Desde a sexta-feira passada (17) o Rio de Janeiro está oficialmente em estado de ‘calamidade pública’. Fruto de uma decisão do governador em exercício, Francisco Dornelles, o decreto 45.692 afirma que “a grave crise financeira” do estado pode levar a um "total colapso na segurança pública, na saúde, na educação, na mobilidade e na gestão ambiental". Os alunos, professores e funcionários das escolas da Fundação de Apoio à Escola Técnica (Faetec) vinculada à Secretaria de Ciência Tecnologia e Inovação sofrem as consequências do ‘colapso’ em uma situação que bem poderia ser caracterizada como ‘calamidade’ há algum tempo.
Sucateamento
Os trabalhadores terceirizados, contratados para cuidar de áreas como vigilância, manutenção, limpeza e cozinha, estão sem receber seus salários e benefícios há cinco meses. Os servidores da Faetec – assim como todo o funcionalismo do governo estadual – tiveram por diversas vezes os salários atrasados e parcelados. Nas escolas, além de problemas de infraestrutura e manutenção predial, desde 2015 falta o básico: papel higiênico, folha de papel para fazer prova, caneta piloto para escrever no quadro. Dependendo da unidade, a lista tem variações. Na Escola Técnica Estadual Juscelino Kubistchek (ETE JK), o curso técnico em Análises Clínicas funciona sem a maior parte das aulas práticas por falta crônica de equipamentos e insumos. E, segundo professores da unidade, os equipamentos disponíveis não foram comprados pelo estado, mas pelos próprios docentes através de financiamento de pesquisas pela Faperj.
Assim como em São Paulo, o estopim da mobilização dos alunos por qualidade na educação profissional foram problemas na merenda. Em várias unidades, jovens que estudam das 7h da manhã às 18h da noite tiveram suas refeições reduzidas por dias a fio a um cardápio de arroz, feijão e ovo. Na ETE Ferreira Viana, no Maracanã, ao invés de ovo, se comia farofa. Na ETE República – localizada no mesmo campus onde fica a Presidência da Faetec – a cozinha estava infestada por ratos, baratas e outras pragas.
“É isso que o governo quer. Que as escolas vão se precarizando de pouquinho em pouquinho, não vai tendo funcionário, limpeza, alimentação, os alunos começam a desistir e a partir daí se cria um factoide de que o número de alunos está diminuindo como justificativa para fechar salas de aula, escolas. O mesmo discurso que o governo de São Paulo faz”, analisa Malcon Benedito Ozório, 17 anos, que cursa o 1º ano do curso técnico de Guia de Turismo da ETE JK e faz parte da comissão de comunicação organizada pelos estudantes que ocuparam a escola. Ele completa: “A luta é por coisas básicas. Antigamente, o movimento estudantil lutava para melhorar, por bandeiras de ampliação. Agora é pelo mínimo necessário para a escola ter condição de funcionar”.
Greve e ocupações
Os profissionais da educação ligados à Faetec entraram em greve no dia 2 de março. Após quase um mês de mobilização que contou com a participação dos alunos de várias escolas da rede foi a vez dos estudantes votarem a favor da ocupação das escolas. Depois de assembleia de alunos realizada no dia 31 de março, a ETE JK foi a primeira a ser ocupada.
“Até então estávamos apostando em uma greve ocupacional. Os alunos vinham para a escola e tínhamos atividades. Íamos para a rua nos atos, nos protestos. Só que começamos a perceber que isso não estava adiantando. Porque a gente ia para a porta do Palácio Guanabara, da Alerj e eles não estavam nem aí. Avaliamos que teríamos que agir com mais dureza. O Mendes [colégio estadual na Ilha do Governador] foi ocupado [no dia 21 de março], os alunos da rede estadual começaram a ocupar outras escolas. E aí nós chamamos uma assembleia e decidimos ocupar também”, conta Malcon.
Das 14 unidades da rede, 11 chegaram a ser ocupadas pelos estudantes. Dez continuam ocupadas. Em todas as ETEs a decisão foi tomada a partir de assembleias e a negociação com o governo acontece através do GUF, sigla para Grêmios Unidos da Faetec. “A gente construiu uma pauta unificada com 12 pontos de reivindicação [detalhados em 31 subitens]. Dentre eles, destaco a quitação salarial. Muitos professores e funcionários terceirizados estão há meses sem receber e isso é o que mais indigna a gente. Nós não admitimos ter que estudar nessa situação de professores e terceirizados sem receber”, afirma Jonathan Cadete, 19 anos, membro do GUF pela ETE República ocupada desde o dia 11 de maio.
Os alunos pedem mudanças na gestão das unidades, retirando o poder de decisão das direções para assembleias gerais com participação de toda a comunidade escolar, inclusive dos grêmios. Também reivindicam que o presidente da Faetec seja escolhido não através de nomeação do governo estadual, mas a partir de eleições diretas. Outro pleito – a escolha das direções das unidades – foi garantido tanto para as unidades da Faetec quanto para os colégios estaduais vinculados à Secretaria estadual de Educação (Seeduc). A lei 7.299/16 foi sancionada pelo governador em exercício no dia 6 de junho. As eleições serão por votos ponderados, na proporção de 50% para os professores e funcionários administrativos e 50% para alunos e pais de estudantes menores de 12 anos.
