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As políticas sociais devem ser para todos?

Universalizar ou segmentar as políticas sociais? Debate procura refletir sobre avanços sociais dos últimos anos na perspectiva da luta pela cidadania.
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 19/11/2012 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

As políticas sociais devem ser pensadas em uma perspectiva universal ou de maneira segmentada? Focalizar as políticas sociais significa abdicar do direito de acesso de todos à saúde e à educação, por exemplo? É possível universalizar sem focalizar? Essas foram algumas das questões que o debate ‘Universalização e focalização das políticas sociais’, no último dia do Abrascão, procurou percorrer. Para tanto, foram convidados o professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Jairnilson Paim, e o ex-diretor da área de Estudos Políticas Sociais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Jorge Abrahão.

“A construção do SUS após 1988 foi pensada no bojo do chamado sistema de proteção social, da seguridade social, que abrange a saúde, a previdência social e assistência social. A partir daí pensamos a saúde em articulação com o sistema de proteção social e com as políticas de proteção”, afirmou Paim. Segundo ele, para entender a forma como a discussão sobre políticas sociais emergiu no Brasil é importante entender sua gênese. “O debate sobre políticas sociais surge na passagem do feudalismo para o capitalismo, vinculada à pobreza. O capitalismo ao se desenvolver, liberava força de trabalho que vagava pelas cidades com fome, havia delinqüência, mendicância. Já que não era mais possível responder a isso nas famílias e paróquias, o Estado começa a intervir para dar contra do que fazer com esses párias da sociedade”, explicou. Em 1601, disse, é editada na Inglaterra a primeira lei dos pobres, que trata inclusive das responsabilidades, deveres e condicionalidades para receberem os benefícios do Estado. “Nesse particular, destaco a criação das casas de trabalho, para que esses pobres não se beneficiassem sem o trabalho”, apontou Paim. Até meados do século 19, completou o professor, a questão social, portanto, era centrada fundamentalmente na pobreza. “O sanitarismo aparece como uma forma de assistência ao pobre através da caridade pública, constituindo os principais elementos do processo de medicalização”. No século 19, com a luta de classes se expressando de maneira mais clara, o Estado capitalista passa a absorver parte das reivindicações populares. “Esse é um período de tensões entre as classes sociais, em que na Alemanha vai se criar uma forma de responder, por cima, a essas pressões, com a criação do seguro social por Bismarck”, explicou.

Segundo Paim, o medo despertado nos paises capitalistas pela Revolução Bolchevique na Rússia no início do século 20 e os sofrimentos da Segunda Guerra Mundial engendram o chamado Welfare State na Europa. “Ao mesmo tempo nós vamos ter a hegemonia dos Estados Unidos, que dão um foco maior na pobreza, e esse padrão americano se difunde na América Latina. No Brasil, portanto, vamos ter essa ambivalência em relação à política social: se vamos valorizar a cidadania ou a caridade”, disse Paim. Ele citou uma frase de José Sarney, presidente da República na época em que a Constituição de 1988 foi promulgada, que explicita as contradições existentes na época. “Ele disse que aquela constituição faria o país ingovernável e declarou: ‘há um receio de que alguns de seus artigos desencorajem a produção, afastem capitais, sejam adversos à iniciativa privada, e terminem por produzir o ócio e a improdutividade’. Então, o próprio presidente da República se apresentava como guardião do capital e contra um suposto ócio das pessoas que estavam necessitadas”, criticou. A partir dos anos 1990, segundo Paim, com a contra-reforma liberal, se torna hegemônica a ideia de que a política social “é para os excluídos”. “Há um desmonte institucional, orçamentário e conceitual da seguridade social, que se transforma em um neoassistencianlismo com transferência de renda condicionada pelo FMI. Passa a se falar muito em capital social, gestão da pobreza e tecnologia social”, afirmou, completando: “Os sistemas de saúde sofrem as mesmas ameaças. O SUS vem sendo destruído por fora e por dentro, nessa relação público-privado, mercantilização e segmentação. Está se construindo um SUS pobre para os pobres, perdendo o caráter universal”. Mesmo a partir da ascensão de Lula ao poder, afirmou Paim, essa concepção não perdeu força. “O padrão civilizatório dos direitos sociais não se encontra na agenda governamental atual, e o lulismo, sob o discurso da redução de desigualdades, vem na realidade anulando a cidadania”, disse Paim.

