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Saúde, educação e trabalho em meio à distopia

Pesquisadores discutem a conjuntura e os desafios para o trabalho e a educação em saúde diante das tendências à precarização do trabalho e aumento da pobreza
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 29/03/2021 13h05 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

Pensar os cenários e as alternativas dos processos de trabalho e educação em saúde na atualidade foi o objetivo de uma mesa-redonda realizada na terça-feira (23) durante o 4º Congresso Brasileiro de Política Planejamento e Gestão da Saúde da Abrasco. Coordenada pela professora da Universidade de São Paulo (USP) Marina Peduzzi, a mesa reuniu os pesquisadores Naomar de Almeida Filho, vice-presidente da Abrasco, Pedro Brito, da Universidade Cayetano Heredia, em Lima, Peru, Mario Dal Poz, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Eduardo Fagnani, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Distopia

Naomar de Almeida Filho propôs o resgate dos conceitos de distopia e utopia como chaves de análise da conjuntura no país hoje. “Esse é um momento em que muitos vetores distópicos estão em curso: ambientes persecutórios, totalitários, perversão de valores e violência. Nosso pais pode ser pensado como um estado de mal estar social”, destacou Almeida Filho. Para ele, os campos da saúde e da educação reproduzem as desigualdades históricas da sociedade brasileira, construída sobre bases coloniais, escravocratas e patriarcais. “Há um claro descumprimento de responsabilidade do Estado no que chamamos de serviços públicos ou políticas públicas. Especificamente na saúde e na educação, há uma focalização e uma concentração de energia ativa do Estado no sentido de confirmar sua posição de promotor de desigualdades sociais, não somente por omissão, mas ativamente. Os campos de saúde e educação reproduzem essa transformação de desigualdades em iniquidades. As universidades públicas estão sob ataque, mas não há como não levantar a questão crítica de como a educação superior nessa sociedade com toda essa herança é um elemento de elitização”, apontou o pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP.  O momento é de confrontar a distopia com utopias, continuou Almeida Filho. “Precisamos recuperar a utopia como uma proposta provocadora, realista, viável, como movimento mobilizador, operado pela ação histórica. Proponho chamar de protopia, um neologismo na mesma lógica etimológica do termo utopia, mas não como não-lugar, mas sim com o prefixo ´pró’, no sentido propositivo, a favor de ir. Essa é minha provocação, da protopia como alternativa possível, como um esquema para começar a refletir sobre temas de tão grande complexidade como os que temos nesse momento tão crítico”, concluiu Almeida Filho.


América Latina: epicentro da crise social

O médico peruano Pedro Brito, professor da Universidade Cayetano Heredia, em Lima, destacou que a pandemia do novo coronavírus se abateu sobre o mundo em um momento de crise global no mercado de trabalho e de rápidas transformações no campo do trabalho que não favoreceram os trabalhadores. “A força de trabalho global em 2015 era de 3 bilhões de pessoas, sendo que a metade era composta por trabalhadores vulneráveis, informais, não assalariados. Desses, 1,3 bi ganha menos do que 5 dólares por dia”, disse Brito. E completou: “As economias pós-industriais da maioria dos países capitalistas, absorvidas pela possibilidade da aplicação de tecnologias baseadas na inteligência artificial, automação, não estão preocupadas com essa crise global do trabalho. O capitalismo global está falhando em prover empregos para a maioria das pessoas que necessitam”.

Em um processo que vem de muito antes da pandemia, destacou o pesquisador peruano, muitos dos países de renda média, como é o caso do Brasil, vêm substituindo o trabalho assalariado estável pelo trabalho autônomo, sem proteção, precário. “Essa tendencia não está somente no setor privado, mas também no Estado”.

A pandemia, argumentou Brito, tem significado histórico importante, pois se situa na confluência de duas dinâmicas globais, interligadas. “O neoliberalismo e a crise climática cujo caráter destrutivo nos obriga a repensar a organização das sociedades e nossa relação com o planeta. O não cumprimento dos compromissos assumidos e a guerra suja declarada por alguns governos contra a proteção do meio ambiente nos apresentam um futuro ameaçador para a humanidade a médio prazo”, alertou.

