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Saúde tem seção específica na Constituição Cidadã

Construção do texto do SUS teve participação social e muitos embates
Juliana Chagas, Raquel Torres - EPSJV/Fiocruz | 01/09/2008 00h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h44
Deputados e senadores promulgam a Constituição Cidadã Foto: Câmara dos Deputados

A intenção do capítulo VII da Constituição Federal (CF) de 1988, ‘Da Seguridade Social’, era uma só: universalizar os direitos sociais. E, para que os objetivos do tripé Saúde, Assistência e Previdência ficassem claros, cada área ganhou uma seção específica no texto constitucional. O sanitarista Eleutério Rodriguez Neto, no livro ‘Saúde: promessas e limites da Constituição’, explica que, a rigor, uma constituição realmente democrática dispensaria uma parte especialmente dedicada à saúde: “Os seus objetivos, de natureza individual e coletiva, no contexto de uma organização social democrática, já seriam as condições necessárias e suficientes para a busca do alcance e do gozo da Saúde. E a Saúde deixaria de ser algo ‘setorial’ para ser o próprio objetivo da nação”.

Segundo ele, como isso é ‘quase utopia’, as constituições mais recentes optaram por deixar claro o papel da saúde. “Isto é, o entendimento por parte dos governos, sejam socialistas ou capitalistas, de que a Saúde não se conquista de forma espontânea, pelo simples desenvolvimento social e econômico, sendo possível em um caso acelerar o seu processo e em outro retardar ou compensar os efeitos perversos da exploração capitalista, ambos por meio de estratégias racionalizadoras”, escreve, acrescentando que, no caso dos países capitalistas, a saúde aparece quase sempre na constituição quando é necessário estabelecer limites da responsabilidade do Estado, as formas de financiamento e o papel do setor privado.

Construção da proposta

O texto da saúde na Constituição brasileira foi escrito pela Subcomissão de Saúde, Seguridade e Meio Ambiente, que teve como presidente o deputado Elias Murad (PTB-MG) e como relator o deputado Carlos Mosconi (MDB-MG). Mas os 21 parlamentares que participaram da subcomissão não escreveram a seção da saúde sozinhos: tiveram a ajuda dos movimentos sociais organizados e de toda a população, que participava das audiências públicas no Congresso Nacional e enviava propostas de textos. “Tínhamos audiência pública toda semana. E a participação do povo era muito expressiva e interessante. Nessas audiências, as pessoas davam sugestões. Depois, nós da subcomissão nos reuníamos para redigir o texto”, lembra Mosconi, que hoje é deputado estadual de Minas Gerais. 

Os participantes da Comissão Nacional da Reforma Sanitária (CNRS), que enviaram sua proposta de texto constitucional para os parlamentares em março de 1987, foram uns dos que acompanharam de perto o trabalho da subcomissão. O movimento sanitário queria que as resoluções da 8ª Conferência Nacional de Saúde, sistematizadas no documento da CNRS, fossem de fato garantidas pelo Estado. Segundo a especialista em direito sanitário Lenir Santos, o Movimento da Reforma Sanitária queria garantir na Constituição os direitos conquistados no campo político e administrativo ainda nos anos que antecederam a Constituinte. “Dentre eles deve ser destacado o programa federal que foi implantado naqueles anos (1987-88) e que estava sendo implementado na época dos debates da Assembleia Nacional Constituinte. Trata-se do Programa dos Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde (Suds), que permitia à União delegar a execução de serviços federais para estados e municípios, por meio de convênio. Essa foi a primeira revolução da saúde ocorrida na prática: a unificação de ações e serviços de Saúde, com comando único do Estado, com a conjugação de recursos financeiros e a universalização do atendimento. Essas conquistas dos participantes da Reforma Sanitária não poderiam ser perdidas. Havia necessidade de consagrá-las no texto constitucional que estava sendo discutido”, explica a advogada no livro citado anteriormente.

Segundo Maria Luiza Jaeger, que participou da Comissão da Reforma Sanitária representando a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e acompanhou de perto a Constituinte, houve uma organização muito grande para pressionar a subcomissão de saúde. “E não foi só o Movimento da Reforma Sanitária que fazia pressão. Houve um processo coletivo, que envolveu os movimentos sindicais, as organizações dos trabalhadores de saúde, os gestores. Por causa de todo esse empenho é que o texto saiu como nós queríamos. E ele é muito parecido com o que tínhamos feito na Comissão Nacional da Reforma Sanitária. A maior parte dos conceitos está lá. Uma das conquistas fundamentais é que saímos de uma constituição anterior na qual a saúde era reduzida à assistência médica para um conceito absolutamente amplo de saúde, que não pensa só em atenção à saúde prestada direta ou indiretamente pelo setor público, mas que pensa o papel do Estado brasileiro em relação a todo o sistema de saúde e toda e qualquer questão que leve risco à saúde”, explica.

