Eles ocupam os empregos mais precários. Os mais mal remunerados também. E, como se não fosse bastante, quando o país é abalado por uma crise econômica, como agora, eles são ainda os mais atingidos pelos crescentes níveis de desemprego. ‘Eles’ e ‘elas’ são nada mais nada menos do que 53% da população brasileira autodeclarada, predominantemente preta e parda na quantidade e assustadoramente branca nos direitos. No mês em que se comemora o Dia da Consciência Negra, pelo menos duas pesquisas mostram como, no Brasil, a cor continua sendo uma linha de corte para a inserção e permanência no mercado de trabalho.
A Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED) desenvolvida pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) realizou agora em novembro um levantamento temático sobre os negros nos mercados de trabalho metropolitanos, trazendo dados do período entre 2013 e 2014 relativos a cinco grandes cidades brasileiras: Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo. Os resultados mostram, por exemplo, que mesmo onde a desigualdade de rendimento médio entre brancos e negros é menor —na capital cearense —, o valor recebido pelos negros para cada hora trabalhada corresponde a 77,5% do que os brancos recebem, o que significa uma diferença de mais de 20%. Os dados apontam que, entre 2011 e 2014, o rendimento médio da população negra que tem alguma ocupação cresceu mais do que entre a população branca — o que é explicado pela pesquisa em função do aumento dos valores pagos no setor de construção civil. Mas o documento alerta: “A análise dos dados do período mais recente, 2013-2014, no entanto, mostra fragilidade e indica que essa melhora relativa depende do comportamento mais geral da economia e dos reflexos desta sobre o mercado de trabalho”.
Como o “comportamento” da economia não anda nada bom em 2015, em meio a uma crise que se tenta controlar com um ajuste fiscal recessivo, os impactos sobre a classe trabalhadora negra já estão sendo sentidos (e medidos) na Pesquisa Mensal de Emprego realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A edição mais recente desse levantamento mostra uma “taxa de desocupação” geral de 7,9% em outubro. Quando os dados são segmentados por cor, no entanto, esse número varia: aumenta para 8,8% em relação à população negra e baixa para 7% em relação aos brancos. Já em 2014, o Dieese mostrou que, do total de desempregados em três das cidades estudadas, 80% eram negros. Naquele ano, a única cidade analisada em que o desemprego não foi maior entre os negros foi Porto Alegre — que tem uma população em idade ativa e economicamente ativa predominantemente branca. De acordo com o relatório, no entanto, é possível afirmar que em todas as regiões “a proporção de negros entre os desempregados é sempre superior à parcela de negros entre os ocupados e no conjunto da População Economicamente Ativa”.
Os dados mais recentes do IBGE dão também um retrato de que tipo de emprego prevalece entre a população negra. Em outubro de 2015, nas seis regiões metropolitanas em que o levantamento é feito — Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Recife, Salvador e Porto Alegre —, encontrou-se um total de 22,45 milhões de pessoas ocupadas (emprego formal e informal). Dessas, 11.876 são brancas e 10.346 são pretas ou pardas. “No Brasil há uma combinação perversa entre preconceito de classe e raça”, diz Carolina Vianna, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). Ela lembra que a frágil posição da população negra no mercado de trabalho costuma ser associada ao momento imediatamente pós-abolição, quando, apesar de ‘livres’, os ex-escravos não contaram com políticas públicas que os ajudassem a se inserir na dinâmica do modo de produção capitalista. Ela destaca, no entanto, que nunca deixou de haver lutas. “Mas elas ainda não foram vitoriosas no sentido de promover a equidade”, explica.
Entre as seis categorias de atividades que o IBGE considera, os negros só são maioria no setor de construção (987 empregados contra 716 brancos) e nos serviços domésticos (846 contra 540), áreas que historicamente pagam menores salários e demandam um grau de instrução mais baixo. Não por acaso, o cálculo do rendimento médio real — tendo como base o trabalho principal — também aponta um abismo: R$ 2.669 para a população branca e R$ 1.590 para pretos e pardos, segundo os dados mais atualizados do IBGE, referentes a outubro deste ano. “No Brasil, o racismo opera de uma maneira mais silenciosa, mais difícil de combater. Ele se manifesta sem precisar ser dito, em situações como a escolha de quem vai ocupar um emprego, o grau de evasão de crianças e adolescentes negros das escolas...”, exemplifica Carolina.
Outros indicadores
Acaba de ser lançado também o Mapa da Violência 2015 que traz um estudo especial sobre a situação das mulheres no Brasil (leia mais neste Portal na próxima semana). E a pesquisa mostra que, também nesse segmento específico, a desigualdade entre a população negra e branca continua alarmante. O número de homicídios de mulheres brancas, por exemplo, caiu 9,8% de 2003 a 2013, enquanto entre as mulheres negras houve um aumento de 54,4%. Quando se comparam as taxas de homicídio — e não os valores absolutos —, a diferença permanece: uma queda de 11,9% entre as brancas e um crescimento de 19,5% entre as negras. O chamado “índice de vitimização”, que mede quantas mulheres negras morrem a mais do que brancas no país, chegou a 66,7% em 2013 — dez anos antes, era de 22,9%. Os estados com o maior número de homicídios de mulheres negras são Espírito Santo, Acre e Goiás.
Ainda segundo o estudo, a Lei Maria da Penha (nº 11.340) teve um impacto na redução de vítimas entre a população feminina branca (2,1%), mas, entre as negras, a violência doméstica aumentou em 35% desde a criação dessa legislação, em 2006.
O Mapa da Violência anterior, de 2014, se dedicou à juventude e mostrou que, também nesse segmento populacional, o abismo entre brancos e negros permanece. De acordo com os dados, em 2002, morreram proporcionalmente 73% mais jovens negros do que brancos vítimas de violência. Em 2012, esse índice subiu para 146,5% — o que significa que, para cada jovem branco assassinado, morrem 2,7 negros. Tal como no caso das mulheres, nos dez anos estudados houve queda de 24,8% de vítimas de homicídio entre a juventude branca, enquanto entre os negros registra-se um aumento de 38,7%. Em relação à população total — e não apenas aos jovens —, o estudo identificou uma queda de 23,8% nas taxas de homicídio entre os brancos e um crescimento de 7,1% entre os negros. “Dessa forma, se os índices de homicídio do país nesse período estagnaram ou mudaram pouco, foi devido a essa associação inaceitável e crescente entre homicídios e cor da pele das vítimas, na qual, progressivamente, a violência homicida se concentra na população negra e, de forma muito específica, nos jovens negros”, conclui o estudo.