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Reforma Administrativa avança no Congresso

Texto aprovado na comissão especial traz de volta pontos polêmicos, como a concessão de serviços públicos a iniciativa privada, contratação "temporária" de servidores por até dez anos e permite redução de jornada e remuneração em períodos de crise fiscal. Base do governo planeja votá-la até meados de outubro.
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 01/10/2021 12h55 - Atualizado em 01/07/2022 09h41
Ato contra a PEC 32/20 no dia 28 de setembro, em frente ao Congresso Nacional Foto: Divulgação Fonacate

Uma das pautas prioritárias do governo de Jair Bolsonaro, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32/2020, a Reforma Administrativa, avançou no Congresso Nacional, e deve ser colocada para votação em plenário nas próximas duas semanas. No dia 23 de setembro, a comissão especial da PEC 32/2020 na Câmara  aprovou, por 28 votos a 18, o substitutivo apresentado pelo relator Arthur Maia (DEM-BA), sob protestos de parlamentares oposicionistas, que criticaram o fato de o substitutivo colocado para votação ter voltado atrás em concessões que haviam sido feitas à oposição na penúltima versão do relatório, reincorporando ao texto alguns dos pontos considerados mais críticos da proposta.

É o caso, por exemplo, do artigo 37-A, que possibilita que o poder público firme convênios com entidades privadas para a prestação de serviços públicos, como na saúde e na educação. O texto aprovado traz ainda a possibilidade de contratação temporária de pessoal por meio de processo seletivo simplificado – ou seja, sem concurso público – por um prazo de até dez anos, e além disso permite a redução da jornada e do salário de servidores públicos em até 25% em períodos de crise fiscal. Somente aqueles cargos considerados “exclusivos de Estado” não ficarão sujeitos aos convênios com a iniciativa privada e aos cortes de despesas com pessoal. De acordo com o substitutivo, são “cargos exclusivos”: os que exerçam atividades finalísticas da segurança pública, manutenção da ordem tributária e financeira, regulação, fiscalização, gestão governamental, elaboração orçamentária, controle, inteligência de Estado, serviço exterior brasileiro, advocacia pública, defensoria pública e atuação institucional do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, incluídas as exercidas pelos oficiais de justiça, e do Ministério Público.


Mobilização contrária

“O texto que vai para o plenário é muito preocupante”, alerta Rudinei Marques, presidente do Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado (Fonacate). “Ele entrega boa parte do serviço público para a exploração econômica, para a geração de lucro a partir da prestação de serviços públicos. Isso é inaceitável. Não podemos transigir em nenhum momento e temos que derrubar esse dispositivo”, completa Marques, ressaltando ainda que o substitutivo abre portas para a terceirização “quase que irrestrita” no âmbito do serviço público. “Todas aquelas atividades que não forem consideradas exclusivas do Estado poderão ser objeto de terceirização. E mesmo dentro das carreiras de Estado pode haver contratação por tempo determinado. A gente está falando de professores universitários sendo contratados por um semestre para ministrarem uma disciplina em uma universidade e depois serem mandados embora, ou profissionais de saúde contratados no curso de uma pandemia e depois dispensados”, exemplifica.

Para o presidente do Fonacate, a Reforma Administrativa tem por objetivo trazer para dentro do serviço público a “flexibilização” das formas de contratação tornada legal por meio da Reforma Trabalhista aprovada em 2017. “Um dos mecanismos mais cruéis da Reforma Trabalhista que está sendo importado é o trabalho intermitente, a contratação sob demanda”, destaca Marques, para quem esses três pontos – concessão de serviços públicos para a iniciativa privada, possibilidade de redução de jornada e remuneração de servidores e contratação temporária de pessoal – são “intoleráveis”. “São pontos gravíssimos, não só para os servidores, mas para a sociedade como um todo, que vai ter que pagar essa conta da não prestação e da precarização dos serviços públicos pelo Estado”, reitera.

Assessora jurídica da Frente Parlamentar Mista em Defesa do Serviço Público (Servir Brasil), Larissa Benevides, aponta que o texto aprovado na comissão especial apresenta algumas “incongruências”. “Ele fala expressamente em contratação temporária inclusive para atividades permanentes, o que em si já é um contrassenso. Mas para além disso, esses contratos ‘temporários’ podem ser de até dez anos, o que não faz sentido. Como você pode chamar de temporária uma contratação por dez anos?”, questiona Larissa, para quem a permanência dessa forma de contratação paralela aos concursos públicos tende a aumentar a precarização dos vínculos no serviço público. “Pode-se deixar de lado a contratação via concurso público e optar por essa contratação de temporários ou via acordos de cooperação com a iniciativa privada”, diz Larissa.

Ela alerta ainda que a PEC 32/2020 amplia as possibilidades de perda de cargo de servidores públicos com estabilidade, ao permitir, por exemplo, o desligamento de servidores cujos cargos forem considerados “obsoletos”. “As tecnologias avançam, e não há problema em a administração pública constatar que um cargo se tornou obsoleto ou desnecessário. Mas o que acontece hoje? O servidor de um cargo extinto é colocado em disponibilidade e reaproveitado em outro cargo com funções semelhantes. Com a aprovação da PEC isso não vai mais acontecer, o servidor vai ser simplesmente colocado ‘no olho da rua’ com uma indenização equivalente ao seu salário vezes o número de anos que ele prestou serviço. Isso é muito cruel com um servidor que trabalhou na administração pública por 25, 30 anos”, diz a assessora jurídica da Frente.  De acordo com ela, preocupa a falta de parâmetros no texto para que essa obsolescência seja constatada. “Isso não está delimitado. Nosso temor é que servidores sejam desligados do serviço público por outros motivos sob essa justificativa. Se abre a possibilidade, com a PEC, de que eventualmente um governo possa substituir, por interesses políticos, toda uma força de trabalho contratada para servir aos interesses do Estado”, pondera.