"O Centrão foi formado pra tentar barrar nossa proposta no plenário. Eles eram contra muitos textos, mas tinham muita resistência ao da saúde, em especial" (Carlos Mosconi)

De acordo com Mosconi, a participação dos movimentos da saúde, que já tinham uma proposta madura, foi muito positiva. “Fomos influenciados por vários textos. O relatório final da 8ª Conferência foi, sem dúvida, muito importante. Mas o texto que saiu da subcomissão era inédito, fruto de uma discussão de qualidade, da qual participou o Brasil inteiro. Nós ouvíamos a população e todas as questões foram muito bem trabalhadas pelo grupo político que tínhamos na subcomissão. E também tivemos figuras muito importantes do Movimento da Reforma Sanitária acompanhando tudo, como o Eleutério, Sergio Arouca e Hésio Cordeiro”, diz.

Depois de aprovado pela Subcomissão de Saúde, Seguridade e Meio Ambiente, o texto seguiu para a Comissão de Sistematização, da qual participavam todos os relatores. “Eu apresentei o texto para ser discutido e aprovado na Comissão. Houve uma resistência muito grande de grupos contrários a ele. Os principais opositores eram a Federação dos Hospitais e os Sindicatos de Hospitais Privados do Rio de Janeiro”, lembra o deputado. E esses grupos tinham representantes na Assembleia Constituinte. Eram os parlamentares que não concordavam com o Sistema Único de Saúde e formavam o chamado Centrão. “O Centrão foi formado pra tentar barrar nossa proposta no plenário. Eles eram contra muitos textos, mas tinham muita resistência ao da saúde, em especial. Queriam acabar com o nosso texto e fazer outro. Eram contra a saúde ser direito de todos e dever do Estado”, conta Mosconi.

O sanitarista Hésio Cordeiro, que foi membro da CNRS e presidente do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) de 1983 a 87, também destaca o momento de impasse com a iniciativa privada. “A briga foi grande. Os deputados ligados aos serviços privados fizeram muita pressão para inserir artigos no texto da saúde que não envolvessem qualquer restrição à iniciativa privada. Mas, mesmo sendo um grupo hegemônico, o Centrão não conseguiu reverter as propostas do Sistema Único de Saúde. Acabou que os constituintes encontraram soluções intermediárias, conciliadoras. E o setor privado ganhou espaço no SUS, de forma complementar e regulado pelo poder público”, diz ele.

Segundo Mosconi, a briga se estendeu até a plenária final. “O embate aconteceu até votarmos no plenário, ao fim da Constituinte, o texto definitivo da saúde. Mas conseguimos. Convencemos o Centrão de que o projeto só somava, era condizente com a situação do país e não era estatizante. E todas as premissas do SUS foram mantidas”, conta.

O texto constitucional

Logo no primeiro artigo da seção da Saúde, o de nº 196, são afirmadas a universalidade, a saúde como dever do Estado e a garantia ao acesso universal aos serviços de saúde. “Havia uma discussão sobre o que entraria na própria Constituição e o que ficaria para a lei posterior, que a regulamentaria. Brigamos para que as diretrizes do SUS estivessem no texto constitucional. Isso era absolutamente uma questão de honra. Tinha que entrar que era um sistema de saúde descentralizado, universal”, diz Maria Luiza.

Outra questão que fica clara no artigo 197 é que saúde é de relevância pública, “cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle”. Segundo Eleutério, o termo ‘relevância pública’ não tem nenhum significado jurídico especial que desse o tom desejado pelos militantes do SUS. “O que se pleiteava era a inscrição na Constituição da ‘natureza pública’ das ações de serviços de Saúde. Esse termo, sim, traz uma inequívoca conotação jurídica que implicaria absoluta precedência do interesse público e dos serviços públicos, na perspectiva, então possível, da estatização a médio e longo prazo. Esse, no entanto, parece ter sido o limite crítico das negociações”, escreve.

Para a advogada Lenir Santos, o termo que consta da CF não prejudicou seu significado. “Hoje, a expressão ‘relevância pública’ é carregada de significado, permeando, contaminando todas as ações e serviços de saúde, sejam públicos ou privados, sujeitando-os ao total controle do Poder Público. O que vem ocorrendo é uma certa timidez do Poder Público, que não exerce o seu verdadeiro papel assumindo total controle sobre essas ações e serviços”, explica.

Mas o mesmo artigo que fala em relevância pública, diz ainda que a execução das ações e serviços de saúde pode, ainda, ser feita “por terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado”. Para Eleutério, a inclusão desse texto, demanda do Centrão, descartou a possibilidade implícita nos textos de base dos movimentos em prol do SUS de uma estatização progressiva. “O que se instituiu foi um Sistema Único público paralelo a um sistema privado, o qual poderá participar do primeiro mediante contrato de direito público e submetido às suas normas e diretrizes. No entanto, essa participação é complementar e não supletiva, o que significa um espaço garantido e próprio e não, como se queria, o exercício ‘em nome’ do setor público”, diz. 

