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Resistência aos antibióticos, um problema que se agrava

A OMS acaba de atualizar a lista das 15 bactérias que mais ameaçam a saúde humana por terem se tornado resistentes a antibióticos. Reportagem da edição atual da Revista Poli explica os riscos do uso desenfreado desses medicamentos, que se agravou na pandemia de Covid-19
Paulo Schueler - EPSJV/Fiocruz | 21/05/2024 09h59 - Atualizado em 21/05/2024 10h40
Estudos laboratoriais identificam superbactérias Foto: James Gathany/CDC

Em 1985, a Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu o uso racional de medicamentos como a situação na qual “os pacientes recebem medicamentos adequados às suas necessidades clínicas, em doses que atendam às suas necessidades individuais, por um período de tempo adequado e ao menor custo para eles e sua comunidade”.

Na rotina do cidadão que precisa fazer uso de algum remédio, esse conceito se materializa em um conjunto de práticas simples, embora nem sempre seguidas: consumir o produto nas doses, horários e pelo tempo recomendados, não utilizar medicamento que não tenha sido receitado por médico, armazenar a droga de forma adequada e descartá-lo corretamente. Tais medidas impedem, por exemplo, a intoxicação do indivíduo e a contaminação do ambiente.

No Brasil, o 5 de maio foi instituído como Dia Nacional do Uso Racional de Medicamentos. A data foi criação do movimento estudantil de Farmácia, que idealizou e estruturou uma campanha nacional de esclarecimento da população sobre o uso de remédios nessa data, no ano de 1999. A efeméride foi incorporada pelos conselhos Federal e regionais de Farmácia, pelo Ministério da Saúde e a Agência nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Em relato ao Conselho Regional de Farmácia da Bahia, publicado no site do CRF-BA, o ex-coordenador da Executiva Nacional de Estudantes de Farmácia (Enefar) Antônio Bonfim relembra que “naquela época, estava se discutindo muito as políticas que hoje norteiam a prática farmacêutica, tanto que em 1998 foi quando se publicou a Política Nacional de Medicamentos. Em 1999, foi o ano da criação da Anvisa. Foi nessa época, também, que estourou o escândalo da pílula de farinha , então os estudantes de Farmácia estavam preocupados e muito envolvidos nessas discussões. Foi este o contexto que gerou a campanha do URM (uso racional de medicamentos)”.

Para organizar as ações referentes ao tema no Brasil, o Ministério da Saúde instituiu o Comitê Nacional para a Promoção do Uso Racional de Medicamentos (CNPURM) em 2007, por meio da Portaria 1.555. Em seu planejamento de ‘Ações desenvolvidas em 2023-2025’, o CNPURM decidiu trabalhar os eixos Educação, Informação, Regulação, Pesquisa, Uso de Antimicrobianos e Resistência Antimicrobiana – com o objetivo de “contribuir com o Plano de Ação Nacional de Prevenção e Controle da Resistência aos Antimicrobianos no Âmbito da Saúde Única”.

Um olhar específico para os antibióticos

Dentre as diferentes classes de medicamentos, como analgésicos, antiácidos, anti-inflamatórios, entre outros, à primeira vista talvez não faça sentido constar deste plano de trabalho referência a apenas uma, mas o uso “não racional” de um tipo específico de medicamento – que engloba antibióticos, antifúngicos, antivirais, antimaláricos ou anti-helmínticos – acaba por facilitar um problema de Saúde Pública conhecido como “resistência antimicrobiana”, pelo qual as bactérias, fungos e parasitos vão se adaptando ao ambiente, em seu processo evolutivo, e acabam não sendo mais combatidos pelos remédios existentes.

Chefe do Laboratório de Bacteriologia Aplicada à Saúde Única e Resistência Antimicrobiana do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), Ana Paula Assef explica que o estabelecimento de resistência pelas bactérias ocorre de forma “muito rápida”. “Desde a penicilina, que foi o primeiro antibiótico usado na prática clínica, pouco tempo após o seu uso já eram registradas várias bactérias resistentes. Isso foi verificado em todos os antibióticos”, revela. E isso, segundo a pesquisadora, teria levado a indústria farmacêutica a reduzir o desenvolvimento dessa classe de medicamentos. “O custo para você desenvolver um medicamento é muito alto. Leva anos para ter retorno financeiro”, comenta. Ilana Camargo, do Laboratório de Epidemiologia e Microbiologia Moleculares (LEMiMo) da Universidade de São Paulo (USP) e integrante do centro de Pesquisa e Inovação em Biodiversidade e Fármacos, completa: “O antibiótico é administrado em um paciente durante sete, dez dias. É um período de tratamento curto. Um fármaco para reduzir o colesterol é usado pela pessoa a vida inteira, bem como para pressão alta. Então, a venda destes tipos de medicamento ao longo do tempo cobre os custos de desenvolvimento, o que não acontece, certamente, para os antibióticos”.

