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Quantidade é qualidade?

Especialistas avaliam os motivos da diminuição da taxa de desemprego e indicam caminhos para a geração de postos de trabalho com mais direitos sociais
Juliana Passos - EPSJV/Fiocruz | 19/12/2023 15h28 - Atualizado em 19/12/2023 15h34
Foto: Freepik

Neste momento de retomada gradual de crescimento econômico, os índices de desemprego no Brasil diminuem e há aumento de empregos formais, aqueles com vínculo CLT. No terceiro trimestre de 2023, a taxa de desemprego foi a 7,7%, a mais baixadesde 2015.  Essa queda, na avaliação de especialistas ouvidos pela Poli, está relacionada a medidas governamentais como o aumento do salário mínimo, manutenção do Bolsa Família e criação do programa Desenrola, para a negociação de dívidas. “Em grande medida, a elevação do nível de emprego no Brasil e a redução do desemprego resultam da injeção de recursos em programas sociais”, diz o presidente do IBGE, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Marcio Pochmann. Ele explica que o dinheiro público disponibilizado em benefício das camadas com menor renda per capita vai diretamente para gastos como os de supermercado, o que tem um impacto favorável na atividade econômica, gerando uma maior demanda por serviços. “Esse é um comportamento diferente do segmento de maior renda, para quem a elevação de salário não necessariamente significa gastos com bens de consumo e que podem ser destinados a poupança ou aplicações financeiras”, complementa.

Na sua avaliação sobre a ampliação dos postos de trabalho a partir do aumento da distribuição de renda, a secretária-adjunta de estatística de emprego do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Paula Montagner, detalha a influência do reajuste do salário mínimo e sua ampla repercussão na economia por servir de parâmetro salarial para os trabalhadores autônomos. “Os analistas que estudam o mercado de trabalho dizem que o salário mínimo é o farol da economia, porque é o parâmetro para definir o preço dos serviços cobrados por quem não tem trabalho formal”, explica, acrescentando que há impacto também sobre os aposentados e pensionistas. “Nós temos 37 milhões de pessoas aposentadas ou que recebem pensões, 26 milhões recebem apenas um salário”, diz.

Apesar de comemorar a melhoria dos índices, Montagner pondera que esse cálculo sobre o desemprego não pode desconsiderar um elemento importante: a alta proporção de jovens fora do mercado de trabalho, que ela prefere chamar de “Sem-Sem”, em oposição ao termo “Nem-Nem”, mais comumente utilizado para falar daqueles que não estudam nem trabalham. “Essas pessoas não estão vindo para o mercado e é isso que está mantendo a taxa de desemprego baixa. Esses jovens ficaram anos procurando trabalho, não conseguiram e pararam de procurar, em especial mulheres, que passaram a assumir tarefas domésticas”, explica. Essas pessoas fora do mercado de trabalho não aparecem nas pesquisas de desalentados, que só consideram quem procurou emprego em um período anterior. “A única forma de ver essa situação é pela taxa de participação no mercado de trabalho, que estava em torno de 63,5% e agora está em 61,5%”, diz Montagner. Pelos cálculos do Ministério, há cerca de quatro milhões de pessoas “inativas”, metade formada por jovens com filhos pequenos.

Outra questão que ajuda a diminuir o otimismo em relação à queda do desemprego é a característica dos postos de trabalho gerados no setor de serviços ligados ao comércio, que em muitos casos têm remuneração média mais baixa e alta rotatividade. “Esses empregos são aqueles que dependem da capacidade de consumo da população, um consumo que não é de luxo, destinados a pessoas e às famílias, como limpeza, salão de beleza, pet shop”, explica Paula Montagner.

Mas, além de reduzir o desemprego, o país tem pela frente a tarefa de gerar vínculos com mais ‘qualidade’. E o tamanho do desafio pode ser sentido, por exemplo, nos dados sobre as faixas de remuneração dos brasileiros: 70% ganham até dois salários mínimos. Outro indicador pode ser a alta taxa de informalidade, que hoje está em 39%, cerca de 40 milhões de pessoas.