O lugar do setor privado aparece novamente no parágrafo primeiro do artigo 199, que diz respeito à participação complementar: “As instituições privadas poderão participar de forma complementar do Sistema Único de Saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos”. Na opinião de Carlos Mosconi, a complementaridade foi o melhor acordo que poderia ter sido feito com o Centrão. “Foi uma grande vitória política. Uma conquista que só foi conseguida pelo trabalho árduo, que demorou meses”, diz.

Ainda nesse artigo, é estabelecido que os recursos públicos não podem auxiliar instituições privadas com fins lucrativos e proibida a comercialização de órgãos para fins de transplante, pesquisa e tratamento, assim como da coleta, processamento e transfusão de sangue. Cabe, então, ao SUS controlar e fiscalizar os procedimentos e participar da produção de medicamentos, hemoderivados e outros insumos. “Apesar de o setor privado ter brigado muito pelos hemoderivados, eles acabaram ficando como papel do Estado brasileiro. Isso foi muito complicado, um processo de negociação com o próprio governo na época. Houve muita pressão nos constituintes”, conta Maria Luiza.

Uma outra atribuição do SUS que ficou estabelecida no texto constitucional foi a ordenação da formação de recursos humanos na área da saúde. “Desde a 4ª Conferência Nacional de Saúde, que aconteceu em 1967, se discutia o fato de a formação dos profissionais de saúde não atender às necessidades dos serviços. Na 7ª Conferência, foi pensada uma cooperação entre os sistemas de educação e saúde, no Sistema Nacional de Saúde, que implicaria a constituição do Sistema Nacional de Recursos Humanos para a Saúde. Por fim, na 8ª Conferência, foi decidido que o novo Sistema de Saúde deveria ordenar a formação de pessoal para a área. Então, em 1988, isso era algo claro, que tinha que constar da Constituição. Nós achávamos que era importante que o Ministério da Saúde tivesse controle sobre a abertura dos cursos, que essa era uma discussão que tinha que passar pelo gestor e pelo Conselho Nacional de Saúde e não ser só uma atribuição do Ministério da Educação”, explica Maria Luiza.

"(...) achamos que o governo não tiraria dinheiro depois de ter colocado. Mas mexemos no calcanhar de Aquiles deles" (Maria Luiza Jaeger)

O financiamento do SUS também foi pensado pelos deputados e pelos militantes da saúde. Mas, segundo Carlos Mosconi, a preocupação em garantir a aprovação do Sistema Único de Saúde era tanta, que a discussão sobre as fontes de financiamento não foi bem amadurecida. “A questão do financiamento foi a nossa falha. Nós gastamos grande parte da nossa energia, tempo e argumentação política para convencer o pessoal que era contra de que o Sistema era bom. Queríamos vinculá-lo às receitas orçamentárias dos três níveis de governo, mas os economistas constituintes brecaram. E nós não tivemos força política. O que conseguimos já foi um grande avanço. Porém, em relação ao financiamento, deixamos para resolver na Comissão de Sistematização e no plenário. Infelizmente não deu certo”, diz.

Mesmo assim, o parágrafo primeiro do artigo 198 diz que “o sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes”. Apesar disso, não foi estabelecida a porcentagem mínima de repasse para o SUS. “Como os deputados ligados à área econômica eram contrários, só conseguimos incluir que 30% dos recursos da seguridade iriam para a saúde nas Disposições Transitórias. Isso significava que esse montante de recursos ficaria valendo até que se aprovasse a lei complementar que regularia o SUS”, conta Hésio Cordeiro.

Segundo Maria Luiza, naquele momento, foi pensado que, mesmo nas Disposições Transitórias, a conquista dos 30% seria garantida posteriormente, na Lei Orgânica da Saúde. “Em 1989, conseguimos receber esses recursos. E achamos que o governo não tiraria dinheiro depois de ter colocado. Mas mexemos no calcanhar de Aquiles deles”, diz. Hésio Cordeiro explica que foi no governo Itamar Franco (1992-1994) que a porcentagem aprovada pelos constituintes foi desrespeitada. “O então ministro da Previdência, Antônio Britto, simplesmente decidiu que cortaria os 30%. Ele disse que havia uma crise na Previdência Social e que não havia recursos para financiar a saúde, previdência e assistência social. Falou que essa proposta da Constituinte era utópica e que as esquerdas haviam induzido os parlamentares a aprovar”, lembra. A perda do financiamento garantido no texto aprovado em 1988 era a primeira medida que tentava impedir a implementação do SUS.