Tática de defesa

A partir da fala de Paim, Jorge Abrahão, ex-diretor da área de Estudos de Políticas Sociais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), explicou que a parte da Constituição de 1988 dedicada à questão social foi construída com base na experiência de países europeus. “A fragilidade foi deixar para ser regulamentado depois, quando passamos ao neoliberalismo, tentando sobreviver em cima de um marco que não era real, de um mundo que foi construído fora da gente. Nosso desejo é chegar àquilo que está na Constituição de 1988, mas logo depois dela tivemos uma reorganização das forças de direita e conseguimos sobreviver a isso. Então, é importante defendermos o que temos”, apontou Abrahão. Em seguida, ele defendeu as políticas de redistribuição de renda colocadas em prática na última década. “De 2000 para cá, tivemos crescimento com distribuição de renda. Nunca se viu recuperação do valor do salário mínimo como de 2003 para cá. Metade da população brasileira vive de salário mínimo, então a maior política de foi a valorização do salário mínimo”. Ainda assim, Abrahão fez algumas ressalvas: “O governo atual soube redistribuir os fluxos da riqueza, mas a riqueza pretérita está intacta. Será que é possível uma disputa sobre a riqueza pretérita? Esse país não taxa riqueza, os pobres financiam a si mesmos. Apesar do avanço, os próprios pobres financiam a saúde e educação. Um estudo que fiz mostrou que, entre os que recebem auxílio do Bolsa Família, de cada R$ 100, R$ 38 voltam para os cofres públicos opor causa da tributação”.

Segundo Abrahão, a política econômica nos últimos anos tem caminhado junto com as políticas sociais, e é importante destacar isso. “Isso tem muito a ver com o mercado de trabalho, nunca formalizamos tanto. Só que a Europa montou o Welfare State em cima do pleno emprego, e isso é diferente do que acontece hoje. A nossa formalização chega a 55% da força de trabalho, mesmo na crise, a Europa  está com 75%. O que vimos foi a ampliação do mercado de trabalho e da economia com crescimento da formalização, mas o Brasil não vai fazer a formalização européia. E como vamos fazer a proteção social pela via do seguro? Não vai dar”, avaliou. Para ele, a expansão de programas como o Bolsa Família, a Previdência Rural e o Benefício de Prestação Continuada (BPC) foram importantes no combate à fome e à pobreza. “Além disso, a política de valorização do salário mínimo foi importante fator de promoção do bem estar. A estabilidade monetária foi fundamental e a estratégia de crescimento com redistribuição de renda ajudou o pais a atravessar a crise de 2008. Só que, sem crescimento, a coisa vai ficar ruim, por isso é que o governo persegue tanto o crescimento econômico”, ressaltou Abrahão.

Inclusão pelo consumo é política social?

Ao fim da exposição dos dois debatedores, Ligia Bahia, doutora em Saúde Pública e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), fez uma intervenção colocando ressalvas à fala de Jorge Abrahão. “É claro que o Brasil é um país diferente hoje e avançou. Mas a pergunta de fundo é se essa é uma política social ou para o capital. O fato de se transferir tanto recurso para a iniciativa privada na saúde é realmente política social? É ótimo que os brasileiros possam viajar, ter geladeira, máquina de lavar, mas seria ótimo se pudéssemos ter uma interrogação mais dura. Eu não posso afirmar se estamos reduzindo a desigualdade. Ao contrário, podemos pensar que a desigualdade esta aumentando: na saúde está, inclusive em relação aos anos 1970”, ponderou. 

Um professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) que estava na plateia concordou. “Os governos estão fazendo a cidadania pelo consumo, com planos de saúde, educação privada, e muita gente acha que isso é ser cidadão. Incluir pelo consumo não é política social. Temos que pensar qual é o papel da sociedade na defesa desses direitos. Hoje, com essa grande cooptação, as centrais sindicais falam no SUS, mas na prática fazem convênio médico e defendem escola privada para as categorias”, afirmou.

“Na saúde estamos sendo perseguidos pela ideologia do possível, qualquer coisa a mais parece quimera”, disse Jairnilson Paim, completando: “Esse é um ponto de debate, temos que ir além do possível. Nenhum dos governos depois da constituinte fez algo para garantir seguridade social, que foi solapada, desmontada, com cada um dos componentes desesperadamente procurando vinculação de recursos pra sobreviver. Conclusão: os dados ilustram o que a Ligia nos chamou atenção. Temos que comemorar que pessoas comprem mais geladeira, o governo fez muita coisa boa. Mas em 2011, o governo destinou 0,4% do PIB ao Bolsa Família, que tem 13 milhões de famílias cadastradas. No mesmo ano, 5,72% do PIB foi para pagamento de juros. Para os ricos,  20 mil famílias desse pais, uma doação 13 vezes maior do que Bolsa Família”, concluiu Paim.

Jorge Abrahão, por fim, concordou que nenhum governo quis garantir a seguridade social, mas apontou que a defesa do que foi efetivado é uma tática para garantir que isso não seja também desmontado. “Temos que defender o que está aí, mas isso não quer dizer que é uma utopia acabada, mas sim para mostrar o tamanho do que construímos para podermos exigir mais. Discurso do futuro não adianta, o que querem é destruir o que esta aí. Então temos que dizer que isso que esta ai é bom, é uma tática de defesa, temos que passar o tempo todo defendendo. Conseguimos sobreviver e não foi fácil, com o FMI, Banco Mundial e boa parte da academia fazendo um movimento ideológico fortíssimo contra. Hoje estamos assistindo a uma captura semântica, nossa tese do universalismo virou universalismo pago, e o direito virou direito mínimo”, concluiu.