A referência específica aos antibióticos entre todos os tipos de antimicrobianos tem a ver diretamente com a maior letalidade das doenças causadas por bactérias, que são o alvo desse tipo de medicamento. Segundo o estudo ‘Mortalidade global associada a 33 patógenos bacterianos em 2019: uma análise sistemática para o Global Burden of Disease Study 2019’, publicado em 2022 pela revista científica The Lancet, as infecções bacterianas são a segunda principal causa de morte no mundo, atrás apenas da doença cardíaca coronariana. De acordo com o trabalho, que chegou ao número unificando dados de várias fontes oficiais, apenas em 2019 ocorreram 7,7 milhões de mortes provocadas por bactérias.

Em 2019, portanto antes da pandemia, a resistência antimicrobiana foi a responsável direta por 1,2 milhão de mortes em 204 países e territórios, e 'desempenhou um papel' em pelo menos 4,95 milhões de óbitos

Em seu relatório ‘Preparando-se para os supermicróbios: fortalecendo a ação ambiental na resposta à resistência antimicrobiana pela abordagem de Saúde Única’, divulgado em fevereiro de 2023, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) afirmou que “o custo econômico da resistência antimicrobiana poderia resultar em uma queda do PIB de pelo menos US$ 3,4 trilhões anuais até 2030, empurrando mais 24 milhões de pessoas para a pobreza extrema”. Pior do que o impacto econômico, entretanto, é aquele já contabilizado em vidas perdidas. O estudo ‘Carga global da resistência bacteriana aos antimicrobianos em 2019: uma análise sistemática’, feito pelo Global Research on Antimicrobial Resistance e publicado em janeiro de 2022 na revista Lancet, estimou que em 2019, portanto antes da pandemia, a resistência antimicrobiana foi a responsável direta por 1,2 milhão de mortes em 204 países e territórios, e que “desempenhou um papel” em pelo menos 4,95 milhões de óbitos.

Em nota enviada à Poli, a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) afirma que “a resistência aos antimicrobianos representa uma grande ameaça global para pessoas, animais, plantas, alimentos e meio ambiente” e defende que “a resposta às tendências de resistência antimicrobiana requer um compromisso de alto nível dos países para aumentar a capacidade de vigilância e fornecer dados com qualidade assegurada, bem como a ação de todas as pessoas e comunidades”.

Não há solução fácil para esse problema. Ela precisa envolver estratégias de educação para o uso dos fármacos, o armazenamento e o descarte correto dos medicamentos, o regramento de seu uso em animais – sejam os de estimação ou destinados à produção de alimentos –, a conscientização dos prescritores e distribuidores do produto – dentre eles médicos e farmacêuticos – e a busca por soluções farmacológicas que vão do desenvolvimento de novos antimicrobianos ao uso de outras classes de medicamentos.

À frente do laboratório de referência para a resistência antimicrobiana no Brasil, Ana Paula Assef trabalha pelo fortalecendo da cadeia de vigilância no país. “Trabalhamos com os Lacens [laboratórios centrais de saúde pública] para identificar e diagnosticar não só essas bactérias [resistentes] como também fungos e leveduras. Após a pandemia, vimos um grande problema relacionado a fungos, como surtos no mundo inteiro por algumas cândidas, principalmente a Candida auris, que é multirresistente”, afirma. Além dos Lacens, 25 hospitais distribuídos pelo Brasil fazem parte de um projeto da Fiocruz financiado pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês) dos EUA para o fortalecimento da vigilância no país.

A pesquisadora defende a criação de um programa nacional para tratar do tema, no âmbito do Ministério da Saúde. “Precisamos que isso vire um programa nacional, temos cada vez mais batido nessa tecla, tanto no Ministério da Saúde quanto com quem trabalha com isso. Como temos um Programa Nacional de Tuberculose e um Programa de IST [Infecções Sexualmente Transmissíveis] e AIDS, precisamos ter um relacionado à resistência antimicrobiana”, argumenta.

Responsável pelo Plano de Ação Nacional de Prevenção e Controle da Resistência aos Antimicrobianos no Âmbito da Saúde Única 2018-2022, o Ministério da Saúde não retornou os pedidos de entrevista da Poli sobre a possível atualização do documento, o eventual financiamento dos laboratórios públicos para o desenvolvimento e a produção de novos antibióticos, bem como sobre outras questões referentes ao papel da Pasta em relação ao tema.