Segundo o pesquisador, a América Latina está entre as regiões com pior desempenho durante a pandemia. “Nossa região tem 8,4% da população mundial e 28% dos falecidos por covid-19. Em novembro de 2020, nove dos 20 países com maior mortalidade eram latino-americanos”, destacou Brito, complementando que a pandemia atingiu a região em um momento de fraqueza econômica. “A taxa de crescimento do PIB regional caiu de 6% para 0,2% na última década. De 2014 a 2019 tivemos o menor crescimento desde os anos 1950. Para conter a propagação do coronavírus, evitar o colapso do sistema de saúde e reduzir as perdas humanas, os governos adotaram medidas de quarentena, distanciamento físico. Setores inteiros da economia viram sua atividade muito diminuída. Com isso houve uma forte queda dos produtos de exportação da região”. Recessão econômica que significa agravamento das condições de vida, aumento do desemprego e da desigualdade. “Como resultado da grave recessão econômica na região estima-se que em 2020 a taxa de pobreza extrema foi 12,5%, e a taxa de pobreza atingiu 33,7% da população da América Latina. Além das crises sanitária e econômica, é importante considerar a crise da proteção social. Altos índices de informalidade, aumento do autoemprego, trabalho precário, baixo acesso à proteção social contributiva. Apenas 8 países tinham seguro desemprego para trabalhadores do setor formal”, apontou Brito. Para ele, a pandemia “demonstrou o fracasso das políticas sociais residuais com foco nos mais pobres”


Papel crescente do setor privado preocupa

Mario Dal Poz, do Instituto de Medicina Social da UERJ, tratou dos desafios trazidos pela ampliação da participação do setor privado na educação das profissões de saúde, que segundo ele é uma tendência global. “O quadro brasileiro é de tal modo acachapante que ousaria dizer que hoje o setor público na formação dos profissionais de saúde é marginal, é quase irrelevante”, destacou o pesquisador. Segundo ele, a medicina é a área com maior participação do setor público na educação superior na saúde hoje no país. No caso de algumas profissões, como enfermagem, o número de vagas ofertadas pelo setor público não passa de 5% do total, de acordo com Dal Poz. “A característica mais recente é a expansão das instituições privadas com fins lucrativos, com estratégia de mercado, profissionalização de gestão, abertura de capital”, afirmou o pesquisador da UERJ, complementando que houve vários mecanismos de incentivo a essa expansão nos últimos anos. “São mecanismos importantes para o setor educacional, como a própria Lei de Diretrizes e Bases, o Fies, o ProUni. Mas que permitiram que o setor privado tivesse recursos para se expandir”, disse Dal Poz. Uma tendência importante dos últimos anos tem sido a expansão das vagas em cursos de medicina em instituições privadas com fins lucrativos, segundo ele. “Antes de 2003, correspondia a 8% do total, mas a partir de 2003 esse número mais que dobra. 80% das novas escolas de medicina são privadas lucrativas, no Nordeste e no interior de São Paulo principalmente.

De acordo com Dal Poz, são transformações que trazem consequências para o sistema de saúde. “São cursos que têm um custo muito mais alto. Temos 40 cursos nos quais os alunos pagam mensalmente 10 mil reais. É inimaginável que uma família invista mais de meio milhão na formação de seu filho, e esse estudante vai optar por trabalhar numa região periférica. Esse é um primeiro impacto muito direto no mercado de trabalho”, disse Dal Poz, complementando: “Um segundo é a pressão por especialidades que tenham a tecnologia como meio entre o médico e o paciente. Quanto mais inovação tecnológica, quanto mais tecnologia tiver nessa relação os mecanismos de remuneração são mais elevados, mais lucrativos”.

O professor da UERJ também deu destaque para o movimento de compras, fusões e formação de conglomerados de ensino na área de medicina. “Ouso dizer que há uma tendência a uma oligopolização. E a concentração tende a aumentar. Em 2018 tínhamos 10 grupos responsáveis por mais de 30% da oferta de vagas na medicina. A participação do capital estrangeiro em alguns casos é evidente.  Isso leva a homogeneização do ensino, pressão sobre os professores, problemas no campo pedagógico. É um desafio sobre o qual precisamos nos debruçar”, afirmou Dal Poz, para quem é preciso montar mecanismos de monitoramento do setor privado de das consequências para o mercado de trabalho. “A permanecer essa tendência, será um controle absoluto e total do setor privado sobre os mercados”, concluiu.


