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Público e privado no SUS: como enfrentar as desigualdades?

Para pesquisadores reunidos em mesa redonda sobre privatização do SUS, é preciso qualificar o debate sobre as relações públicos-privadas dentro da Saúde Coletiva e ampliar discussões para fora dela
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 25/03/2021 12h49 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

É preciso “furar a bolha”, ampliar o diálogo da Saúde Coletiva com outros campos e atores sociais para disputar o SUS e enfrentar o processo de privatização e mercantilização do sistema público. Essa foi uma das mensagens centrais transmitidas pelos palestrantes da mesa-redonda ‘Reflexões sobre privatização, SUS e o mercado da saúde’, realizado na quinta-feira (25) durante o 4º Congresso Brasileiro de Política, Planejamento e Gestão da Saúde. A mesa reuniu os pesquisadores Isabela Soares Santos, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), José Sestelo e Artur Monte-Cardoso, ambos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

“Se a gente quer construir novas formas para formular um projeto de nação enfrentando as relações público-privadas cada vez mais imbricadas e mais fortes, a gente vai ter que refazer essas correntes que amarram as relações público-privadas”, defendeu Isabela Santos, para quem esse é um desafio que passa, por um lado, por um aprofundamento do estudo das interfaces entre diferentes campos de conhecimento. “A organização do conhecimento, no mundo inteiro, é feita de uma forma que não valoriza as interfaces. Cada grupo tem seus conhecimentos. É necessário que a gente comece a colocar mais energia nessas interfaces, como forma de levantar pistas para enfrentar as desigualdades da nossa sociedade”, defendeu Isabela. Por outro lado, disse a pesquisadora da ENSP/Fiocruz, é preciso ampliar o diálogo com as necessidades da população que vive nos territórios. “Estudar relações público privadas é entender isso, esse entorno da casa das pessoas. Precisamos passar a olhar mais isso e construir um projeto de acordo com essas necessidades reais dos territórios. Se não, não vai ser um projeto hegemônico. Se queremos um projeto que vingue temos que construir com todo mundo, de uma forma que não seja ofertado. Eu não sei como. Mas é o desafio, na minha visão”, pontuou Isabela.

Segundo ela, de 2015 para cá o ritmo do que ela chamou de “boicote ao SUS” vem se ampliando, a partir de mudanças como a autorização para a atuação do capital estrangeiro na saúde e a aprovação da Emenda Constitucional 95, o teto de gastos, medidas que como lembrou Isabela, estão alinhadas com o que vêm defendendo instituições como o Banco Mundial por meio, por exemplo, de publicações como o relatório ‘Um ajuste justo’, lançado em 2017. Ela ressaltou, no entanto, que a partir da pandemia do novo coronavírus, várias instituições, incluindo o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) passaram a rever suas posições acerca da austeridade fiscal e defender o investimento público como forma de incentivar o crescimento econômico, medidas que têm sido adotadas em vários países. “Vemos no Brasil um brutal aprofundamento da política de austeridade fiscal, na contramão do mundo. Estamos em uma cilada, em que a gente não consegue atuar nem de acordo com o que diz o FMI, que defendeu em um relatório que o isolamento abriu espaço para uma recuperação econômica posterior em vários países que reagiram cedo à pandemia”, destacou a pesquisadora, complementando: “Se antes o Brasil rumava o caminho do ultraneoliberalismo, da austeridade fiscal, para onde rumamos hoje? Estamos diante de uma situação de desmonte da proteção social, de perdas de vidas humanas como nunca vimos antes, que chega a nos esvaziar de forças para disputar o projeto de defender o interesse público”, lamentou a pesquisadora da Fiocruz. Ela lembrou, no entanto, que mesmo em um cenário de calamidade como o atual, o mercado privado da saúde vai muito bem. “A revista Forbes mostrou que, em um ano de pandemia, a riqueza dos bilionários da saúde brasileiros cresceu proporcionalmente mais que a dos 53 maiores bilionários listados pela revista. O setor privado de saúde vai muito bem, obrigado”, afirmou.


Superar dicotomias e abstrações

José Sestelo, da UFRJ, defendeu que a Saúde Coletiva precisa compreender melhor como se dão as relações entre o público e o privado no sistema de saúde na atualidade. “Não basta falar em ampliação do gasto com saúde no enquadramento da relação público-privada no SUS hoje. Nosso gasto em saúde como proporção do PIB é alto, não gastamos pouco com saúde. Mas uma tendência importante de se observar é o crescimento das receitas dos grupos empresariais por cima dos gastos públicos com saúde em todos os níveis de governo. Se o gasto público cresce, as receitas dessas empresas crescem ainda mais. Os gastos com planos de saúde são hoje 30% do gasto total com saúde”, afirmou Sestelo. E completou: “As empresas de planos de saúde tem um controle muito grande sobre as suas receitas, a maior parte vinda de contratos não regulados, coletivos, e quem define os padrões de reajuste são as próprias empresas. Já a negação de cobertura, um expediente questionável, haja vista a questão da judicialização da saúde, tem funcionado como controle de despesas”.

