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Saúde digital: o que isso pode significar para o SUS?

Secretaria-Executiva do Ministério da Saúde terá a partir de agora um departamento voltado para a saúde digital, que pretende dinamizar o processo de informatização do SUS. Para analistas, novas tecnologias podem solucionar problemas da gestão do sistema, mas também podem criar outros
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 31/05/2019 15h19 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

Entre as várias mudanças na estrutura do Ministério da Saúde que entram em vigor a partir desta semana está a criação de um Departamento de Saúde Digital. Criado no âmbito da Secretaria-Executiva do Ministério, o novo departamento terá, entre várias outras atribuições, a tarefa de formular e coordenar a implementação de uma Política Nacional de Saúde Digital e Telessaúde no SUS.

A criação do departamento sinaliza uma aposta do Ministério nas tecnologias de informação e comunicação no SUS. A expectativa é que ele coordene a implantação e a expansão de iniciativas nessa área que já existem dentro do sistema de saúde, principalmente os prontuários eletrônicos. Mas devem entrar no escopo de atuação do novo departamento também iniciativas relativas à telessaúde, que pelo menos desde 2007 vêm sendo realizadas no âmbito do SUS por meio do Programa Nacional Telessaúde Brasil Redes. Essas incluem o uso das tecnologias de informação e comunicação para oferecer aos profissionais da atenção básica serviços como a realização de exames com emissão de laudos à distância (o chamado telediagnóstico), o esclarecimento, pela internet ou telefone, de dúvidas sobre procedimentos clínicos e questões relativas a processo de trabalho (a teleconsultoria), e ainda ações de formação à distância (tele-educação).

“Essa discussão está se desenvolvendo em função das novas tecnologias que estão disponíveis para a saúde, tecnologias digitais que permitem conectividade, a utilização de aplicativos. A telessaúde tem avançado muito. O Ministério tem essa perspectiva de informatização do SUS como elemento central nessa estratégia de saúde digital. A criação deste departamento mostra isso”, diz Wagner Martins, coordenador de integração estratégica da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Brasília.

Mas ainda há muita incerteza sobre o que isso pode significar para o SUS, especialmente em um cenário de redução dos investimentos públicos no sistema de saúde brasileiro. Há, por exemplo, um temor de que isso signifique uma ampliação do uso das tecnologias como forma de reduzir custos com o sistema público, a partir de ações à distância, desde a atenção até a formação de profissionais. Além disso, existe o risco de uso indevido de informações de saúde de milhões de pessoas, uma vez que grande parte das tecnologias que vêm sendo implementadas no processo de informatização do SUS são desenvolvidas por empresas privadas.


“Dimensão fundamental” do SUS em 2020

Também conhecida como e-Saúde ou Saúde 4.0, saúde digital é uma área que vem ganhando espaço nos debates sobre o futuro dos sistemas de saúde nos últimos anos, principalmente a partir da Organização Mundial da Saúde (OMS), que encerrou na terça-feira sua 72ª Assembleia Mundial da Saúde. A entidade vem discutindo o tema e publicando resoluções no sentido de orientar os países a adotar estratégias de saúde digital pelo menos desde 2005. No ano passado, a Assembleia aprovou por unanimidade uma resolução instando os países-membro a priorizarem o desenvolvimento, a avaliação, implementação e expansão da utilização das tecnologias digitais como uma forma de promover acesso universal, equitativo e acessível à saúde. Segundo a OMS, prontuários eletrônicos, bases de dados clínicos e plataformas para publicação e divulgação de informações de saúde ao público em geral, de informações científicas a profissionais e também de apoio a funções administrativas estão entre os principais exemplos de iniciativas na área de saúde digital que já vêm sendo implantadas em vários países do mundo. O texto aprovado no ano passado também solicitou ao diretor-geral da OMS que apresentasse, na 73ª Assembleia Mundial da Saúde, que acontecerá em 2020, um relatório a respeito do progresso na implementação da resolução.

No Brasil, a saúde digital também é objeto de uma resolução, aprovada em 22 de junho de 2017 pela Comissão Intergestores Tripartite (CIT). O documento instituiu no âmbito do Ministério da Saúde uma estratégia para a incorporação da saúde digital no SUS, que ganhou o nome de digi-SUS. Com ele, o Ministério pretende nortear, em âmbito nacional, as várias iniciativas nessa área que hoje ocorrem “de forma descoordenada, fragmentada e não integrada”, como afirma o documento da estratégia. E 2020 também é o prazo estabelecido para a incorporação da saúde digital como “dimensão fundamental” do SUS. “A saúde digital tem como objetivo aumentar a qualidade e ampliar o acesso à atenção à saúde, de forma a qualificar as equipes de saúde, agilizar o atendimento e melhorar o fluxo de informações para apoio à decisão em Saúde, incluindo tanto a decisão clínica, de vigilância em saúde, de regulação e promoção da saúde quanto a decisão de gestão”, define o documento.

