Entre os mares de morros da paisagem, uma casa bem antiga, pastagem ao fundo e um punhado de rochas à mostra. No terreno de vegetação rasteira, muita braquiária e gado acima da capacidade. Menos de 15 anos depois, o mesmo local, mas outro horizonte: não dá mais para contar a quantidade de árvores, a diversidade de cultivos e de animais. A beleza se manifesta na riqueza dos pássaros, na abundância das águas e na nova morada, tingida com terra e na qual as plantas dão contornos às paredes.
No contraste entre as duas imagens, muito trabalho desempenhado por um casal camponês, Gilvania Domiciano e Anacleto Carlesso, que, construindo redes de solidariedade, conseguiu regenerar o sítio hoje denominado Guapuruvu, uma experiência agroecológica na zona rural de Divino, Minas Gerais. Nada escapou à transformação. “Até as formigas diminuíram de tamanho”, brinca Gilvania, referindo-se à presença das lava-pés, que substituíram as cabeçudas grandes, consideradas bioindicadoras de degradação ambiental. “A gente mudou para cá querendo fazer uma revolução”, relembra Anacleto. Ao decidir que queria ter o seu pedaço de terra para trabalhar, o casal tinha convicção pela agroecologia “para honrar toda a história que já viveu”, conta Anacleto. Um dos capítulos desta história se iniciou bem distante dali, no município da Lapa, Paraná, em 2005, quando a trajetória deles se entrelaçou. Ela, nascida e criada em Divino, filha de meeiros e militantes do movimento sindical. Ele, filho de sem-terra assentados em Fraiburgo, Santa Catarina. Ambos indicados por movimentos sociais para compor a primeira turma do curso de Tecnólogo em Agroecologia, desenvolvido em parceria pela Via Campesina e pelo Instituto Federal do Paraná (IFPR). Nesse enredo, que vai além da história de um casal, são evidenciadas relações de trabalho diferentes das que costumam pautar o dia a dia da vida nas cidades e mesmo no campo, enriquecidas que são pelo tecido diverso de atores que constroem o movimento agroecológico na Zona da Mata mineira – e em muitos outros cantos do Brasil.
O encontro com a agroecologia
Do histórico de intoxicação paterna à luta contra os agrotóxicos, o encontro com a agroecologia foi mobilizado no âmbito das Comunidades Eclesiais de Base da região. Quando Gilvania nasceu, a família se dedicava ao plantio de café - cultura central na economia da Zona da Mata mineira - e a uma agricultura sem venenos, que tempos depois ela reconheceu como “agroecologia”, nome com o qual só teve contato muitos anos mais tarde, participando da Pastoral da Juventude Rural (PJR).
Já Anacleto vivenciou até os 11 anos uma agricultura tradicional, sem agrotóxicos, com pouca ou nenhuma adubação química, mas com uso de fogo para preparar os plantios, sobretudo de grãos. Depois, viu a conversão para a agricultura convencional, quando o pai fez uma sociedade com um vizinho para o plantio de alho e se envolveu num projeto de fruticultura do serviço de extensão do estado, que chegou com um pacote tecnológico que, segundo ele conta, vinha “com os agrotóxicos, com os adubos químicos”.
Entre as lembranças do trabalho ao lado do pai nessa época, marcou a imagem do sereno de agrotóxico que caía nele e no irmão. “Era uma tobata que a gente tinha, então o pai ia aplicando o pulverizador e nós ficávamos próximo, puxando as mangueiras. Usava máscara, mas o restante das roupas era roupa comum", recorda. Depois, o pai se desafiou a plantar usando caldas alternativas e a fazer cultivos agroecológicos, sob a orientação de um projeto de extensão.
Nesse mesmo período, Anacleto foi estudar em uma escola agrícola do MST, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, que não mencionava ainda a agroecologia, mas tinha aulas relacionadas ao campo, com disciplinas de Zootecnia, Agricultura e Agricultura Alternativa. “O primeiro choque de realidade que tive foi sair do campo para estudar na escola do ensino médio na cidade. Passava 1h30 dentro de um ônibus para estudar à noite, depois de ter trabalhado o dia todo”, conta. Ao concluir o ensino médio, ele se tornou monitor de campo na escola 25 de Maio, que tinha o curso técnico agropecuário com ênfase em agroecologia e, depois, foi chamado para fazer o tecnólogo. No regime de alternância entre o tempo escola e o tempo comunidade, entre teoria e prática, aconteceu o encontro com Gilvania e o enlace definitivo com a agroecologia.
O sonho do próprio pé de chão
No fim de 2012, o casal já formado mudou para Minas Gerais e tentou ser meeiro, mas não encontrou lavouras disponíveis . Na sequência, Gilvania foi convidada a atuar como educadora na Escola Família Agrícola Paulo Freire, em Acaiaca, onde Anacleto passou a ser voluntário. Depois, veio a proposta para o casal retornar a Divino, numa oportunidade de comprar e dividir o terreno com um irmão da Gilvania e um amigo.
