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Quase meio século depois, a Covid-19

Convencimento da população, universalização e sistema de informação para regular as doses aplicadas são alguns dos desafios que a pandemia traz para o PNI
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 11/01/2021 13h01 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

O desafio de vacinar a população brasileira contra uma doença nova, de proporções pandêmicas, chega num contexto em que todos esses fatores se misturam: por um lado, a experiência de quase 50 anos de um programa de imunização estruturado nacionalmente e reconhecido mundo afora; por outro, limitação mundial na capacidade de produção dos imunobiológicos e números que demonstram um retrocesso na adesão da sociedade às campanhas de vacinação. “A gente está voltando a um problema do início do século 20, [quando houve a] Revolta da Vacina. A gente podia entender a população do início do século 20 quando o exército ou a polícia entravam na casa da pessoa para imunizá-la à força. Isso não acontece hoje. A vacina é obrigatória, mas não vamos ver o Estado chegando lá com o policial para imunizar alguém em casa”, contextualiza Carlos Lula, presidente do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass), ressaltando as mudanças pelas quais o país está passando neste exato momento: “Em toda a minha vida eu fui vacinado e nunca perguntei a origem da vacina, se era espanhola, alemã, chinesa ou da Nicarágua. A gente sempre considerou que a vacina era uma dádiva, um direito meu, que o Estado não iria colocar no meu corpo algo que não considerava seguro e eficaz. De repente, a gente começa todo um movimento para descredibilizar o processo de vacinação, para colocar em xeque a origem da vacina, para colocar em dúvida se de fato a vacina serve para A, B ou C”, lamenta, ressaltando o quanto isso atrapalha o trabalho dos gestores. “É uma pena, porque estamos gastando uma energia enorme para ter que dizer a população: ‘olha, é importante se vacinar, a vacina é segura, é eficaz, ela vai permitir que a nossa vida volte ao normal’.

Carla Domingues faz coro: “Não foi a obrigatoriedade que fez com que o Programa de Imunizações se fortalecesse ou que a população comparecesse. Foi um apelo, um consenso de formadores de opinião – e aí eu estou falando do Presidente da República, dos governadores, dos ministros, dos secretários de saúde, dos técnicos, da sociedade científica, de todo mundo que sempre falou bem sobre vacina e convenceu a população que ela deveria ser vacinada. E eu acho que nós estamos mudando o discurso. Deveríamos estar agora falando para a população exatamente isso: quando nós tivermos uma vacina, a população deve comparecer, porque assim vai estar protegida, é dessa forma que a economia vai voltar a rodar. A gente precisa é dar confiança à população de que ela vai receber uma vacina segura e eficaz”.

Já o assessor técnico do Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde (Conasems) considera que, felizmente, na sociedade brasileira, esse movimento antivacina ainda não chegou com a força que ganhou em outros países. Por isso, Alessandro Chagas acredita que, mesmo que “grupos radicais” não queiram se vacinar, o problema maior no caso da Covid-19 vai ser exatamente o oposto: a corrida por uma vacina que não vai existir em quantidade suficiente para todo mundo. O presidente do Conass argumenta que, do ponto de vista operacional, essa organização é simples: basta escalonar a vacinação pela inicial do nome, por exemplo – um dia para a letra A, outra para a B e assim por diante. Mas a preocupação do assessor do Conasems vai além da organização. “Depois que a gente define quais as prioridades, quem vai fazer a segurança dessa vacina?”, questiona. E justifica: “Não sei, o mundo está meio estranho”. Carlos Lula, por sua vez, ressalta a importância de se garantir que não haja “nenhum tipo de fraude nesse mecanismo” de priorização. “A imunização [da Covid-19] não vai ser uma experiência simples, pelo contrário, vai ser uma experiência complexa”, opina.

Quem controla?

A falta de definição sobre qual vacina será aprovada e adotada pelo Programa Nacional de Imunização no Brasil deixa pontos de interrogação sobre as eventuais dificuldades. Como é possível que mais de uma vacina seja incorporada para dar conta do montante de pessoas a serem vacinadas, isso acaba realçando um problema que Alessandro Chagas, do Conasems, diz que é muito anterior à pandemia: a fragilidade dos sistemas de informação que deveriam permitir o controle das doses aplicadas. Ele explica: “Todas as vacinas que têm sido testadas no Brasil até agora prevêem mais de uma dose. Provavelmente, teremos mais de uma marca de vacina sendo operacionalizada ao mesmo tempo: por exemplo, a da AstraZeneca [com a Fiocruz] e a do Butantã. Só que elas não são intercambiáveis”.

Não há qualquer novidade em se utilizar mais de uma marca de vacina – isso já acontece com várias, inclusive a que imuniza contra o sarampo. Mas em nenhuma delas há problema de se tomar a primeira dose de uma marca e a segunda de outra. No caso da Covid-19, talvez no futuro isso deixe de ser um risco, mas, neste momento, por se tratar de uma vacina nova, segundo Alessandro, o consenso é de que cada pessoa deve tomar todas as doses da mesma vacina. E isso impõe decisões sobre a forma como os municípios farão esse controle. “Tem pessoas que viajam, transitam. Nós vamos dizer que elas têm que ir à unidade delas para tomar a vacina de novo? Ou vamos dizer que elas podem tomar em outro lugar, onde estiverem? Vamos dar um documento para que a pessoa também seja responsável [pelo controle das doses tomadas]?”, exemplifica, completando: “Precisamos de um sistema [de informação] que dê robustez. O sistema atual não dá conta disso”. Ele conclui: “Não é impossível operacionalizar, mas temos que falar a verdade sobre isso”.