Mas o que é qualidade no trabalho?
Os parâmetros mais comumente adotados para identificar a qualidade dos postos estão relacionados ao conceito de “trabalho decente”, proposto na virada do século 20 para o 21 pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). Entre os itens levados em conta estão a existência de um contrato por tempo indeterminado, amparado pela legislação trabalhista do país, garantia de férias, final de semana remunerado, controle do número de horas trabalhadas, pagamento de hora extra, adicional de férias e 13º salário – no caso do Brasil. “A ideia é que sejamos capazes de gerar empregos que tenham continuidade, com características decentes de salário, jornada, condições dignas de trabalho e com perspectiva de futuro”, resume Montagner.

A proposta da OIT, explica o presidente do IBGE, foi a de criar parâmetros mínimos de condições de trabalho. “Em geral, nos países com baixo desenvolvimento não há medidas que permitam proteger pessoas que estão sem emprego, o que significa dizer que as pessoas nessa circunstância fazem qualquer coisa para sobreviver”, diz. Ele acrescenta que, por esse motivo, as variações nas taxas de desemprego dizem pouco sobre a situação do mercado de trabalho de um país.

O nível de escolaridade também tem influência sobre a remuneração e a possibilidade de atingir ou ultrapassar o valor mínimo estipulado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), que atualmente está em R$ 5,2 mil de renda familiar para um arranjo de quatro pessoas. O impacto dessa diferença pode ser exemplificado com as médias salariais da indústria da transformação. Enquanto um trabalhador com nível médio ganhava em média R$ 2.520,60, aqueles com ensino superior têm remuneração de R$ 7.809,20, segundo dados de 2021 da Confederação Nacional da Indústria (CNI). Apesar da diferença salarial associada à escolaridade, especialistas ouvidos dizem que essa relação é limitada. “A correlação entre escolarização e uma melhor posição no mercado de trabalho está dada e não é uma contradição dizer que isso não significa um emprego decente ou ascensão social”, diz a professora da Universidade Federal do Acre Luci Praun. Já o presidente do IBGE cita a “diáspora” por melhores empregos. “O Brasil tem hoje cerca de 4,2 milhões de brasileiros que residem fora do Brasil. Em geral, são pessoas mais jovens, com maior nível de escolaridade, que, apesar do esforço educacional, não conseguiram encontrar empregos adequados às suas pretensões e estão procurando fora do país”, exemplifica. E, segundo ele, mesmo para quem não saiu do país, essas expectativas não foram necessariamente correspondidas. “A qualificação precisa andar simultaneamente à expansão da atividade produtiva, apesar de o discurso liberal defender que quem tiver capacitação tem emprego”, avalia.

O próprio salário é um indicador de qualidade do posto de trabalho, mas Pochmann chama a atenção para o fato de que ele não pode ser visto de forma isolada. “Os direitos sociais e trabalhistas devem ser incluídos como variáveis, uma vez que, de certa maneira, formam uma remuneração indireta”, alerta. O professor da Universidade de Brasília (UnB) Ricardo Festi concorda e acrescenta que, para além do cálculo do mínimo para a subsistência familiar, como faz o Dieese, o salário também deve ser avaliado pelo acesso a serviços públicos. “No cômputo do salário deve entrar não só o que o empregador paga aos seus empregados, mas também os subsídios do Estado, o acesso a serviços públicos e bens comuns. Então, em um país em que é preciso pagar pela Educação, o salário é menor do que onde a Educação é pública”, explica.

O papel da indústria na geração de empregos
Se na década de 1980 a indústria de transformação era responsável por 27% dos empregos formais gerados, dados de 2021 mostram que esse número caiu para 14,9%, segundo a Confederação Nacional da Indústria. “Se analisarmos ao longo do tempo, o avanço da precarização do trabalho está relacionado à trajetória da atividade econômica no Brasil. Nós éramos um país que respondia por 3,2% do PIB [Produto Interno Bruto] mundial nos anos 1980 e hoje respondemos por 1,8%. Nós perdemos posição relativa e, por isso, a capacidade de gerar empregos de maior qualidade”, diz Pochmann. Essa relação, sublinha, também significa uma menor variação da renda dos brasileiros. Enquanto a média anual de crescimento de renda foi 3,85% ao ano entre 1950 e 1980, no período imediatamente posterior (1980-2015), essa taxa ficou em 0,79%.
Segundo ele, apesar de não gerar postos de trabalho como em décadas passadas devido à automação das operações, as fábricas continuam sendo articuladoras da cadeia de produção e têm a capacidade de impactar a geração de emprego direto e indireto. Entre os exemplos dos empregos indiretos mais demandados estão atividades vinculadas a serviços pessoais, como logística e mobilidade de produtos geralmente importados. No entanto, Pochmann acrescenta que os serviços poderiam ser mais amplos e de maior valor agregado como engenharia e serviços vinculados ao setor produtivo, caso a indústria brasileira tivesse maior participação no PIB.