Atualmente o Ministério trabalha na construção de um plano de trabalho para implementação desta estratégia, que conta com a participação da Fiocruz. No dia 22 de março, houve a primeira reunião de grupo de trabalho criado com esse objetivo, reunindo representantes de várias unidades da Fiocruz (entre elas a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio) e do Departamento de Monitoramento e Avaliação do SUS do Ministério da Saúde (Demas/MS). “Estamos falando de uma estratégia que depende da adesão dos municípios e dos estados, que têm que estar muito envolvidos na implantação disso. Então, a primeira etapa diz respeito à estruturação do próprio departamento e a internalização da política, para que ela possa, realmente, avançar por todo o território nacional”, pontua Wagner Martins, da Fiocruz Brasília, que integra o grupo de trabalho. “É um trabalho bastante intenso de padronização, para que cada base de dados possa ser identificável e comparável. E tem um trabalho de governança disso que precisa ser desenvolvido nas regiões, de forma que haja uma interação um pouco maior entre as Unidades Básicas de Saúde”, afirma. Segundo ele, a ideia é firmar um Termo de Cooperação com o Ministério para que a Fiocruz possa contribuir com sua expertise na implementação desta estratégia e também absorver tecnologias nessa área. “Para nós é fundamental acompanhar de perto este processo, porque ele desenvolverá também capacidades para a Fiocruz atuar nesse âmbito. A digitalização vai fornecer, por exemplo, elementos que vão contribuir com a epidemiologia brasileira e para a construção de políticas nessa área”, pontua Wagner.


Preocupações

Mas se há otimismo, também há preocupação. Um elemento central para a estratégia de saúde digital do Ministério hoje é a implantação dos prontuários eletrônicos, que hoje tem como foco a Atenção Básica. Esse foi um processo que caminhou na gestão do ministro Ricardo Barros através do Programa de Informatização das Unidades Básicas de Saúde (PIUBS), do final de 2017. Através do programa, o Ministério realizou o credenciamento de empresas para desenvolver, disponibilizar, fazer a manutenção e treinar os profissionais de saúde no uso de hardwares e softwares para implementação dos prontuários eletrônicos. Segundo balanço sobre o digi-SUS divulgado pelo Departamento de Monitoramento e Avaliação do SUS em 2018, os prontuários eletrônicos são atualmente utilizados em 15,5 mil Unidades Básicas de Saúde do país. Segundo o Ministério, a grande maioria das unidades ainda não possui sistema de prontuário eletrônico: pouco mais de 27 mil UBS, segundo o Ministério, ou cerca de 64%. Também segundo o Ministério, os repasses para a implantação dos sistemas de prontuário eletrônico variam entre R$ 4 mil e R$ 7 mil mensais. Ou seja, serão necessários recursos para a ampliação do processo de informatização das UBS, sem os quais fica impossível avançar na implementação da estratégia de saúde digital. Em um cenário de retração do investimento estatal no SUS, isso levanta algumas questões. “Os primeiros movimentos indicam que recursos de outras secretarias vão ser canalizados para essa ação. Não vai faltar dinheiro nessa estratégia que o ministério chama de ‘transformação do SUS’”, afirma Wagner Martins, para quem a Fiocruz, e o movimento sanitário como um todo, precisa estar atento a esse processo. “Existe a possibilidade de se romperem parâmetros importantes para a integralidade da assistência e também da universalidade no SUS, no sentido de se tornar a Atenção Primária a principal estratégia do Ministério da Saúde, porém desconectada da Atenção Especializada, com um direcionamento para a Cobertura Universal de Saúde em substituição à universalidade do sistema”, alerta. 

José Mauro da Conceição Pinto, professor-pesquisador da EPSJV/Fiocruz, espera que a cooperação da Fiocruz junto ao Ministério na construção da estratégia seja uma oportunidade de levantar algumas questões que, segundo ele, precisam ser mais discutidas. “A gente não é contra a informatização, mas questionamos essa lógica que está colocada já há algum tempo na sua implementação. Um exemplo são os softwares que vêm sendo utilizados na atenção básica. Você economiza por um lado, mas joga milhões de reais na mão de uma empresa que está desenvolvendo esse software. Será que precisava? Nós temos técnicos, será que eles não são capazes de fazer isso? Claro que o Estado não tem que desenvolver tudo, mas quando entrega para o mercado, ele pode sair perdendo”, alerta. Ele dá o exemplo de um software utilizado por Agentes Comunitários de Saúde (ACS) para registrar dados de saúde durante as visitas domiciliares, chamado de ACS Lite. O software é interoperável – ou seja, é capaz de se comunicar – com o e-SUS AB, software público desenvolvido pelo Departamento de Informática (Datasus) do Ministério para auxiliar na gestão do processo de trabalho na atenção básica. O Ministério permite a integração de sistemas próprios com o eSUS, desde que sejam atendidos alguns requisitos técnicos.