Consultoria do Senado aponta riscos da Reforma

Essa e outras preocupações foram expressas em uma nota técnica produzida em maio pela Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle do Senado Federal.  Nela, o órgão alerta que a PEC 32/20 apresenta diversas medidas capazes de facilitar a “captura do Estado por interesses privados”. “Evidentemente, o risco de captura por interesses privados já existe atualmente, e certamente já se encontra materializado em certa medida na administração pública. No entanto, a PEC 32/2020 eleva substancialmente tanto a probabilidade quanto o impacto da materialização desse risco. Isso porque a PEC permite que a eventual resistência que a burocracia profissional possa, atualmente, fazer a determinados comandos emanados da hierarquia seja solapada, por meio da sua substituição, parcial ou total, pelas novas formas precárias de contratação, além de criar novos instrumentos jurídicos para ampliar a efetividade e o alcance da captura”, afirma a nota, que expressa “especial preocupação” com as possibilidades de captura, por parte da União, das agências reguladoras, das universidades públicas, do Tesouro Nacional e de órgãos como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), entre outros.

A nota alerta ainda para o risco de desestruturação dos órgãos públicos em consequência da introdução das mudanças na composição do seu quadro de pessoal trazidas pela PEC 32/2020. “Ao propiciar a substituição parcial ou total de um corpo funcional permanente por contratações mais precárias e politicamente influenciáveis, [a PEC 32/2020] pode trazer impactos relevantes sobre a eficiência dos órgãos públicos”, afirma a nota. Assim, continua o texto, ao invés de contar com um corpo permanente e profissionalizado, os órgãos “podem passar a depender de uma força de trabalho com vínculos precários, sujeita a elevada rotatividade. Nesse cenário, é forte a tendência de as organizações se tornarem igualmente precárias, com graves problemas de perda de memória organizacional, dificuldades de planejamento, fragilidade da cultura organizacional, desenvolvimento profissional deficiente e elevada partidarização política”.

A nota conclui afirmando que, apesar de apresentada como medida de redução de gastos públicos, a PEC 32/2020 “apresenta diversos efeitos com impactos fiscais adversos, tais como aumento da corrupção, facilitação da captura do Estado por agentes privados e redução da eficiência do setor público em virtude da desestruturação das organizações. Por sua vez, os efeitos previstos de redução de despesas são limitados, especialmente no caso da União. Assim, estimamos que a PEC 32/2020, de forma agregada, deverá piorar a situação fiscal da União, seja por aumento das despesas ou por redução das receitas”.

Segundo Larissa Benevides, a suposta economia trazida pela Reforma Administrativa é um ponto que ainda precisa ser explicitado, uma vez que ainda não foi apresentado nenhum estudo de impacto orçamentário para subsidiar as propostas trazidas pela PEC 32/2020, como rege o artigo 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). “As premissas que sustentam essa proposta nunca foram comprovadas. Onde estão os estudos que mostram que a máquina pública é cara? Que mostram a suposta economia da Reforma Administrativa?”, cobra Larissa, lembrando que no início de agosto, após representação do deputado federal Israel Batista (PV-DF), presidente da Servir Brasil, o Tribunal de Contas da União (TCU) determinou à Casa Civil e ao Ministério da Economia que encaminhassem ao órgão os estudos contendo a metodologia de cálculo que fundamentem a projeção de redução dos gastos públicos no caso da aprovação da PEC 32. “Isso nunca foi apresentado”, afirma a assessora jurídica da Servir Brasil.


Corrida contra o tempo

A aprovação do substitutivo se deu após a substituição de oito deputados titulares da comissão contrários à PEC, que vinham reivindicando a inclusão de juízes e procuradores no texto, o que acabou não acontecendo. Para o presidente do Fonacate Rudinei Marques, a retomada desses trechos pelo relator da PEC foi uma “retaliação” pela estratégia de obstrução da votação da proposta na comissão especial adotada por deputados da oposição. “Até a penúltima versão a gente tinha conseguido vários avanços. Mas como retaliação aos movimentos dos partidos de oposição que interpuseram vários recursos e artifícios para retardar a votação, o presidente da comissão e o relator voltaram com dispositivos que já haviam sido superados”, critica Marques.

Nesse movimento, porém, a base do governo pode ter perdido votos essenciais para a aprovação da matéria em Plenário, que por se tratar de uma PEC necessita do voto favorável de 308 dos 513 deputados. “Nós avaliamos que o mês de outubro será decisivo, porque as eleições de 2022 já estão e os próprios parlamentares não querem sofrer o efeito negativo de uma votação como essa em ano eleitoral”, avalia Marques.

Leia mais

Essa semana, o recém-eleito presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), encaminhou a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32, conhecida como Reforma Administrativa. Apresentado pelo governo federal em setembro de 2020, o projeto ficou engavetado por conta da pandemia do novo coronavírus, e é uma das pautas prioritárias do governo Bolsonaro, que pretende aprová-la até o final de 2021. Nessa entrevista, o presidente do Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado (Fonacate) Rudinei Marques explica por que a entidade vem se mobilizando contra a proposta, que segundo ele pode enfraquecer o serviço público e favorecer a entrada da iniciativa privada em serviços hoje prestados pelo Estado.