"Há casos de pessoas que não aceitam a indenização, porque muitas vezes é muito abaixo do que deveria ser. Além disso, as pessoas não querem deixar o local onde construíram suas vidas e não acreditam que a desapropriação esteja próxima. Temos imagens disso: de um lado da casa, a retroescavadeira derrubando tudo, e do outro as pessoas tentando tirar os pertences, no meio daquela poeira". A cena é descrita por Sônia Maranho, da direção nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), e não aconteceu em apenas uma ou outra ocasião: um relatório divulgado nesta semana mostra que a violação dos direitos das pessoas atingidas por barragens é corriqueira e grave, como o MAB denuncia há 20 anos . O relatório aponta cem medidas para que os impactos de barragens na população sejam minimizados. Carlos Bernardo Vainer, membro da comissão especial que elaborou o relatório pelo Instituto de Pesquisa Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR) , alerta, sobre a conclusão a que o grupo chegou: "Se há uma decisão de construir estas usinas hidrelétricas e essas barragens, há que respeitar os direitos humanos. Se a única maneira de construí-las é desrespeitando os direitos humanos, a sociedade deve optar pelos direitos humanos e não pelas usinas. Porque o princípio do respeito, preservação e garantia dos direitos humanos é um princípio constitucional, societário e civilizatório, que se coloca acima de qualquer política setorial",
O relatório foi elaborado por uma comissão especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), da Secretaria Especial da Presidência da República. O grupo foi criado em 2006, diante de denúncias de violação dos direitos humanos apresentada pelo MAB. Além do CDDPH, que coordenou os trabalhados, também compuseram a comissão representantes da Câmara dos Deputados, do Instituto de Pesquisa Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR), do MAB, do Ministério Público Federal (MPF), do Ministério de Minas e Energia (MME), do Ministério de Meio Ambiente (MMA) e da Defensoria Pública da União.
Diante das denúncias do MAB, o grupo selecionou seis casos de usinas hidrelétricas e um caso de açude para abastecimento de água para serem analisados - nos estados da Paraíba, Minas Gerais, Espírito Santo, Goiás, Santa Catarina/Rio Grande do Sul e Pará. As visitas foram realizadas no ano de 2007. "A situação é grave, o relatório concluiu que os direitos dessas populações são violados de maneira reiterada e sistemática, não é um caso ou outro. Isso não quer dizer que em todas as barragens construídas haja problemas, mas que isso é bastante comum, regular e reiterado", sintetiza o pesquisador Carlos Vainer.
De acordo com o MAB, cerca de 70% dos atingidos por barragens não conseguem receber indenizações ou nenhum outro tipo de reparo à perda de direitos. Estima-se que no Brasil há mais de um milhão de desalojadas compulsoriamente por barragens. Mas como não há um cadastro que contabilize todos os atingidos, os dados são imprecisos e acredita-se que sejam muito mais expressivos, já que não há contabilidade de todos os atingidos, mas apenas os desalojados.
Direitos violados
O documento apresenta uma lista com 16 direitos que são violado, entre eles o direito à informação e à participação; à liberdade de reunião, associação e expressão; ao trabalho e a um padrão digno de vida; à moradia adequada; à educação; a um ambiente saudável e à saúde; à melhoria contínua das condições de vida; à justa negociação e tratamento isonômico. ;. O relatório propõe recomendações para cada uma das violações de direitos. No caso da violação ao trabalho e a um padrão digno de vida, por exemplo, a recomendação nº 40 diz: "que o Poder Concedente, as Agências Reguladoras, os órgãos de licenciamento ambiental e o empreendedor considerem que a plena reparação daqueles que exploram a terra em regime de economia familiar, como proprietário, meeiro, posseiro, etc, assim como daqueles que, não se enquadrando em uma dessas categorias, têm vínculo de dependência com a terra, dela dependendo para sua reprodução física e cultural, deve se dar em 3 níveis: a) indenização em dinheiro pelas perdas materiais, composta pelo valor da terra, benfeitorias, safra, prejuízos pela interrupção de contratos (meeiros, arrendatários, parceiros, empregados, etc); b) compensação pelo deslocamento compulsório, traduzida no direito ao reassentamento, individual ou coletivo; c) compensação pelas perdas imateriais, com o estabelecimento de programas de assistência nas diversas áreas técnicas necessárias à plena reconstituição dos modos de vida, redes sociais e econômicas, etc, como de natureza psicológica, assistencial, agronômica, etc".
Sônia Maranho descreve como tem sido o contato das empresas responsáveis pela construção das hidrelétricas com a população. "A empresa chega fazendo estudos, sem dar informação nenhuma às famílias e começa a fazer vistorias nas áreas. As famílias ficam assustadas, muitos deixam de viver os projetos que planejavam porque começam os boatos de que está chegando uma obra e essa obra precisará ter uma desapropriação por interesse público. E aí as famílias começam a viver a crise disso. Um tempo depois são feitas algumas audiências públicas, que na verdade são um teatro porque já está tudo planejado. Eles mostram o projeto e dizem que querem começar a negociar com as famílias'. E eles só razem essas audiências porque isso está previsto em lei. Prometem empregos e desenvolvimento para a região. Algumas empresas começam a investir em algumas coisas centrais no municípios: por exemplo, dão alguma grana para os hospitais para convencer os prefeitos e a população. Mas depois, com as doenças e os funcionários que chegam, os postos de saúde e os hospitais não conseguem atender tantos problemas sociais ", relata.
