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Reformas interrompidas

Golpe de 1964 pôs fim à  ampla mobilização em torno das reformas de base, que previam alterações em estruturas sociais, econômicas e políticas que permanecem intocadas até hoje.
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 28/05/2014 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Na última edição da Poli, falamos dos resquícios da ditadura empresarial-militar no Brasil hoje, 50 anos após o golpe de 1964. Ali você ficou sabendo que, apesar de ter chegado ao fim oficialmente há quase três décadas, a ditadura deixou como legado um autoritarismo ainda arraigado na sociedade brasileira. Quase um ano após o início das Jornadas de Junho, é importante lembrar não só o que os governos autoritários fizeram enquanto estiveram no poder, mas também o que eles deixaram de fazer. As chamadas reformas de base são um bom exemplo: bandeiras levantadas pelo governo João Goulart, deposto pelos militares, elas eram um conjunto de propostas que visavam colocar em marcha mudanças nas estruturas econômicas, sociais e políticas, mirando a redução dos índices de desigualdade no país. "Historiadores de maneira geral dizem que há certa indefinição do que eram essas reformas. Nesse rol, se elenca a reforma agrária, que talvez tenha sido a que mais gerou tensão.

Há ainda a reforma universitária, como proposta para modificar o acesso à universidade; a reforma eleitoral, sobre a qual também se tinha uma clareza um pouco maior, no sentido de estender o voto aos analfabetos, e a baixa oficialidade das forças armadas; a reforma urbana, a respeito da qual havia indicações do Jango no sentido de disciplinar o preço dos aluguéis, etc.", enumera o historiador e professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), José Roberto Franco Reis. Além disso, as medidas visavam também reformar o aparato administrativo do Estado brasileiro, o sistema tributário, ampliar a capacidade de intervenção estatal na economia e obter um maior controle dos investimentos externos no país por meio da regulamentação das remessas de lucros ao exterior, bem como legalizar o Partido Comunista. "Era, em suma, um conjunto de reformas com um perfil um pouco indefinido ainda, mas que podemos dizer que se inscreviam num plano mais geral de uma estratégia nacional-estatista, que pode ser compreendida como uma forte ação do Estado em reformas que provocassem certas transformações no sentido de atender algumas reivindicações populares", complementa José Roberto.

Ex-ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, João Goulart era visto com desconfiança por militares, empresários e políticos de direita, em consequência de sua aproximação com o movimento sindical. A adoção das reformas de base como bandeiras de governo não ajudou na mudança dessa imagem. Como explica Martina Spohr, coordenadora de Documentação do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV), a proposição das reformas ajudou na construção do discurso dos setores que defendiam a intervenção militar. "Não foi por causa das reformas de base que houve o golpe, é mais amplo que isso, mas, sem dúvida, isso possibilitou a proliferação do discurso anticomunista, que se utilizou de elementos das reformas para deturpá-las em suas propagandas, em seus discursos, colocando nas costas do Goulart a alcunha de comunista", diz Martina.

Mas a associação com o comunismo era um tanto exagerada. É o que diz o professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Caio Navarro de Toledo, lembrando que Goulart, que defendia a reforma agrária, era ele mesmo um grande proprietário de terras. "Não se tratava de questionar a ordem capitalista, mas de promover mudanças mais ao sabor de uma socialdemocracia. Tratava-se, então, de reformar o capitalismo para que ele se consolidasse no Brasil e, nesse sentido, se entendia que a reforma agrária era importante na medida em que permitiria que mais proprietários existissem, uma vez que a terra era altamente concentrada nas mãos de poucos. A reforma agrária permitiria ampliar a produção, criar mercado interno, favorecer as indústrias na medida em que matérias-primas seriam postas em circulação, beneficiando o próprio desenvolvimento industrial".

Além de ser uma espécie de carro-chefe das reformas de base, a reforma agrária era a que tinha propostas mais bem definidas. A principal delas envolvia uma alteração na Constituição vigente, promulgada em 1946, que dizia que qualquer desapropriação de terras feita em nome do interesse social deveria ser promovida mediante o pagamento de indenização em dinheiro ao proprietário. "Esse preceito constitucional praticamente impedia a reforma. Houve tentativas de fazer com que esses pagamentos da União fossem feitos em títulos da dívida pública, mas o Congresso, em sintonia com setores ligados ao latifúndio através da UDN e do PSD, sempre foi contra. Era uma luta ferrenha, permanente", aponta Caio.