Também no quesito transparência, os alunos querem a abertura das contas e contratos da Faetec, maior rigor na fiscalização da prestação de serviços das empresas terceirizadas e reformulação da Sides, sigla para Sistema de Descentralização, uma verba destinada ao custeio das escolas. Na ETE JK, a última verba Sides foi recebida em outubro de 2015. O valor foi de R$ 2 mil. “Eles estavam fazendo milagre com o dinheiro, mas avisaram para a gente que a escola só estava conseguindo funcionar em março porque já estávamos em greve. As aulas já teriam parado mesmo sem a ocupação”, conta a professora Maria Clara Fernandes. Já a ETER recebeu apenas três meses da Sides em 2015. “Muitas vezes os professores e nós, alunos, tínhamos que arcar com os custos do papel para fazer prova. Uma situação surreal”, observa Jonathan.
Outra reclamação é o inchaço do número de alunos nas turmas. O ideal, segundo os estudantes, é que sejam 35 pessoas por turma. Hoje, há turmas com 50. “No dia seguinte à nossa ocupação, o vice-presidente da Faetec, Ubirajara [Cabral] veio ao JK. Expusemos todas as pautas, expusemos a situação da sala lotada. E ele afirmou que contava com a evasão dos alunos. Como o administrador conta com a evasão de alunos? A lotação poderia até ser justificada se o objetivo fosse encher a escola porque se quer muitos alunos aprendendo. Mas contar com a evasão? É muito chocante. Você conta que os alunos vão simplesmente desistir”, critica Malcon Ozório. Na avaliação de Jonathan Cadete, a ETE República já se encontra nessa situação: “Já chegamos a ter mais de quatro mil alunos e hoje temos 2,5 mil. Aos poucos, os cursos diminuem, as vagas diminuem, o número de alunos diminui, os concursos para professor diminuem. A gente sente indignação porque nitidamente é um processo para acabar com a nossa escola, com os cursos. E nós não queremos. É nosso direito”.
Multiplicação de CVTs, asfixia das ETEs
Anos antes da criação do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), em 2011, o Rio de Janeiro já vinha servindo de laboratório de outra política federal de educação profissional com ênfase na oferta dos cursos rápidos conhecidos como FIC – Formação Inicial e Continuada. O estado aderiu fortemente à criação dos Centros de Vocação Tecnológica (CVTs) fomentados pelo Ministério da Ciência e Tecnologia na época com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O primeiro CVT foi inaugurado em setembro de 2008 no Parque Muísa, em Duque de Caxias. Oito anos depois, já são 94 unidades.
A opção do estado pela multiplicação dos CVTs é, na avaliação dos alunos que ocupam as escolas técnicas, um dos equívocos que levou à precarização das unidades que oferecem ensino fundamental, cursos técnicos de nível médio e até mesmo graduações.
“A gente viu cada vez mais CVTs sendo construídos enquanto as escolas deixavam de ser assistidas, com infraestrutura e qualidade. Mas só inauguram CVTs e é assustador porque parece que esqueceram, pararam de olhar para nós. Mas para eles é muito prático. Têm inaugurações para mostrar e colocam milhares de alunos ali dentro, rapidinho, enquanto a gente durante três anos tem que lidar com todas as situações de precariedade”, critica Jonathan.
Um dos pontos de reivindicação unificada é que não se criem mais CVTs. “As verbas de investimento devem ser remanejadas para as escolas técnicas, garantindo as reformas necessárias nas unidades”, afirma o estudante da ETE República. Ainda segundo a pauta, os custos de manutenção devem ser revertidos: menos para os CVTs e mais para as ETEs.
Negociações
As negociações com o governo do estado estão acontecendo de duas formas. Audiências públicas e duas reuniões aconteceram na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). Nessas ocasiões, os deputados estaduais da Comissão de Educação e membros da Defensoria Pública e do Ministério Público fazem a mediação. De um lado, as pautas dos estudantes e dos profissionais da educação grevistas. De outro, as respostas do secretário de Ciência, Tecnologia e Inovação, Gustavo Tutuca, e do novo presidente da Faetec, Alexandre Vieira. As negociações também acontecem em reuniões diretas entre estudantes e governo.
Além das eleições diretas para diretor, por enquanto, os estudantes listam como vitórias do movimento de ocupação a conquista da vistoria de engenheiros para avaliar os problemas estruturais das escolas, o compromisso de ofertar uniforme gratuito, melhorias na forma de uso do RioCard, aumento na quantidade de passagens, compromisso de respeito ao número de 35 alunos nas salas de aula e uma nova dinâmica no Conselho Escolar.
Já a pauta dos profissionais da Faetec sofreu uma derrota na última quarta-feira (22), quando foi aprovado no plenário da Alerj o PL 1.786/2016, que reduz a carga horária de 40h para 30h apenas para os trabalhadores vinculados à Seeduc. A emenda que incluía a Faetec foi retirada após uma negociação que garantiu a tramitação do projeto com urgência, como forma de tentar convencer o Sindicato dos Profissionais da Educação do Rio (Sepe) a decretar o fim da greve de três meses.
Em meio à calamidade pública decretada por Dornelles que teve como objetivo a autorização de empréstimo do governo federal da ordem dos R$ 2,9 bilhões dos quais nenhum centavo será destinado ao colapso da educação ou da saúde, os alunos da ETE República mandaram o seguinte recado: “Esse dinheiro foi destinado à segurança dos jogos olímpicos. Tem gente há cinco meses sem receber um centavo porque o estado não paga. Tem servidor com o salário parcelado. Tem o caos na saúde. Isso só prova que a prioridade de nossos governantes não é o povo”.