Vacinação e Educação em Saúde

Samsad Khan/CDCEnquanto novos antibióticos não surgem, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou em agosto de 2022, através do documento ‘Uma análise de vacinas bacterianas em desenvolvimento pré-clínico e clínico: 2021’, o “melhor uso das vacinas existentes e em desenvolvimento” para combater a resistência antimicrobiana. “As vacinas são ferramentas poderosas para, em primeiro lugar, prevenir infecções. Portanto, têm o potencial de conter a propagação de infecções por AMR [a sigla em inglês para resistência antimicrobiana]. O relatório do pipeline de vacinas [vacinas em desenvolvimento em todo o planeta] visa orientar os investimentos e pesquisas em vacinas viáveis para mitigar esta resistência”, afirma a OMS.

Segundo a pesquisadora do IOC/Fiocruz, até a vacinação com os imunizantes já existentes, mesmo que virais, colabora para enfrentar o problema. “Se uma pessoa se previne contra sarampo, Covid-19, gripe, ela reduz a possibilidade de internação hospitalar, de ser obrigada a permanecer no ambiente hospitalar e acabar sendo infectada por uma bactéria muito resistente”, atesta Assef. De fato, os hospitais são espaços propícios a infecções causadas por bactérias que se tornaram resistentes, como a Staphylococcus aureus – causadora da sepse, a infecção generalizada. “O Staphylococcus aureus causa uma gama de infecções e é um dos microrganismos mais comumente isolados em infecções associadas aos cuidados de saúde. Na América Latina, mais de 25% dos isolados desta bactéria são resistentes à meticilina. O resultado é uma mortalidade de 45,2% atribuível à resistência à meticilina, em comparação com cepas suscetíveis, e aumento dos custos de tratamento com antibióticos (6,7 vezes maiores) e de hospitalização (quase 3 vezes maiores)”, informa a Opas.

Para Camargo, a educação também tem papel fundamental diante desse desafio. Autora dos livros ‘Clô, a bactéria’ – sobre a Clostridium tetani – e ‘BioFilmes e a aventura de uma bactéria’, a pesquisadora acredita no poder do diálogo com as crianças. “Aos 15 anos, a criança já é capaz de saber que não pode jogar o resto de um medicamento fora, no lixo comum”, aposta.

A necessidade de educação sobre o tema não se restringe à primeira infância. A pesquisadora do IOC/Fiocruz vê necessidade de orientação também aos médicos. “As pessoas acham que o antibiótico vai resolver qualquer problema, qualquer virose, qualquer infecção de garganta, qualquer gripe. Só que isso são infecções virais. O antibiótico só funciona para infeções por bactérias. E a formação médica ainda possui falhas nessa área, a gente ainda vê [esses profissionais] prescrevendo antibióticos em situações que não seria preciso”.

Aliado a isso, existe ainda o problema da automedicação – que é menos comum em relação ao uso de antibióticos, mas vem crescendo no Brasil. Em sua Pesquisa de Automedicação de 2022, o Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico (ICTQ) verificou que 89% das pessoas se automedicam no Brasil, 13 pontos percentuais acima dos 76% de brasileiros que adotavam essa prática no ano inicial da coleta de dados, 2014. Embora analgésicos (64%); antigripais (47%) e relaxantes musculares (35%) compusessem o pódio da automedicação no país há dois anos, 10% dos cerca de 2 mil entrevistados em 151 municípios afirmaram usar antibióticos por conta própria, apesar de a regulamentação da Anvisa (RDC 44/2010) estabelecer que “os antibióticos só poderão ser vendidos em farmácias e drogarias do país mediante apresentação da receita de controle especial em duas vias pelo consumidor”.

O impacto da pandemia

Entre março e dezembro de 2019, foram comercializadas 171,1 milhões de unidades dessa classe de medicamentos, número que subiu para 180,7 milhões de unidades em 2020, 187,3 milhões em 2021, atingiu o ápice de 228,3 milhões de unidades em 2022

Levantamento feito pelo CFF em parceria com a empresa de pesquisas IQVIA apontou que houve aumento nas vendas de antimicrobianos durante a pandemia da Covid-19. Entre março e dezembro de 2019, foram comercializadas 171,1 milhões de unidades dessa classe de medicamentos, número que subiu para 180,7 milhões de unidades em 2020, 187,3 milhões em 2021, atingiu o ápice de 228,3 milhões de unidades em 2022 e desceu para 219 milhões em 2023. Em 2024, apenas nos meses de janeiro e fevereiro, foram comercializadas 30,95 milhões de unidades desse tipo de medicamento.