Oposição empresarial

A oposição do Congresso não era o único obstáculo ao debate sobre as reformas de base. Segundo Martina Spohr, as propostas de Jango incomodavam setores do empresariado que vinham ascendendo economicamente no período. "A entrada do capital estrangeiro no Brasil tem tudo a ver com a resistência às reformas de base. Isso acontece principalmente a partir de Juscelino Kubitscheck, que abre o país ao capital externo, medida que tem, dentre suas consequências, a formação de setores do empresariado que experimentaram um crescimento bastante efetivo no período. Contudo, tais setores ainda não tinham representação forte dentro do pacto social populista que foi construído a partir de 1946", explica, e completa: "Esses grupos, que tinham um poder econômico bastante forte dentro do capitalismo brasileiro, começaram a se incomodar com as propostas de reformas do João Goulart".

Em dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal Fluminense (UFF), Elaine Bortone escreve que o modelo de desenvolvimento econômico nacional-reformista proposto por Goulart desagradava especialmente a esse setor do empresariado associado ao capital internacional. O governo Goulart, aponta Elaine, "promovera uma série de restrições aos investimentos multinacionais, contrariando diretamente os empresários estrangeiros e nacionais, e as exigências do capital monopolista. Elaborou a Lei de Remessas de Lucros, que consistia em os lucros das empresas estrangeiras serem reaplicados no país como ‘capital nacional', impedindo a saída maciça do capital; limitou as remessas de royalties e de transferência de tecnologia; elaborou a legislação antitruste e planejou a nacionalização de grandes corporações estrangeiras", escreve.

Para fazer oposição a essas propostas, representantes do empresariado com interesse direto na abertura da economia para o capital estrangeiro, em conjunto com militares de alta patente, se articularam em torno de organizações como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES). "Nas eleições de 1962 para deputado e senador, o IPES investiu muito dinheiro nas campanhas de candidatos da UDN, na tentativa de construir uma base política que permitisse as reformas do Estado consonantes com o desenvolvimento da perspectiva econômica desse grupo, que visava, por exemplo, menos restrições ao capital externo. O IPES também tinha uma estrutura bastante complexa de entrada em todos os meios: sindical, estudantil, movimento feminino, patrocinavam publicações de livros", enumera Martina. Entre seus financiadores estavam empresas e bancos nacionais e estrangeiros, principalmente dos Estados Unidos, que temiam que o Brasil se tornasse uma nova Cuba. "A participação dos Estados Unidos no golpe de 1964 não é momentânea. Havia uma preocupação do governo Kennedy com a política externa do Brasil", diz Martina. Segundo ela, a política externa brasileira até 1964 não tinha alinhamento direto com os Estados Unidos. "O Jango começa a se relacionar politicamente com a União Soviética, dá apoio a Cuba, que era realmente uma ameaça ao status quo capitalista na região. Naquele contexto, era importante para os Estados Unidos manter na sua órbita de influência os países da América Latina - sobretudo o Brasil, que é um país continental".

Nesse contexto, as reformas de base serviram para amplificar o receio de que Goulart ambicionava formar no Brasil uma "república sindicalista", como diz Caio Toledo. "Goulart era visto como alguém ligado aos trabalhadores, em virtude da relação próxima que construiu com o movimento sindical. Foi no seu governo que a organização nacional dos trabalhadores passou a ser legal, levando à criação, por exemplo, do Comando Geral dos Trabalhadores [CGT. Isso foi interpretado como uma tentativa do governo de organizar os trabalhadores para dar um golpe", afirma. Enfrentando grande oposição, Goulart decidiu pressionar pelas reformas por meio da sua base de apoio, formada pelo movimento sindical, partidos como o PTB e movimentos sociais como as Ligas Camponesas, se aproximando da população convidada para participar dos comícios e fazer pressão para que o Congresso finalmente apoiasse as reformas. "Estavam planejadas manifestações como a do Comício da Central do Brasil em vários estados, para discutir com o povo, ganhar a opinião pública e influenciar o Congresso Nacional, mas isso não significava golpe", lembra Caio Toledo. Foi no Comício da Central que Jango anunciou a intenção de promover a encampação de refinarias particulares e a desapropriação de terras às margens de rodovias, ferrovias e açudes para fins de reforma agrária. Essa foi a gota d'água para a deflagração do golpe, que uniu militares, empresários ligados ao IPES, políticos da UDN, grande mídia e a cúpula da Igreja Católica.

