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Pelo quinto ano consecutivo, CNS reprova contas do Ministério da Saúde

Demora na liberação de recursos extraordinários para pandemia e não aplicação de restos a pagar em 2020 estão entre as principais justificativas para decisão
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 24/09/2021 13h25 - Atualizado em 01/07/2022 09h41

Pelo quinto ano consecutivo, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) reprovou as contas apresentadas pelo Ministério da Saúde. Em reunião extraordinária realizada no dia 17, a maioria dos conselheiros votou mais uma vez pela reprovação do Relatório Anual de Gestão (RAG) apresentado pelo ministério para 2020: 77% dos membros do CNS votaram pela reprovação, enquanto outros 16% votaram pela aprovação com ressalvas.

A análise do RAG – instrumento de gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) que mostra o quanto do orçamento federal foi empenhado e executado em cada ação de saúde ao longo do ano - é uma prerrogativa do Conselho segundo a lei complementar 141, tarefa que cabe à Comissão de Orçamento e Financiamento (Cofin) do CNS. 

O coordenador-adjunto da Cofin e presidente da Confederação Nacional das Associações de Moradores (Conam), Getúlio Vargas Junior, destaca alguns dos motivos para a reprovação. “Em 2020 o valor mínimo investido em saúde só foi atingido graças aos recursos adicionais para o enfrentamento da Covid-19, não fosse isso o valor investido teria ficado cerca de R$ 2 bilhões abaixo do piso”, afirma Vargas, que lembra que os RAG do Ministério da Saúde vêm sendo reprovados desde 2016. “Mesmo que fossem reeditados os índices de investimento das RAG anteriores seria insuficiente para que o conselho pudesse apontar uma aprovação, uma vez que eles já foram rejeitados por estarem abaixo da necessidade”, aponta o conselheiro do CNS. Além disso, continua Vargas, o orçamento apresentado para 2020 foi feito com base no Plano Nacional de Saúde 2020-2023 apresentado pelo Ministério, que também foi rejeitado pelo CNS, entre outros motivos por não dialogar com as diretrizes da 16ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 2019. “Foi uma conjunção de diversos fatores que levou os conselheiros a, mais uma vez, reprovarem o RAG”, diz o coordenador-adjunto da Cofin. E completa: “O SUS nunca teve recursos suficientes para cumprir com suas prerrogativas, o subfinanciamento é um problema histórico. Só que a partir de 2016, com aprovação da Emenda Constitucional 95 [o teto de gastos], a gente percebe que aquele orçamento que historicamente não foi adequado começa a perder recursos. E não por acaso desde então há uma necessidade de o Conselho rejeitar os relatórios anuais de gestão, porque a gente percebe que ano a ano tem diminuído os investimentos e a qualidade do gasto em saúde”.

Pandemia

Economista e consultor técnico da Cofin, Francisco Fúncia explica que um dos principais problemas identificados pela comissão foi a lentidão na aprovação e utilização de recursos extraordinários para o enfrentamento da pandemia de Covid-19 pelo governo federal. “Nós assistimos ao crescimento dos casos e mortes de Covid nos meses de abril, maio e junho, e somente em julho foi publicada a portaria 1666, que estabelece a distribuição de recursos para estados e municípios, sendo que somente no mês de agosto começaram a chegar valores maiores de transferências do Fundo Nacional de Saúde para os fundos municipais de saúde para enfrentamento da pandemia”, afirma Fúncia. Para o economista, a demora na liberação de recursos foi uma consequência da falta de uma “coordenação nacional tripartite” para enfrentamento da pandemia, que acabou sobrecarregando estados e municípios. “Houve uma priorização de ações, por exemplo, para uso de cloroquina; houve uma difusão da tese de que a imunidade de rebanho seria a solução e isso desconsiderando as recomendações e manifestações do Conselho Nacional de Saúde. Em certa medida, houve um combate ao distanciamento social, que foi coordenado por governadores e prefeitos”, lamenta Fúncia.

O economista lembra ainda que foi apenas no final do ano, em dezembro de 2020, que foi apresentada medida provisória liberando R$ 20 bilhões em créditos extraordinários para vacinação contra covid-19. “Havia recursos orçamentários para começar a fazer as parcerias para produção de vacinas, mas foi só no fim do ano colocado um recurso mais expressivo para vacina, a partir da liberação desses R$ 20 bi. Mesmo estando flexibilizadas as regras fiscais do teto de gastos em 2020 por conta do decreto de calamidade pública. Então não tem a justificativa da restrição fiscal para não ter colocado recursos antes. Isso mostra claramente uma gestão bastante ruim no enfrentamento da pandemia”, critica Fúncia.

