Há algumas décadas o movimento negro, não só no Brasil, levanta uma bandeira que reúne o direito ao aborto e o da maternidade: a de justiça reprodutiva. O pressuposto é de que a decisão de gerar um bebê vai muito além da manutenção de uma gestação, mas passa pelo direito de exercer a maternidade com a garantia do acesso à saúde, educação e segurança. Este último item é bastante destacado pelo movimento negro já que, de acordo com pesquisa divulgada pelo Instituto Sou da Paz em novembro de 2021, a taxa de mortalidade por armas de fogo entre as crianças e adolescentes negros é 3,6 vezes maior do que entre as brancas.
“É impossível falar de direito ao aborto se a gente não falar das outras problemáticas que afetam a trajetória reprodutiva de mulheres negras. Porque se a gente cair nessa falácia de apenas pautar o aborto, deixamos de lado a compreensão de que as violências e as violações sobre a vida da população negra não são ocasionais. [É necessário pautar isso] para que a gente possa afirmar que mulheres negras devem decidir, afirmar a sua trajetória reprodutiva e acessar a saúde de maneira saudável, e que podem também determinar os seus próprios destinos reprodutivos”, detalha Lia Manso, integrante da ONG Criola.
Um exemplo bastante lembrado pela ONG Criola é a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) realizada em 1992, que investigou os métodos de contracepção e as informações sobre saúde reprodutiva oferecidas às brasileiras. O principal motivador da Comissão foi o dado do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgado em 1986, de que 44% das mulheres em idade fértil tinham realizado o procedimento de esterilização, um índice que chegava a 79% no Maranhão. De acordo com o relatório final da investigação, a opção por uma saída irreversível se dava em função da ausência de outros métodos contraceptivos, falta de acesso à informação e inexistência de condições para o aborto seguro. Entre as recomendações do documento estava a criação de programas que tratem do planejamento familiar e de atenção à saúde da mulher.
A professora da Universidade de Brasília (UnB) Flávia Biroli comenta que as pautas do aborto e direito à maternidade correm de forma paralela no Brasil e essa junção, a partir do conceito de justiça reprodutiva, tem sido pautada principalmente pelos coletivos de mulheres negras. Acrescentando que a questão reprodutiva ainda é pouco estudada a partir do corte de renda, ela fala da importância de se discutir trabalho e o direito à escolha sobre a maternidade. Dados do terceiro trimestre de 2021 da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (PNAD) Contínua mostram que as mulheres são minoria na população ocupada (43,7%) e maioria entre a força de trabalho subutilizada (57%). Nesse último caso, a justificativa mais citada para estarem afastadas do mercado de trabalho foram os afazeres domésticos (27%). Essas informações estão presentes nos microdados da pesquisa realizada pelo IBGE e foram analisadas pelo Núcleo de Pesquisa de Economia e Gênero (NPEGen) da Universidade de Campinas (Unicamp). O Boletim Mulheres no Mercado de Trabalho, divulgado em janeiro, destaca ainda que o rendimento mensal das mulheres negras e indígenas corresponde a 70% da média salarial geral. Segundo Biroli, essa seria, então, uma parcela da população que não pode procurar emprego por precisar cuidar dos filhos, o que remete, por exemplo, à importância da luta pelo acesso à creche. De acordo com o último relatório de monitoramento das metas do Plano Nacional de Educação (PNE), divulgado em 2020 e realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), a cobertura da educação infantil para crianças de zero a três anos chegou a 36% em 2018. O déficit é de 1,5 milhão de vagas. A cobertura mais baixa está na região Norte (19,2%), mas mesmo a região Sudeste, que lidera a taxa de cobertura, atendia 42,8% das crianças nessa faixa etária. A meta do PNE é que até 2024, 50% das crianças de até três anos tenham acesso à creche.
“Precisamos de política pública de creche e de ensino integral. Precisamos de investimento em saúde pública. Quando se fala em cuidado, falamos de tudo isso. São relações interpessoais atravessadas pela legislação vigente, por política pública”.