A geração ou não de empregos na indústria, segundo ele, está relacionada tanto à forma como cada país se encaixa na economia mundial quanto a especificidades internas. “Se o país produz e exporta bens de maior valor agregado, com maior conteúdo tecnológico, há a geração de empregos de mais qualidade”, diz. A posição do Brasil é oposta e está marcada pela “especialização produtiva na produção e exportação de bens primários”, o que leva a um impacto “muito limitado” sobre as opções de emprego, em especial os de melhor qualidade. No aspecto interno,
Pochmann chama a atenção para a alta concentração de renda do país, que restringe o poder de compra a uma pequena parcela da população. “A renda é concentrada, portanto, grande parte da população não tem acesso a um consumo básico adequado”. Essa ampliação do mercado interno, na visão do pesquisador, seria um importante motor para o aumento da atividade industrial e consequente crescimento do mercado de trabalho com melhores salários e direitos sociais. Essa posição é similar a do diretor-técnico do Dieese, Fausto Augusto Júnior, mas ele acrescenta que a discussão da política industrial não pode acontecer de forma isolada. “A política de segurança alimentar, a política de estabilidade de preços, tudo isso compõe um contexto que é capaz de levar a um crescimento sustentável [da economia]. E aí sim, esse crescimento vai caminhar para um processo de melhoria nas condições de trabalho”, conclui.

O PAC como política de fomento ao emprego
Diante desse diagnóstico, Pochmann vê com otimismo o lançamento da terceira fase do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que prevê o investimento em diversos setores como cidades sustentáveis, transição energética, saúde, ciência e tecnologia com foco na promoção da “neoindustrialização”, como diz o documento do Programa. A previsão é que o PAC gere cerca de quatro milhões de empregos em três anos, diz a representante do Ministério do Trabalho e Emprego, o que ela considera uma quantidade expressiva. Ela reconhece que muitos desses postos serão de “empregos simples”, ou seja, como menos remuneração e exigência de qualificação, mas destaca que o foco do programa está em posições de maior densidade tecnológica, mesmo na construção civil. “Hoje em dia, quando a gente fala de construção civil, falamos daquela que utiliza módulos, material pré-fabricado, com um conjunto de características que exige mais tecnologia”, defende Paula Montagner.

“O Brasil dispõe de tecnologia e mão de obra capacitada para as atividades que o PAC privilegia de tal modo que o Programa é uma proposição econômica, mas de natureza política, em que o governo está informando ao setor privado que tem um compromisso com o crescimento econômico”, diz Pochmann, destacando a importância do Estado como indutor de crescimento. “O investimento público tem esse papel porque induz o crescimento de setores que são, em geral, mais intensivos no emprego e atendem demandas sociais reprimidas”, explica. E o presidente do IBGE destaca ainda mais um fator para o estímulo à industrialização: a relação entre a taxa de juros e o investimento no setor produtivo. “Enquanto a taxa de juros for maior do que uma possível taxa de retorno de investimento produtivo, não vai haver a mobilização desse recurso, que vai ficar no sistema financeiro. E essa possível mobilização de recursos tem a ver com o investimento produtivo, que é indutor de novos investimentos”, analisa.

Fausto Augusto Júnior, diretor-técnico do Dieese, também percebe o novo PAC como uma oportunidade para o Brasil retomar parte dos índices de industrialização perdidos desde a década de 1980, a começar pelas obras de infraestrutura. “Essas obras têm a capacidade de gerar emprego muito rápido e de qualidade, porque nós estamos falando de trabalhadores que operam na construção civil legalizada, com carteira assinada e direitos sociais”, diz. Após esse primeiro impulso, ele aposta em especial na transição energética, que tem destaque no PAC, como marca da retomada da industrialização. No entanto, Augusto entende que o país precisará desenvolver tecnologia nessa área e firmar acordos de transferência tecnológica similares aos feitos com a indústria automobilística, o que permitiu ao país atrair linhas de montagem inteiras. “Nós precisamos ampliar o investimento em ciência e tecnologia e criar compromissos. Também é preciso planejar a criação de uma estrutura para comportar essa transição e garantir a existência de empresas capazes de absorver essas transferências, de mão de obra e de equipamentos”, avalia. Mas pondera: “O que nós estamos vendo no setor de energia hoje é que esses empregos estão sendo gerados na montagem. E aí é como qualquer hidrelétrica, no período de montagem você tem muito emprego e depois que esta estrutura foi montada, o número de empregos se reduz drasticamente e acaba influenciando muito pouco a economia local. Então, esse é um debate que está no meio do caminho”.