Então na verdade você diz que cumpriu o piso, mas na prática está maquiando esse cumprimento - Francisco Fúncia


Restos a pagar: um problema crescente

Ainda segundo o consultor técnico da Cofin/CNS, o Relatório Anual de Gestão 2020 do Ministério da Saúde apresentou novamente um problema que vem se repetindo há anos, e que se intensificou a partir da aprovação da Emenda Constitucional 95, do teto de gastos, em 2016, que foi o primeiro ano em que o CNS reprovou as contas do Ministério da Saúde. Trata-se da manutenção, ano após ano, de um volume considerável de despesas inscritas como restos a pagar que não são executadas. Os restos a pagar são aquelas despesas empenhadas que não são executadas no mesmo ano de empenho. Funcia afirma que esse montante cresceu de cerca de R$ 15 bilhões em 2017 para em torno de R$ 20,2 bi no ano passado.

Em 2021, esse valor ficou em quase R$ 21 bilhões. Isso porque dos R$ 166 bilhões empenhados em 2020 sobraram, segundo Fúncia, R$ 13,7 bi para serem executados em 2021 do orçamento de 2020. Há ainda outros R$ 7,1 bilhões de restos a pagar de 2019 que não foram executados em 2020, totalizando, para o orçamento desse ano, R$ 20,8 bilhões. “Você não sai do lugar, porque você começou 2020 com R$ 20,2 bilhões em restos a pagar e quando começa o outro ano aumentou esse valor para R$ 20,8 bi”, destaca o economista. “Isso é um problema de gestão. Por que o Ministério da Saúde não executa os restos a pagar de forma mais rápida? Essa é a pergunta que tem que ser feita. Se ele não consegue mais executar o correto seria cancelar, porque ao cancelar a lei complementar 141 diz que esse valor tem que ser aplicado adicionalmente ao piso do ano seguinte. Então na verdade você diz que cumpriu o piso, mas na prática está maquiando esse cumprimento”, completa Funcia, lembrando que de acordo com o teto de gastos, o valor mínimo a ser destinado para a saúde - o valor gasto no ano anterior corrigido pela inflação – é calculado com base no valor empenhado, e não efetivamente executado. “Isso dificulta muito o acompanhamento da execução desses recursos, a transparência”, afirma Fúncia.

O economista lista ainda que apenas nove dos 33 itens do orçamento do Fundo Nacional de Saúde tiveram execução considerada “adequada” pelos conselheiros do CNS.  E em muitos casos esses itens sofreram redução de despesas em 2020 em relação a 2019. “Ou seja, executou adequadamente porque houve menos recursos”, pontua Fúncia. Ele exemplifica: o programa Médicos pelo Brasil, que substituiu o Mais Médicos, teve 27% menos recursos em 2020 do que em 2019; o gasto com vacinação – com exceção da vacina contra Covid-19 – caiu 9,6%; para aquisição e distribuição de medicamentos para DST/Aids, foram gastos 5% a menos recursos em relação a 2019; já a saúde indígena teve 3% a menos em recursos.

O Ministério da Saúde não respondeu ao pedido de entrevista feita pelo Portal EPSJV/Fiocruz até o fechamento desta reportagem.


Desdobramentos

Getulio Vargas Junior explica que agora o Conselho deve elaborar e votar uma resolução sobre a reprovação das contas, que deverá então ser homologada pelo Ministério. “É fundamental que isso também se transforme em força que pressione o governo a mudar a postura”, postula o coordenador-adjunto da Cofin/CNS. Isso pode servir para que Ministério Público, para que a própria sociedade civil acione gestores, acione os responsáveis para esclarecer alguma coisa que seja apontada a partir desse relatório”, completa Vargas, para quem a resolução pode se somar aos documentos que vem sendo levantados pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga a atuação do governo no enfrentamento da pandemia em curso no Senado.

Leia mais

Projeto de Lei Orçamentária apresentado pelo governo ao Congresso prevê R$ 134,5 bilhões para a saúde, sendo R$ 7 bi para o enfrentamento da pandemia de Covid-19. Flexibilização das regras fiscais do teto de gastos permitiu o crescimento do orçamento para R$ 178 bi em 2021 por meio de créditos extraordinários para enfrentamento da crise sanitária
A decisão é inédita. Na última quinta-feira (06), o Conselho Nacional de Saúde reprovou as contas do Ministério da Saúde em 2016. Foram 29 votos contrários e oito favoráveis. O parecer que levou tantos conselheiros a levantarem as mãos pela rejeição foi feito pela Comissão de Orçamento e Financiamento (Cofin). Nessa entrevista, o economista e consultor da Cofin, Francisco Funcia, explica os problemas principais encontrados pela Comissão no Relatório Anual de Gestão (RAG) do ano passado que levaram à rejeição