Em nota sobre o plano de vacinação divulgado pelo Ministério da Saúde em dezembro, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) afirma que “há consenso entre especialistas quanto à necessidade de rastreamento dos vacinados mediante CPF ou Cartão Nacional de Saúde” mas alerta que a falta dessa identificação não pode ser um obstáculo à imunização “sob risco de prejudicar segmentos sociais menos favorecidos e ‘invisíveis’ que podem não possuir os documentos”. Também tem sido reconhecido como um obstáculo para o PNI o anúncio de que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) exigirá dos usuários a assinatura de um termo de responsabilidade sobre possíveis efeitos da vacina que for aprovada de forme emergencial. “Se acontecer, será a ampliação de um estudo clínico, não vacinação”, critica Carla Domingues, ressaltando que os voluntários que participam de pesquisas de eficácia dos imunobiológicos demoram muito mais tempo nesse processo do que o esperado para a vacinação propriamente dita. Sem contar os recursos que isso demandaria, diz, lembrando que será preciso destacar profissionais para entregar, explicar e recolher assinatura do documento e que isso se torna ainda mais complicado diante de parte da população não alfabetizada e indígenas, por exemplo.

O dilema da geladeira

Outro desafio que também depende da vacina a ser adotada diz respeito à temperatura em que ela precisará ser armazenada. No momento em que esta reportagem foi finalizada, era amplamente noticiado o início da imunização no Reino Unido utilizando a vacina produzida pela Pfizer – o que os representantes dos gestores municipais e estaduais ouvidos nesta matéria afirmam que seria uma impossibilidade no Brasil hoje. Isso porque essa vacina, como outras que estão sendo testadas, precisa ser guardada a uma temperatura negativa – neste caso específico, a menos 70ºC. “Se for essa vacina, o país não está preparado. Precisa organizar sua rede de frio para dar conta disso”, concorda Carla Domingues.

E o que isso significa na prática? “Vai ter que comprar esses geradores, vai ter que adequar sua cadeia de transporte para transportar a vacina a menos 70°. Vai ter que ter esses geradores tanto em nível estadual quanto municipal para armazenar isso. Teria que ter refrigeradores na sala de vacinas com capacidade de armazenamento...”, enumera, concluindo que isso teria um custo “elevadíssimo”. O presidente do Conass concorda: “A gente não tem estrutura e seria muito caro montar essa estrutura de distribuição, de acondicionamento e depois de aplicação [da vacina] nessa temperatura”. Já o assessor do conselho de secretários municipais de saúde é ainda mais definitivo: “O Conasems deixou claro que as vacinas negativas são impossíveis de serem implementadas no Brasil”.

Ao apresentar proposta de compra ao governo brasileiro, a Pfizer argumenta que desenvolveu embalagens para o armazenamento da vacina na temperatura adequada por até 15 dias, utilizando gelo seco. Para o assessor do Conasems, essa solução é típica de “quem não conhece a diversidade do Brasil”. “Só para você ter uma ideia, para vacinar em torno do rio Purus, por exemplo, dependendo do município em que está, você gasta 17 dias para fazer a vacinação na calha do rio, porque você sobe de um lado da margem, por sete ou oito dias, e depois desce pelo outro lado”, exemplifica. Por isso, ele reafirma que, “para garantir a equidade”, mesmo com essa solução, o Brasil não tem condições de operacionalizar a aplicação dessa vacina no SUS, exceto em centros urbanos, combinada, portanto, com outras vacinas. “Acho que teremos que organizar inúmeros arranjos”, conclui. Em nota conjunta assinada em dezembro, após a divulgação da primeira versão do plano de vacinação contra a Covid-19 pelo Ministério, Conass e Conasems defendem a incorporação de “todas as vacinas contra a Covid-19 com reconhecidas eficácia e segurança”, considerando principalmente “aquelas que já estão sendo testadas no Brasil” e apontam a necessidade de que esse processo seja coordenado pelo Ministério da Saúde. “O PNI é um patrimônio do Brasil e sua experiência já consolidada na realização de campanhas de grande porte e seu forte vigor técnico são um importante trunfo para atender a este desafio”, diz o texto.

Neste momento, as maiores expectativas recaem sobre as vacinas de Oxford e a Sinovac, para as quais já existem acordos de fabricação no Brasil – a primeira pelo governo federal, por meio da Fiocruz, e a segunda pelo estado de São Paulo, com a produção do Instituto Butantã. Ambas podem ser armazenadas em temperaturas positivas. “Diante das evidências que a gente tem até agora [sobre as vacinas a serem incorporadas], eu diria que a gente está preparado sim”, conclui o presidente do Conass.

Via assessoria de imprensa, a reportagem entrou em contato com o Ministério da Saúde, solicitando entrevista com a coordenação do PNI para tratar tanto sobre a história e estrutura do programa quanto dos desafios relacionados à Covid-19, mas não obteve resposta.

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