Em nota divulgada à imprensa, o Conselho Federal de Farmácia afirma que “essa influência fica ainda mais clara quando é analisado o crescimento nas vendas da azitromicina, antibiótico que integrou o chamado ‘kit covid’, junto com a hidroxicloroquina, a ivermectina, dexametasona e vitaminas C e D. De 2019 a 2020, de acordo com o levantamento, observou-se o crescimento no consumo desses medicamentos pelo Brasil. Nas regiões Sudeste, Nordeste, e Centro-Oeste foram registrados aumentos superiores a 60% no consumo de unidades ou comprimidos ao longo de 2020. Já a região Norte apresentou um incremento de cerca de 123%, com ênfase para os estados de Roraima (183%), Amazonas (166%) Acre (138%)”.

O problema não se restringiu ao Brasil. Em 26 de abril deste ano, a OMS divulgou o ‘Informe sobre o uso excessivo e generalizado de antibióticos em pacientes hospitalizados por Covid-19’, no qual afirma que “novas evidências mostram o uso excessivo de antibióticos durante a pandemia de Covid-19 em todo o mundo, o que pode ter exacerbado a propagação ‘silenciosa’ da resistência antimicrobiana”. As conclusões foram apresentadas num poster científico da OMS partilhado no Congresso Internacional da Sociedade Europeia de Microbiologia Clínica e Doenças Infecciosas (ESCMID, na sigla em inglês) que ocorreu em Barcelona, Espanha, de 27 a 30 de abril.

Baseado na Plataforma Clínica Global da OMS para a Covid-19, um repositório de dados clínicos anonimizados e padronizados em nível individual de pacientes hospitalizados com a doença, o pôster utilizou dados recolhidos de cerca de 450 mil pacientes internados em 65 países durante um período de três anos – janeiro de 2020 a março de 2023. Os resultados são preocupantes: embora apenas 8% dos pacientes hospitalizados com Covid-19 tivessem coinfecções bacterianas que necessitassem de antibióticos, para cerca de 75% deles foram receitados – e usados – esses medicamentos, com o argumento de que poderiam “ajudar” na melhora clínica. O uso de antibióticos variou entre 33% para pacientes na região do Pacífico Ocidental, que envolve países como Austrália, China, Filipinas, Japão, Malásia e Vietnã, e 83% no Mediterrâneo Oriental, composto dentre outros países por Albânia, Grécia, Israel e Turquia, e regiões africanas. “No geral, o uso de antibióticos não melhorou os resultados clínicos dos pacientes com Covid-19. Em vez disso, pode causar danos às pessoas sem infecção bacteriana, em comparação com aquelas que não recebem antibióticos. Isto sublinha a necessidade urgente de melhorar o uso racional de antibióticos para minimizar consequências negativas desnecessárias para os pacientes e para as populações”, atesta o pôster da OMS.

Dentro da classificação que a OMS faz do risco de uso de antibióticos para a promoção da resistência antimicrobiana, chamado de AWaRe, do inglês Access, Watch, Reserve (Acesso, Alerta e Restrição), o estudo concluiu que os antibióticos Watch, com maior potencial de gerar resistência, foram aqueles prescritos com mais frequência em nível global. Pertencem ao “Alerta” as cefalosporinas de terceira geração, as quinolonas e os carbapenêmicos, que devem ser utilizados com cautela devido ao seu alto potencial de causar resistência antimicrobiana ou seus efeitos colaterais. Do “Acesso” fazem parte a amoxicilina e ácido clavulânico, antibióticos mais usados no mundo e recomendados pela OMS como tratamento de primeira ou segunda linha para infecções comuns. Por fim, os antibióticos de “Restrição” devem ser usados no tratamento de infecções causadas por bactérias já multirresistentes.

De acordo com o Relatório GLASS (sigla em inglês para Sistema global de vigilância de uso e resistência antimicrobiana) divulgado pela OMS em 2022, com dados referentes a 2020, foram detectados altos níveis de resistência a tratamento em bactérias que causam infecções na corrente sanguínea em pacientes internados de 87 países. Em mais de 60% dos casos de gonorreia, o agente causador mostrou resistência ao antibacteriano oral mais usado. Mais de 20% das infecções do trato urinário eram resistentes aos medicamentos de primeira e segunda linhas.