Projeto de desconstrução antigo

Economista e professor da Unicamp, Eduardo Fagnani lembrou que o Estado de Bem Estar Social começou a ser construído na contramão dos paradigmas que então se tornavam hegemônicos no resto do mundo. “A nossa distopia está anunciada desde os anos 1980. A proteção social no Brasil começou a ser pensada na década de 1970, na luta contra a ditadura, com inspiração no Estado de Bem Estar Social do pós-guerra. Quando chegamos a 1988, o cenário tinha mudado radicalmente”, disse Fagnani, completando em seguida. “A proteção social foi um efeito colateral indesejado por essa elite atrasada, que não aceita sequer os valores mínimos da social democracia, que é uma forma de humanizar o capitalismo”.

Segundo ele, o quadro atual faz parte de um “projeto antigo” de desconstrução do Estado de bem-estar social que caminha de forma acelerada durante os anos 1990 e volta a ganhar força a partir de 2016. “O golpe parlamentar de 2016 foi uma nova oportunidade que as elites encontraram de implantar o seu projeto acalentado desde 1988. Tenho um profundo respeito pelo movimento sanitário, porque o SUS se construiu na contracorrente”, lembrou o economista, que enumerou alguns mecanismos de desconstrução do SUS ao longo das últimas três décadas. “A desorganização do mercado de trabalho na saúde vem de 1993, com as organizações sociais, com as quais você passa a terceirizar o trabalho médico. E depois vem a Lei de Responsabilidade Fiscal em 1997 que diz que só pode gastar 50% do seu orçamento com salários. Abriu brecha para a terceirização. Isso desorganiza completamente um sistema de saúde”, apontou.

Para Fagnani, o Brasil vive hoje o fim do pacto social de 1988.  “Se Keynes vivesse no Brasil hoje ele ia preso, porque todos os instrumentos keynesianos de aumentar a demanda efetiva, de aumentar o gasto fiscal, são criminalizados pela Lei de Responsabilidade Fiscal, pela regra de ouro, pela ideia de superavit primário, pelo teto dos gastos. Mas também pela reforma trabalhista, que repercute sobre a saúde. Emprego por hora virou emprego formal”, criticou, lembrando ainda da reforma da Previdência.  “O INSS beneficia mensalmente cerca de 35 milhões de pessoas. A média do benefício é de R$ 1,2 mil. Se cada pessoa tiver mais dois membros da família estamos falando de 100 milhões de pessoas que recebem pelo menos um salario mínimo. O que seria dessa pandemia se não fosse essa renda que vem da previdência social? Mas a reforma começada pelo Temer e concluída pelo Bolsonaro cria regras impossíveis de ser atingidas na realidade do mercado de trabalho brasileiro. No futuro vamos começar a ver velhos pedindo esmola na rua, porque ele não vai ter direito a proteção previdenciária”, alertou.

O pesquisador da Unicamp também alertou para o fato de que o debate econômico hoje no Brasil se encontra na contramão do mundo. “Os Estados Unidos estão gastando 2 trilhões de dólares só com o auxílio emergencial. No Brasil, como as ideias vem de teco- teco estamos discutindo teto de gastos, auxilio de R$ 130 reais para um número menor de pessoas. É essa a distopia que temos” disse Fagnani, destacando que, na Inglaterra, na década de 1940, a dívida pública chegou a 240% do PIB no esforço de construir o Estado de Bem Estar Social após a Segunda Guerra Mundial. “Mas na década de 1960 já era de 50%, porque esses incentivos fazem com que a economia cresça”, lembrou o pesquisador da Unicamp.

Fagnani concluiu falando dos limites do Estado de Bem Estar Social brasileiro, que segundo ele protege muito pouco o trabalhador informal. “Seguro-desemprego é para trabalhador formal, previdência é para quem tem acesso a mercado de trabalho. Isso tinha sentido na década de 1950, hoje não mais. Então uma questão que se coloca é aperfeiçoar nosso sistema de proteção social protegendo trabalhador do mercado informal. Além de fortalecer a proteção social como um todo”, defendeu Fagnani. O segundo limite, continuou o pesquisador da Unicamp, é a falta de tributação progressiva no país. “No Brasil não fizemos a reforma tributária progressiva.  Somos campeões mundiais na tributação sobre o consumo, que pesa mais na renda dos pobres. Temos que enfrentar a secular regressividade do nosso sistema tributário”, apontou, complementando: “Temos que pensar num novo projeto de transformação nacional”.