Flávia Biroli, pesquisadora da UnB
Beatriz Sanchez, pesquisadora no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), concorda que os debates sobre direito ao aborto e à maternidade costumam caminhar separados no Brasil e seu ponto de encontro tem sido a discussão sobre justiça reprodutiva, um caminho diferente do que foi tomado pelas argentinas. A prova disso, para Sanchez, foi a aprovação no país vizinho, no mesmo período, da maternidade como tempo de trabalho para cálculo de aposentadoria e do auxílio mensal para mães de baixa renda, chamado de plano Mil Vidas. No primeiro caso, as mulheres podem incluir um ano de contribuição previdenciária para cada filho e dois em caso de deficiência ou adoção. A idade mínima para aposentadoria das mulheres na Argentina é de 60 anos, com 30 anos de contribuição. Já o auxílio mensal será destinado a mães que ganham menos de um salário mínimo, atualmente em 32 mil pesos, cerca de R$ 1.320. Para Biroli, o reconhecimento do trabalho materno na aposentadoria é tardio. Ela defende que é preciso entender o ‘cuidado’, pouco ou nada remunerado, exercido especialmente por mulheres, como problema público, de modo a pautar a construção de políticas públicas, especialmente nas questões trabalhistas. E, de acordo com a cientista política, no Brasil, a Reforma Trabalhista aprovada como Lei 13.467, em 2017, vai no sentido contrário, agravando ainda mais o cenário. “A nova legislação trabalhista brasileira cria uma situação em que o trabalhador tem ao mesmo tempo dificuldade para ter um trabalho com remuneração suficiente e está cada vez mais disponível para o trabalho remunerado em diferentes horários. E como você cuida de uma criança pequena assim? É muito difícil você ter que pensar em rotinas de cuidar adequadas sem ter previsibilidade”, reflete, referindo-se, entre outras medidas, à aprovação do trabalho intermitente.
Ela também faz uma distinção sobre o cuidado enquanto trabalho, que, nesse caso, é “incontornável”. “Quando a gente fala da organização social do cuidado, falamos de construir condições adequadas para o cuidado que é incontornável, como o cuidado com as crianças, o cuidado com as pessoas que adoecem, o cuidado com as pessoas idosas. E esse é justamente o trabalho com os maiores níveis de exploração, porque é um trabalho intenso cotidiano e que não é remunerado, defende. Biroli pontua que a pandemia evidenciou o quanto essa questão está em nosso cotidiano e tornou o debate em torno do cuidado ‘mais honesto’. No entanto, ela avalia que é preciso relacionar essa constatação ao debate de políticas públicas. “Precisamos de política pública de creche e de ensino integral. Precisamos de investimento em saúde pública. Quando se fala em cuidado, falamos de tudo isso. São relações interpessoais atravessadas pela legislação vigente, por política pública”.
Ainda que as pautas sobre direito ao aborto e a criação de estruturas e políticas públicas para que as mulheres e as famílias não sejam as únicas responsáveis pelos cuidados dos filhos sejam antigas, Sanchez considera que a situação se agravou com a intensificação de políticas neoliberais, que vêm reduzindo as responsabilidades do Estado em prover o acesso à creche, por exemplo. Uma demanda presente desde as primeiras Conferências Nacionais de Políticas das Mulheres, na década de 1970, e no relatório da primeira Conferência Mundial de Mulheres, realizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1975. O texto defende a liberdade de escolha das mulheres e casais de quando ter ou não uma criança e aponta que os governos devam investir em creches como elemento fundamental para alcançar uma maior igualdade entre homens e mulheres.
Na avaliação de Lia Manso, as creches são a porta de entrada para uma série de direitos às mulheres. “Para além de ser um espaço de infraestrutura, é um espaço também de construção de redes e de relações que vão possibilitar o acesso a outros direitos, inclusive direitos ligados à assistência ao SUS [Sistema Único de Saúde]. Você passa a ser também alvo da política pública e participar da construção ali. As mulheres relatam maior participação quando existe um contexto de creche para a construção de redes institucionais e comunitárias”, conta.
Em mais um exemplo de iniciativas que reúnem tanto pautas de direito ao aborto como à maternidade, estão os projetos propostos e aprovados no nível municipal pela vereadora assassinada Marielle Franco: o Programa de Atenção Humanizada ao Aborto Legal e Juridicamente Autorizado no Âmbito do Município do Rio de Janeiro, nº 16/2017, que ainda está em análise na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, e o projeto de Lei 17/2017, que institui o Programa Espaço Infantil Noturno para Atendimento à Primeira Infância no Município. Aprovado em 2018 sob a Lei nº 6419, o programa ainda não foi regulamentado. A criação de creches no período noturno também foi proposta pelo deputado Alexandre Frota (PSDB-SP) em 2020. O projeto foi apensado ao PL 1568/2015 de autoria do Delegado Waldir (União-GO) que faz o mesmo pedido.