Impactos da legislação
Os especialistas ouvidos pela Poli defendem que a legislação trabalhista tem pouco impacto no número de postos gerados, embora possa ter um papel fundamental na qualidade desse emprego. “De maneira geral, o empregador não contrata mais pessoas porque o salário caiu ou reduz a contratação porque o salário aumentou”, explica Pochmann e acrescenta que a geração de empregos está relacionada à demanda do produto ou serviço ofertado pelo empresário. “O aumento da produção se dá com a existência de investimento, financiamento ou demanda. Diante desse quadro favorável, haverá contratação. Se o salário for maior, o custo será repassado. Então, de maneira geral, a legislação tem pouco impacto na determinação do nível de emprego para cima ou para baixo”. O presidente do IBGE, no entanto, exemplifica o impacto na qualidade do emprego argumentando que, no caso do Brasil, a reversão da Reforma Trabalhista aumentaria a garantia de direitos. “O que nós teríamos, possivelmente, seriam empregos de qualidade mais alta”, diz.

Entre as principais perdas de direitos instituídas pela Reforma Trabalhista, e que divergem dos parâmetros de trabalho decente elencados pela OIT, a professora da UFAC elenca o trabalho intermitente. “A possibilidade de um contrato por dia, por uma semana, como se o sustento dessa pessoa e sua família pudesse ser intermitente, é a expressão máxima do estrago que a Reforma Trabalhista faz”. Além disso, segundo ela, a terceirização e a instituição da negociação individual auxiliaram no rebaixamento dos salários. “É necessário que a gente reafirme que não há simetria entre uma empresa e um trabalhador tomado como indivíduo. Então, não à toa, a presença de uma representação coletiva do trabalho está prevista na ideia de trabalho decente da OIT”, diz.

Além da Reforma Trabalhista, o enfraquecimento da proteção aos trabalhadores que caracteriza o emprego com qualidade pode ser exemplificado pelas condições de quem trabalha por meio de plataformas de aplicativo. Uma tendência de nível global e que contradiz as diretrizes da OIT, conforme afirmou o diretor da Organização para o Brasil, Vinícius Carvalho, em entrevista à BBC em setembro de 2023. “Não é possível que tecnologias do século 21, que são as mais modernas, coexistam com condições de trabalho do século 19. Por isso que temos observado esforços em vários governos para a regulação do trabalho em plataformas”, disse.

Em outubro de 2023, o IBGE lançou a primeira pesquisa ampla sobre o tema e contabilizou que 1,5 milhão de pessoas trabalharam por meio de plataformas de aplicativos em 2022. O módulo Teletrabalho e Trabalho por Meio de Plataformas Digitais da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) identificou que 77,1% desses trabalhadores são autônomos e 9,3% têm outra ocupação sem carteira assinada na iniciativa privada. Os plataformizados trabalharam mais no quarto trimestre de 2022 em comparação ao total de ocupados no setor privado: 46 horas semanais contra 39,6 horas. Eles também contribuem menos para a previdência: 35,7% ante 60,8%. A taxa de informalidade também é maior entre esses trabalhadores: 70% contra 44,2% dos ocupados no setor privado. “É um trabalho extremamente precário, com pouco ou nenhum direito, e uma tendência que já começa a se refletir no setor formal”, diz Luci Praun, integrante da pesquisa.

Em meio a tantas perdas para os trabalhadores, acentuadas a partir de 2010 com a entrada das empresas que regulam o trabalho a partir de algoritmos, Praun identifica alguns avanços na imposição de limites a essas empresas em países como Estados Unidos, Reino Unido, Brasil e Espanha. Esse último país aprovou há dois anos inclusões na legislação trabalhista e passou a considerar que há vínculo empregatício de entregadores com as plataformas. “Esse é um exemplo de um setor extremamente precarizado, que tem se mobilizado e já há algum desenho de legislação protetora do trabalho, mas é preciso avançar nos direitos do trabalho como um todo”, finaliza.

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