Relatos indicam o legado de duas ou três décadas de pastagem na área, além do plantio de tomate e bastante roça branca, sobretudo de milho, cerca de 40 a 50 anos atrás. “O pessoal falava que não dava nem café, porque a altitude não chega a 700 metros”, conta Gilvania, que completa: “A face do terreno faz com que o sol venha desde 5h, 5h30 da manhã, até umas sete horas da noite nos dias mais longos.
Foram inúmeros os desafios enfrentados: 2013 a 2016 foram anos de forte seca. O acesso das três famílias a recursos do crédito fundiário não se concretizou, o que fez o casal recorrer a um empréstimo em uma cooperativa de crédito. Além do valor do terreno a ser quitado, havia a necessidade de investir na parte produtiva e estrutural, “desde a formação das lavouras, construção de estrutura: casa, terreiro, secador...”, enumera Anacleto. A solução foi alugar uma casa em uma comunidade vizinha por três anos e trabalhar fora do sítio para conseguir renda. Desde então, eles conciliam trabalhos externos com atividades dentro do sítio, em um processo gradual de construção de autonomia econômica vinda apenas da propriedade.
Enquanto a terra descansava, foi o tempo de o casal juntar recursos, construir a nova casa e intensificar os manejos agroflorestais, que buscam reproduzir o equilíbrio ecológico presente nas florestas naturais. Na mesma área de lavoura de café já existente, foi iniciado o plantio de adubação verde (que fornece nutrientes para o solo), de árvores e de bananeiras, a fim de ampliar a diversidade de espécies que atuam como quebra-vento umas para as outras, manter matéria orgânica, água, sombreamento e um clima agradável na lavoura, além de favorecer a presença de animais polinizadores e a produtividade dos cultivos.
A intensa experiência de participação social que eles já carregavam desde a infância continuava a se fazer presente. Em 2013, participando de um intercâmbio agroecológico sobre poda na lavoura de café, identificaram o desejo de algumas famílias em avançar no processo de certificação orgânica. Eles passam a fortalecer esta iniciativa e contribuem na criação do Grupo de Produção de Café Orgânico de Divino, que começa a construir mutirões de podas em lavouras em 2014 – em 2022, esse grupo seria formalizado como a Associação dos Agricultores e Agricultoras Agroecológicos e Orgânicos da Zona da Mata Mineira.
Depois de o grupo visitar e entrar em contato com uma cooperativa local – dos Agricultores Familiares de Poço Findo e Região, a Coopfam, onde conheceram experiências de produção e beneficiamento de café orgânico, em 2016 Gilvania, Anacleto e outras três famílias iniciaram o processo de filiação àquele coletivo. Em 2017, o casal finalmente se muda para as suas terras no sítio Guapuruvu e obtém, no ano seguinte, a certificação orgânica da produção. A primeira entrega de café das quatro famílias certificadas para a Coopfam aconteceu em 2018 em conjunto com agricultores de Araponga.
Desde então, todo o processo de certificação orgânica da produção passa pelo acompanhamento mensal em grupo e por inspeções anuais da Coopfam, por um registro minucioso de informações e pelo cumprimento de normas rígidas de produção, incluindo a origem dos insumos, as formas de colheita, beneficiamento, armazenamento e comercialização. Hoje oito famílias se auxiliam de forma mútua nesse processo – entre elas estão presentes vínculos de parentesco e de participação social em organizações sindicais, de juventudes, além da filiação a outra cooperativa, voltada à comercialização de produtos. “A gente acaba sendo privilegiado pelas relações que estabeleceu. Tem um grupo de produção agroecológica. É diferente de quem mora em uma comunidade e só ele que produz sem veneno, então a pessoa fica isolada e, até para encontrar meios de comercialização, fica difícil. Se fosse sozinho, a gente realmente não dava conta”, avalia Gilvania.
Gilvania e Anacleto também colaboram ativamente na construção de um sistema participativo de garantia, que visa à certificação, com orgânicos, dos alimentos e produtos na Zona da Mata. Até 2024, Gilvania era presidenta da associação Floriô, que representa juridicamente o sistema diante do Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) e é responsável por avaliar se as famílias agricultoras estão cumprindo as normas da produção orgânica.
Trabalho em mutirão e celebração
Quatro famílias que compõem o grupo do café orgânico e outras três que moram próximas estabelecem processos cooperativos de trabalho por meio de mutirões. A atividade acontece em um sistema de rodízio toda segunda-feira, de modo que cada dia de trabalho acontece na casa de um dos membros, até percorrer todo o grupo e reiniciar a dinâmica. Nos períodos em que há necessidade de aumentar o número de mutirões, as sextas-feiras também são dedicadas ao trabalho coletivo.