Através do ACS Lite, os agentes preenchem e ‘sobem’ automaticamente para o sistema da secretaria municipal de saúde dados como a idade, ficha de vacinação de crianças, a prevalência de doenças como câncer e tuberculose, entre outros. “A grande sacada é que esses dados ficam em uma ‘nuvem’, e se o agente perder o celular ele só precisa fazer o download novamente das informações. Só que essa empresa é privada, e está com uma massa de informações públicas que deveriam estar guardadas pelo Ministério da Saúde. É um perfil epidemiológico que eu não sei se o Ministério tem, mas a empresa tem. Ela pode ter? Qual é o grau de proteção destas informações? Eu não sei, mas isso tem que ser discutido com o governo”, diz José Mauro, para quem a possibilidade de vazamento desses dados é preocupante. “São informações valiosas na mão de operadoras de planos de saúde, da indústria farmacêutica. E a gente sabe que vazamentos desse tipo não são raros”, pontua.

Para o professor-pesquisador da EPSJV/Fiocruz, que deve participar das próximas reuniões da Fiocruz com o Ministério para a construção do plano de trabalho da estratégia de saúde digital, nos últimos anos houve um processo de esvaziamento do Departamento de Informática do Ministério, o Datasus, e a criação do Departamento de Saúde Digital no novo organograma pode ser mais um passo nesse sentido. “Eu não tenho a compreensão hoje se o Datasus tem corpo técnico para isso, porque ele vem perdendo espaço dentro do Ministério, mas eu acho que com o peso que o Datasus tem, com a massa informacional que ele gerencia, ele poderia fazer o papel desse departamento da saúde digital. Por que não é ele a conduzir esse processo?”, questiona.


Atendimento à distância?

Outra preocupação é a de que a partir de agora haja uma indução pelo Ministério, no âmbito da estratégia e da política de saúde digital, de ações de telemedicina, como consultas à distância mediadas por tecnologias de informação e comunicação. Em fevereiro, o Conselho Federal de Medicina (CFM) aprovou uma resolução permitindo e regulamentando consultas, diagnósticos e até mesmo cirurgias online no SUS e no setor privado. Reportagem do jornal ‘O Estado de São Paulo’ à época vinculou a publicação da resolução à saída dos médicos cubanos do Programa Mais Médicos no início do ano, que deixou vazios assistenciais em regiões mais remotas do país. Na matéria, o relator da resolução no CFM, Aldemir Soares, defendeu que a publicação naquele momento fora uma coincidência, mas afirmou que as consultas à distância poderiam ser úteis nas cidades que não conseguem atrair profissionais. Diante da repercussão negativa da medida entre conselhos regionais de medicina, a resolução foi revogada pelo CFM no dia 26 de fevereiro.

Mas a questão voltou à baila em abril, quando durante uma coletiva de imprensa sobre a revisão do Código de Ética dos médicos, o CFM informou que retiraria do texto o artigo que vetava os médicos de “consultar, diagnosticar e prescrever por qualquer meio de comunicação de massa”, que era visto como um impedimento à prática da telemedicina prevista pela resolução revogada em fevereiro. O trecho permaneceu, mas com alterações importantes: o novo Código de Ética agora diz que é vetado ao médico prescrever tratamentos e outros procedimentos sem exame direto do paciente, “salvo em casos de urgência ou emergência e impossibilidade comprovada de realizá-lo, devendo, nesse caso, fazê-lo imediatamente depois de cessado o impedimento”. Ainda não se sabe como a mudança impactará a elaboração de uma nova resolução sobre a telemedicina, que o CFM pretende apresentar até o ano que vem. O conselho atualmente recebe contribuições para a elaboração de uma nova versão. “A gente não sabe como isso vai ser feito, e se isso faz parte da estratégia do ministério para a saúde digital. Hoje não há médicos em algumas regiões, então você cria um pool de médicos, de enfermeiros, para fazer diagnósticos à distância. É uma possibilidade. Temos que acompanhar para ver como isso vai ser feito”, assinala José Mauro.