos de saúde como uma nova possibilidade de captação de recursos pelos hospitais universitários. “Isso já está na lei da EBSERH”, reforça a pesquisadora.

O que não impediu que representantes das operadoras reagissem favoravelmente ao lançamento do Future-se, como fez a Abramge, a Associação Brasileira de Planos de Saúde, que em nota destacou ser favorável às cobranças de “eventuais atendimentos”. “Essa é uma grande oportunidade para o Ministério da Educação participar mais ativamente das políticas de Estado do país no que tange à saúde”, diz o texto.

Ialê destaca que as empresas vêm mudando de tom em relação ao ressarcimento ao SUS à medida que avança o que ela chama de “entrelaçamento” entre público e privado dentro do sistema de saúde – um processo que já vem de longa data no país. “Desde a aprovação da Constituição de 1988 houve o deslocamento de uma visão da saúde como um direito para uma que a vê como um serviço, que pode ser prestado por ente público, por ente privado ou por parcerias entre os dois”, destaca Ialê, e complementa: “Com o Future-se você vê claramente a possibilidade de utilização do bem público com funções privadas, ou a cessão de espaços públicos para o setor privado”.

Ela lembra que a lei 9.656, que em 1998 instituiu o ressarcimento ao SUS pelos planos privados, já foi inclusive alvo de uma ação direta de inconstitucionalidade proposta ao Supremo Tribunal Federal (STF) pela Confederação Nacional da Saúde, entidade patronal que reúne os estabelecimentos privados ou filantrópicos prestadores de serviços de saúde no Brasil. Em 2018, no entanto, o STF decidiu pela constitucionalidade do artigo da lei 9.656 que criou o ressarcimento. “Os empresários deixam de ser contra o ressarcimento ao SUS – desde que o SUS seja deles também, que seja misturado com o setor privado”, destaca Ialê, complementando que o Future-se é mais um passo nesse sentido.

Ela avalia que à medida que aumenta o entrelaçamento entre as empresas, a EBSERH e os hospitais universitários, o ressarcimento passe a funcionar como um reinvestimento do capital no próprio setor, dinamizando as empresas de planos privados.  “À medida que o hospital universitário for sendo ‘loteado’ para os planos privados, o ressarcimento deixa de ser um problema para as empresas porque elas já vão ter inúmeras vantagens ali dentro: as instalações são públicas, boa parte dos funcionários vão ser públicos, os melhores médicos atuam no âmbito dos hospitais universitários, o campus é público... Enfim, toda logística está fundada no público, ao mesmo tempo em que se vai prestar um serviço e cobrar por ele. É muito vantajoso para as empresas”, destaca. Mas a minuta do projeto de lei do Future-se não deixa claro se os convênios com planos privados firmados pelos hospitais universitários serão passíveis de cobrança de ressarcimento ao SUS, e nem como isso se daria.

Atualmente o ressarcimento é responsabilidade da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que é quem notifica as operadoras de planos privados a respeito dos atendimentos feitos pelo SUS a seus beneficiários e destina os valores recolhidos ao Fundo Nacional de Saúde. No ano passado, segundo a agência, foram ressarcidos R$ 738 milhões. “As devoluções ao SUS são irrisórias. E, ainda por cima, não há transparência e nem controle popular sobre a contabilidade da ANS com relação a quanto é ressarcido ao SUS pelos planos privados”, critica Heleno Corrêa Filho, do Cebes, que complementa ainda que o dinheiro não volta diretamente para a instituição que realizou o atendimento. “O hospital universitário não tem nenhum ganho direto com isso”, reitera.

Para Roberto Medronho, ainda que em uma primeira análise uma proposta de beneficiar diretamente com o ressarcimento a instituição que realizou o atendimento possa parecer interessante do ponto de vista da captação de recursos extraorçamentários, isso pode gerar iniquidades graves dentro do sistema. “Digamos que na fila para uma cirurgia eletiva haja um paciente que tem seguro saúde e um paciente que não tem. Em um contexto de falta de financiamento, é grande a possibilidade de que o paciente que tem seguro seja operado com a prioridade, porque haverá o ressarcimento do plano de saúde para aquela unidade hospitalar que está carente de recursos. E isso pode criar uma iniquidade, não por má-fé, mas por uma questão de sobrevivência do hospital. E isso fere um princípio básico do SUS”, alerta.


Incertezas para formação e pesquisa

A perspectiva de ampliação da presença do setor privado nos hospitais universitários federais a partir das mudanças propostas pela minuta do projeto de lei do Future-se, segundo Heleno Corrêa Filho,  tornará mais difícil colocar em prática uma política de formação de trabalhadores na saúde condizente com as necessidades do SUS. “Há uma lei que diz que a formação de recursos humanos para a saúde deveria ser feita em comum acordo entre o SUS e o Ministério da Educação, mas isso jamais foi praticado”, critica Corrêa. E completa: “O Sistema de Credenciamento de Cursos Universitários ignora solenemente as propostas que o Conselho Nacional de Saúde envia para o MEC mensalmente, desde o governo Lula, para adequação do sistema formador de recursos humanos das universidades, inclusive as públicas. Com o Future-se isso vai ficar ainda mais difícil”. 

Heleno também alerta para a possibilidade de que as atividades de extensão realizadas pelos hospitais universitários percam espaço a partir do Future-se. “Atividades de atenção à [Estratégia] Saúde da Família em bairros vizinhos à universidade, o envio de estudantes para investigar as necessidades de atendimento de bairros na periferia das cidades  são, por exemplo, atividades de extensão que custam dinheiro. Quem está pensando em economizar e captar recursos no mercado privado não vai fazer”, opina. E conclui: “A extensão de serviços comunitários tende simplesmente a desaparecer. Eu considero isso uma tragédia”.

O programa gera incertezas também em relação aos rumos da pesquisa que é realizada dentro dos hospitais universitários. “A maior parte do aporte de recursos para pesquisa é do setor público, em especial na saúde. E isso no mundo todo. Pesquisa é cara. Mas os resultados dela podem ter um impacto fabuloso para o Sistema Único de Saúde. Mas se você pensar apenas mercadologicamente, o dinheiro investido em pesquisa será no interesse de uma determinada indústria, seja ela farmacêutica, de equipamentos hospitalares. Caso contrário não vai ter recurso. Há um risco de isso afetar várias áreas de pesquisa”, pontua Roberto.  

A professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz Ialê Falleiros tem visão semelhante. “Eu acho que o capital quer a expertise da universidade para pesquisa e para desenvolvimento tecnológico também. Quer o pacote inteiro: os pesquisadores, os médicos, os professores, a infraestrutura. O interesse claramente é vincular essas pesquisas aos propósitos empresariais, e os hospitais universitários têm um acúmulo importante na área de pesquisa o qual eu acredito que o empresariado não vai querer abrir mão”.

O Future-se fica em consulta pública até o dia 15 de agosto, e pode ser acessado através deste link: https://isurvey.cgee.org.br/future-se/cadastro.

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Comentários

Gostaria de ver uma pesquisa que aborde a Fiotec, A OS da Fiocruz anda muito fora das discussões internas, o que faz parecer que não existe.