No mutirão, a partilha não é só do trabalho e dos alimentos, mas dos saberes e das práticas acumulados na experiência vivida e refletida, que vai além da prestação de um serviço especializado. “Se for com a roçadeira, o pessoal aqui do mutirão sabe qual planta deixar, qual planta tirar. É um desbrote, uma poda... Então, não é um serviço que daria para pagar outras pessoas para fazerem”, exemplifica Gilvania.
Em geral, o planejamento inicia aos domingos, com instruções dadas por quem recebe o mutirão sobre qual serviço será realizado, os instrumentos a serem levados e o local de encontro. A atividade começa às 7h30 com o café, o grupo trabalha até 11h, faz uma hora de almoço e, por volta das 13h30 toma um suco oferecido pela família anfitriã. As atividades se estendem até 16h e o dia termina com a “resenha”, momento em que há partilha de alimento e confraternização. Uma vez por mês, alguém oferece um churrasco para integração do grupo.
O casal destaca que os mutirões estão quebrando uma lógica individualista na região e que a vivência instiga a ultrapassar a execução das tarefas e refletir sobre o trabalho. “Quando eu conto pro pessoal que a gente tem um grupo de sete famílias que trabalham coletivo, o pessoal fala: ‘ah, isso era coisa do meu avô’. No máximo, o pai dele fazia essa vivência de mutirões. Isso não existe mais aqui na região. A gente está também resgatando, trazendo uma questão cultural de novo”, avalia Anacleto.
As sete famílias realizam também o mutirão da cana-de-açúcar em três áreas cedidas para uso coletivo que equivalem a quase um hectare no sítio Guapuruvu. Todo o processo é feito em grupo: o plantio, a capina, a colheita, o beneficiamento (cachaça e rapadura) e a divisão do dinheiro após a comercialização. Ao longo de cinco mutirões de trabalho em 2023, as famílias estimam que colheram 100 m³ de cana, transformados em 2,2 mil litros de cachaça (metade para o dono do alambique e metade para o grupo), além de cerca de 460 rapaduras, das quais 300 ficaram para divisão, em partes iguais, entre os membros do grupo. Parte do dinheiro arrecadado subsidiou um passeio à praia que as famílias fizeram juntas em Piúma (ES).
O encurtamento do tempo dispensado à realização das atividades, o aumento da produção em menor tempo e espaço de ação e a gestão democrática dos processos de decisão e dos frutos do trabalho orientam o trabalho coletivo. Neste momento, o grupo está amadurecendo a ideia de fazer uma agroindústria coletiva para que, tendo uma estrutura adequada de processamento, consiga certificar seus produtos como orgânicos e comercializar não só a cana, mas também os alimentos dela gerados.
O trabalho do grupo de Divino guarda características comuns da agricultura camponesa: os saberes e experiências de produção das famílias são referenciais para a reprodução do trabalho, práticas tradicionais e intercâmbios estão presentes no cotidiano das famílias, o uso da terra se dá de forma coletiva, os cultivos e criações são diversificados, há produção de artesanatos e beneficiamento primário de produtos, com fontes diversas de rendimentos monetários e solidariedade comunitária.
Trabalho criativo, reflexivo e plural
De todas as transformações na sua própria experiência no mundo do trabalho que acompanharam desde criança, a principal para Gilvania e Anacleto foi o acesso ao conhecimento. “Na roça tem muito trabalho. Trabalho é o que não falta, mas a questão maior é a renda, que nem sempre tem. A gente aposta muito na agroecologia para ter melhores condições e qualidade de vida”, destaca Gilvania.
Hoje, a principal fonte de renda do sítio vem da cafeicultura, da banana desidratada, da cana e do palmito pupunha. Recentemente, eles começaram a criar poucas cabeças de gado, sobretudo pela necessidade de esterco, o que também supre o consumo familiar de carne, além de cultivos diversos para a alimentação.
Fora do sítio, ainda fazem ‘bicos’: construção de projetos para uma cooperativa de crédito para acessar o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), no caso do Anacleto; escrita e condução de projetos de cultura e suporte à parte burocrática de associações, no caso da Gilvania. São atividades que não comprometem seu enquadramento enquanto agricultores familiares. Mesmo assim, eles se dizem atentos para que elas não “sufoquem” as tarefas no sítio e alimentam a expectativa de, no máximo daqui a dois anos, não precisarem mais trabalhar ‘fora’ para complementar a renda.
Da paisagem degradada, às preocupações mais minuciosas de como continuar conduzindo o sítio com coerência e sustentabilidade, incluindo a financeira, eles miram o passado, o presente e o futuro, apreciando a diferença que estão e podem continuar fazendo: “A natureza tem seu tempo. A maior alegria é realmente pegar uma foto de 2013 e pegar a foto de 2025, e olhar o tanto que a gente conseguiu ajudar que a natureza fizesse o trabalho dela”, resume Gilvania.