Analisar as relações público-privadas no sistema de saúde hoje, argumentou o pesquisador da UFRJ, passa por superar o que ele chamou de “abstrações generalizantes” e não se ater a “dicotomias”. “SUS e planos de saúde, público e privado, capital financeiro e capital produtivo. Essas simplificações e reducionismos atrapalham para que a gente possa avançar”, afirmou Sestelo. “A financeirização, por exemplo, é um modo de ser do capital no século 21 presente em todos os segmentos da vida social. Para gente tratar desse tema é importante que a gente saia do nível das abstrações generalizantes. A que financeirização, a que privatização a gente se refere? O uso dessas expressões genéricas pode atrapalhar mais que ajudar”, defendeu Sestelo, citando o caso da empresa de planos de saúde Qualicorp como um exemplo de mudanças na dinâmica das relações público-privadas na saúde que precisam ser estudadas e compreendidas. “O caso da Qualicorp é emblemático dessa nova fase. Uma empresa fundada com capital inicial de 2 mil reais que foi descoberta por grupos interessados em potencializá-la como instrumento de ganhos financeiros, e se tornou bilionária em poucos anos, incorporada ao elenco das chamadas campeãs nacionais do empresariado. A empresa em si é a própria mercadoria. Essa lógica foi se espalhando e se reproduzindo”, destacou.  E completou: “Outra dicotomia que a gente precisa enfrentar é entre capital nacional e internacional. Temo hoje vários fundos internacionais que são frequentados por brasileiros. Os cotistas do Fundo Soberano de Cingapura são bilionários brasileiros que ganharam dinheiro aqui. Essa fronteira entre capital nacional e internacional fica cada vez mais difícil de definir”, disse Sestelo.

E concluiu: “O campo da Saúde Coletiva precisa se municiar, se qualificar para poder dialogar fora da bolha, conversando com economistas que nunca ouviram falar de saúde, com políticos que acham que os planos privados desafogam o SUS. O nosso campo, por definição, é interdisciplinar, se caracterizou por olhar para uma realidade complexa de uma forma abrangente”.


Desigualdade entre gasto público e privado

Artur Monte-Cardoso, também professor da UFRJ, deu destaque para as desigualdades no controle de recursos financeiros e assistenciais entre os sistemas privado e público, que segundo ele ficaram bem evidentes durante a pandemia do novo coronavírus. A pandemia explicitou desigualdades tremendas, que tem cobrado caro não só no âmbito da política, mas em termos de vitimas e adoecimentos e todas as mazelas sociais que tem acontecido nesse momento”, pontuou.

De acordo com Monte-Cardoso, o Brasil gasta atualmente em torno de 9% do PIB com saúde, dados que o colocam na média dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). No entanto, menos da metade do que é gasto no Brasil corresponde ao gasto público, enquanto nos países da OCDE a média é de 75% do gasto público. Também na comparação com a América Latina o Brasil desponta como um país que gasta bastante com saúde, mas muito abaixo da média em termos de gasto público. “O setor público consegue ser um local estratégico de alocação desses gastos. É importante que se almeje que o maior poder de gasto esteja na mão do poder público”, defendeu o pesquisador da UFRJ.

Segundo ele, para que o país alcance a proporção de 60% de gasto público na composição do gasto total com saúde em relação ao PIB, é preciso aumentar em 42% os gastos público, o equivalente a R$ 115 bilhões. Para chegar a um patamar de 75% de gastos públicos, como nos países da OCDE, seria necessário uma ampliação de 78% do gasto público no Brasil, ou cerca de R$ 212 bi. “Esses recursos precisariam vir de uma reforma tributária e o repasse de tributos para estados e municípios. O SUS precisa ser a instância onde será decidida a destinação estratégica desses recursos. O SUS é o único capaz de fugir da lógica de mercado e mobilizar recursos para os locais que mais precisam”, disse Monte-Cardoso, que ressaltou ainda que para enfrentar a desigualdade no âmbito do sistema de saúde, é importante não ultrapassar o patamar de 10% do PIB gastos com saúde. “Nosso país tem carências em muitas áreas.  Precisamos, em primeiro lugar, ampliar investimentos na formação de capacidade assistencial e enfrentar as desigualdades regionais. Em segundo lugar, é preciso levantar recursos para saneamento, transporte, moradia digna, que teriam efeitos positivos para a saúde. Estudos mostram que um investimento de 0,7% do PIB zeraria o déficit de saneamento. Isso traria resultados muito concretos na saúde”, defendeu o pesquisador. E concluiu: Para viabilizar projeto do SUS é preciso que a maioria dos recursos assistenciais e financeiros seja comandado pelo SUS. Para isso não é só ampliar os recursos. Hoje, da maneira como está equacionado, o crescimento do gasto público é estratégico para os interesses privados. É preciso redistribuir recursos, e que o sistema de saúde controle 60, 70% dos recursos. Para isso é necessária uma reforma enorme”.