Reformas sob a ditadura: o papel do IPES

Porém, como afirma Martina Spohr, é um erro dizer que o golpe de 1964 colocou fim às reformas. "A direita não estava contra as reformas de base, ela queria as reformas de maneira que atendessem aos interesses deles. Após o golpe, algumas delas foram realizadas, de cima para baixo e não através de congressos, ou nada parecido com um debate público. Foram feitas de maneiras diferentes das propostas pelo João Goulart, mas eram reformas estruturais do Estado brasileiro e que mudaram inclusive a característica do regime político", explica. Nessa época, o IPES inclusive lançou um livro intitulado 'Reformas de Base: posição do IPES', que dava publicidade às propostas dos empresários. Segundo Martina, essa foi uma tentativa de desenvolver um projeto de governo e de um novo regime político, que viria a ser implementado após o golpe de 1964. "Muitas das personalidades que entraram para fazer parte do staff de ministérios do período do regime civil-militar, como o Mario Henrique Simonsen, Roberto Campos, Otavio Gouveia Bulhões, eram todos membros ou palestrantes no IPES", diz. Segundo a pesquisadora, a reforma administrativa do Estado foi um exemplo de mudança que era vista como necessária pelo governo João Goulart, mas que foi feita sob outras bases durante a ditadura. Não por acaso, escreve Elaine Bortone em sua dissertação, essa reforma foi feita com base nas propostas do IPES por meio do decreto-lei 200/67. "Os principais preceitos do referido decreto são cópia fiel do anteprojeto de reforma administrativa formulado pelo IPES. Com isto, a burguesia foi capaz de organizar o Estado em função de um projeto político próprio [...] Tendo ipesianos à frente na elaboração das políticas para a reforma do Estado, o governo criou medidas para incentivar a entrada do capital internacional e a iniciativa privada, contribuindo, assim, para aumentar os lucros dos empresários. Eliminou leis que bloqueavam a entrada do capital externo", enumera Elaine. Ela afirma que, além disso, o governo empresarial-militar adotou medidas para transformar as relações de trabalho, "tendo como uma das principais marcas da política da ditadura em relação aos trabalhadores o arrocho salarial". A redução da idade mínima de trabalho, a proibição de greves e o fim da estabilidade no emprego foram outras medidas implementadas no período para favorecer o empresariado, segundo Elaine.

Desigualdades permanecem

As reformas feitas durante a ditadura acabaram caminhando na contramão do que era declarado como objetivo das reformas de base defendidas por Goulart e setores populares: a redução da desigualdade no país. Os dados apontam que essa só fez aumentar após o golpe: em 1960, por exemplo, os 20% mais ricos concentravam 54,45% da riqueza produzida no país, e os 50% mais pobres detinham 17,71%; em 1976, os 20% mais ricos passaram a deter 67% da renda, com os 50% mais pobres detendo apenas 11,8%. Mais de duas décadas após o fim da ditadura, a desigualdade social permanece um problema estrutural no Brasil. Tanto que várias das bandeiras levantadas durante a discussão das reformas de base, há mais de 50 anos, permanecem relevantes hoje no Brasil. Haja vista a distribuição de terras. De acordo com o Censo Agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os estabelecimentos com mais de 1 mil hectares - 1% do total de propriedades rurais no país - concentram 43% da área total de estabelecimentos agropecuários no país, enquanto os com menos de 10 hectares - 47% do total de propriedades rurais - detinham apenas 2,7% da área total. Os dados são do censo de 2006 do IBGE, e mudaram pouco em relação às edições de 1996 e 1985, de acordo com o instituto. "A reforma agrária com certeza faz sentido hoje. O campo no Brasil hoje tem outra estrutura, não é mais o velho latifúndio improdutivo o problema, a disputa então se dá obviamente em torno da distribuição da terra mas também do modelo de ocupação do campo, agronegócio versus um modelo de agricultura familiar, de produção de alimentos com outra perspectiva. Essa ainda é uma questão não resolvida e hoje colocada em outros patamares de enfrentamento", assinala José Roberto. Ele ainda aponta outra discussão que foi interrompida em seu nascedouro com o golpe, que é a questão da reforma tributária. "O imposto no Brasil é regressivo, quem ganha menos paga mais proporcionalmente", critica. É o que mostra, por exemplo, o artigo ‘A distribuição da carga tributária: quem paga a conta', do professor da Universidade de Brasilia (UnB), Evilásio Salvador.

Nele, o autor afirma que o Estado brasileiro, "tira a maior parte de sua receita de tributos indiretos e cumulativos, que oneram mais o trabalhador e a classe média, pois tem uma alta carga tributária sobre o consumo - mais de metade da carga provém de tributos que incidem sobre bens e serviços - e uma baixa tributação sobre a renda - 25%. Situação inversa é a estrutura tributária dos países da OCDE: os impostos sobre o consumo representam 32,1%, em média; o imposto sobre a renda 35,4%". "Embora ainda tivessem um desenho indefinido, havia um direcionamento claro em fazer avançar a questão dos direitos da população e, nessa perspectiva, penso que todas as reformas de base fariam sentido hoje no Brasil, mesmo que compreendamos que o Brasil daquela época não é o Brasil de 2014", finaliza José Roberto.