O uso em animais

Rovena Rosa/ABrUma das recomendações do estudo ‘Revisão em Resistência Antimicrobiana’, organizado em 2014 pelo economista Jim O’Neill a pedido do então primeiro-ministro do Reino Unido, David Cameron, foi a de que criadores de animais precisavam cortar drasticamente o uso de antibióticos, pela ameaça trazida à saúde humana. Sua divulgação foi catapultada em novembro de 2015, quando pesquisadores na China descobriram que uma bactéria resistente à colistina surgiu em animais criados por agricultores e posteriormente foi detectada em pacientes em hospitais. Essa ocorrência colaborou para que, no Brasil, o uso da colistina passasse a ser proibido como melhorador de desempenho em rações animais.

O caso chinês serviu para exemplificar que a aplicação de antibióticos para uso veterinário, seja em animais domésticos como cães e gatos, seja na atividade pecuária como boi, frango e suínos, colabora para agravar o problema na saúde humana pois, ao entrar nos organismos dos animais, esses antimicrobianos atuam sobre algumas espécies de bactérias e permitem que aquelas resistentes à medicação se multipliquem. Por meio de fezes e urina, essas bactérias se espalham pelo solo, a água e as plantas e, dessa forma, chegam às pessoas através do consumo de carne, de água ou de vegetais. Por fim, o esterco usado como fertilizante na agricultura também pode propagar as superbactérias. “É preciso elevar o controle sobre o uso de antibióticos nos animais. Na atividade pecuária já ocorre proibição de antibióticos que passaram a ser usados apenas na clínica humana, mas não há regulamentação para os pets, que cada vez mais assumem um lugar de destaque em nossa vida cotidiana. O surgimento de bactérias resistentes em pets pode vir a causar infecções em humanos”, exemplifica Ana Paula Assef.

Para se ter uma ideia, o estudo de O’Neill indicou como meta para a Agropecuária o uso de 50 mg de antibióticos para cada 1 kg de animais. Quando de sua divulgação, usando dados referentes a 2010, os Estados Unidos usavam cerca de 200 mg/kg e o Chipre mais de 400 mg/kg. Além disso, mais da metade dos antibióticos existentes eram usados em animais, com o interesse comercial de fazê-los crescer mais rápido. Globalmente, eram 63.151 toneladas de antibióticos usados em atividades pecuárias.

A Opas alerta ainda que os antimicrobianos administrados em seres humanos, animais e plantas “entram no meio ambiente e nas fontes de água, incluindo água potável, através de esgotos, resíduos, escoamento e águas residuais, propagando assim organismos farmacorresistentes e, consequentemente, a própria resistência aos antimicrobianos”. “O uso inadequado de antimicrobianos na saúde humana, animal e sistemas de produção é agravado por condições socioeconômicas e pela deficiência de meios eficientes para o tratamento de efluentes, saneamento e de mecanismos de logística reversa de medicamentos vencidos, evitando que sejam descartados inadequadamente no ambiente”, explica, em nota.

Descarte correto

Assim como no caso dos dejetos animais, o descarte inadequado de antibióticos pode favorecer o surgimento de bactérias resistentes no ambiente. Isso vale, por exemplo, para um comprimido que sobre na cartela, caso a caixa do remédio contenha pílulas para sete dias, mas ao paciente só tenham sido receitados cinco dias de uso.

O decreto presidencial nº 10.388, de 5 de junho de 2020, instituiu o sistema de logística reversa de medicamentos domiciliares vencidos ou em desuso, de uso humano, industrializados e manipulados, e de suas embalagens após o descarte pelos consumidores. Em nota enviada à revista Poli, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) lembra que suas diretrizes “determinam que fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes têm responsabilidade pela coleta e tratamento dos resíduos, além de promover campanhas de conscientização dos consumidores”.

Segundo o MMA, “farmácias devem estabelecer pontos fixos de recebimento, com instalação de dispensadores contentores para o descarte de tais medicamentos. O descarte deve ser realizado de acordo com as instruções descritas no material de divulgação disponível nos pontos fixos de recebimento ou, no caso de realização de campanhas de coleta, em pontos definidos para tal fim. Drogarias e farmácias estabelecidas como pontos fixos de recebimento devem adquirir, disponibilizar e manter dispensadores contentores. Deve haver no mínimo um ponto fixo de recebimento para cada dez mil habitantes em municípios com população superior a cem mil habitantes”.

A Anvisa, por sua vez, respondeu à reportagem que “o tema do descarte de medicamentos é tratado no âmbito do meio ambiente e previsto na Política Nacional de Resíduos Sólidos – Lei 12.305/2010”.