Pressão e garantia de direitos
O relatório deixa claro também que nos casos onde há uma situação melhor do ponto de vista da garantia de direitos, isso ocorre porque existe uma organização da população atingida. "O respeito aos direitos humanos está diretamente proporcional à capacidade da população atingida de se organizar e lutar para fazer valer os seus direitos. O estado tem se mostrado, em seus vários níveis, instâncias e esferas, incapaz de assegurar os direitos das populações atingidas, portanto, quanto mais luta menos direitos são violados", comenta Vainer. No que diz respeito à garantia do direito à organização e participação da população da região atingida, o relatório propõe, entre outras recomendações: "que os órgãos públicos sejam obrigados a promover processos participativos em todas as etapas relevantes à tomada de decisão relativa a uma barragem, contemplando, necessariamente, os planos nacionais e por bacia, assim como as concessões pela ANA [Agência Nacional de Águas] e Aneel [Agência Nacional de Energia Elétrica]".
No final de 2010, o então presidente Lula editou um decreto estabelecendo a obrigatoriedade da existência de um cadastro socioeconômico das populações afetadas. O cadastro é, inclusive, uma das recomendações elencadas pela comissão especial. "O cadastro registra quem tem direito de ser reconhecido como atingido. E isso tem que ter o caráter público, não pode ser uma operação privada de uma empresa privada. Então, o fato de ser público é importante. E o fato de ele valer apenas por dois anos e depois disso precisar ser atualizado também é outra conquista importante. Porque muitas vezes as usinas demoram anos e anos e as pessoas se mudam, surgem novas famílias na região e elas não estão cadastradas", detalha Vainer. Para o professor, esse é um avanço relevante, mas qainda há questões que não podem ser desconsideradas. "É necessário que os critérios para elaboração desse cadastro sejam publicamente discutidos com a participação da população. Que os levantamentos sejam de natureza pública. Eu tenho defendido que seja feito pelo IBGE, um órgão público. Não pode ser por empresa porque ela é parte interessada, então, deve ser por um órgão teoricamente neutro, que irá registrar quem são as pessoas afetadas e quais são os seus bens afetados", observa.
Energia limpa
A maioria das barragens feitas no país é para a construção de usinas hidrelétricas, para geração de energia elétrica. De acordo com a Agência Nacional de Energia Elétrica existem hoje em funcionamento no país 890 empreendimentos de geração de energia hidroelétrica contabilizando-se usinas de grande e pequeno porte. O MAB denuncia que ao contrário do que se tenta mostrar, a energia hidrelétrica não é limpa do ponto de vista da destruição ambiental para a construção das obras e das populações atingidas. "Para nós, existe um grande crime ambiental na construção da hídrica. Por exemplo, no sul foram milhares de hectares de Araucária inundados. As hidrelétricas causam hoje muita destruição para o povo brasileiro. E além disso, como a hidrelétrica não respeita o direito dos trabalhadores, ela não pode ser limpa", ressalta Sônia.
O movimento considera ainda que é preciso refletir sobre a quem serve a energia produzida no Brasil. "Podem até existir as obras, mas que sejam feitas de uma forma popular. Hoje temos energia sobrando, todas as obras construídas são para produzir energia para exportação. Então, não teríamos mais necessidade de construir obras. Ficam iludindo o povo dizendo que haverá apagão, mas isso é uma luta ideológica para construir mais. O que teríamos que fazer era repontencializar as energias que já existem e que estão sendo abandonadas e cuidar da energia que se perde, porque hoje se perde muita energia.
O professor Vainer comenta que o custo alto da energia das hidrelétricas é sempre para a população atingida. "Quem arca com o custo da redução à miséria de uma população de pequenos camponeses que vivia de uma forma razoável, ou de uma série de comunidades ribeirinhas que viviam da pesca e agora o peixe acabou? Quem paga são essas populações, não é o consumidor de energia elétrica, não é a fábrica de alumínio que paga barato pela energia porque todos esses custos sociais e ambientais são arcados pela população", denuncia. Ele ressalta que a comissão não tinha como objeto discutir o modelo energético brasileiro, mas sim as violações dos direitos às populações. Mas, acredita que esse é um debate que precisa ser feito: "Essa é uma discussão que a sociedade deve travar, e de repente isso pode trazer novas opções de modelo energético e de modelo industrial. Podemos descobrir que custa muito menos economizar energia do que produzir novas usinas. Mas a economia de energia não alimenta a indústria de barragens, nem as grandes empreiteiras, que vivem da construção dessas grandes obras. Vamos gastar R$ 30 bilhões para construir Belo Monte. Vamos destruir o Rio Xingu. Mas quanto vale o Rio Xingu? Vale a pena destruir um rio?", alerta.
Recomendações para todos
O documento chama vários setores da sociedade à participação para que os direitos das populações atingidas sejam garantidos, além dos órgãos ligados ao governo federal, dos governos estadual e municipal, também o Ministério Público, as instituições de pesquisa e a sociedade civil. "Eu espero que o conselho e o governo comecem a tomar as medidas para que as recomendações sejam implementadas", afirma Vainer.
Para o MAB, também é preciso continuar vigilante "O documento é um reconhecimento daquilo que nós viemos buscando e denunciando há 20 anos. Vamos continuar organizando as famílias, denunciando, fazendo negociação com o governo, com as empresas e a sociedade. Nossa luta não acaba aqui, temos que organizar os atingidos e ter uma articulação internacional também, porque as mesmas empresas que constroem Aquino Brasil, constroem em outros países da América Latina, com os mesmos métodos e as mesmas violações. Este relatório deve servir de acúmulo de luta também para outros países",diz Sônia.
O Ministério de Minas e Energia e o Ministério do Meio Ambiente, que também participaram da comissão especial que elaborou o relatório, foram procurados pela reportagem para falarem sobre o documento. Entretanto, as assessorias de imprensa dos dois órgãos responderam que não seria possível atender a solicitação.
Consulte o relatório sobre os "atingidos por barragens"