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Saúde, um ‘ativo’ da diplomacia brasileira

Governo atual reafirma papel do Brasil na ‘Saúde Global’
Paulo Schueler - EPSJV/Fiocruz | 04/04/2024 16h25 - Atualizado em 12/04/2024 12h11

Em fevereiro, em meio ao Carnaval e a volta às aulas, o Brasil se viu no centro do debate de uma das principais polêmicas de política externa das últimas sete décadas: o conflito que envolve Israel e Palestina. Entretanto, a fala do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante a reunião da 37ª Cúpula da União Africana (UA), que gerou tal repercussão, não se restringiu a esse tema. Em seu discurso, ele anunciou a ampliação da cooperação em saúde com o continente africano, por meio da criação de uma representação da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Adis Abeba, capital da Etiópia. “Vamos trabalhar com o Centro Africano de Controle e Prevenção de Doenças para enfrentar doenças tropicais negligenciadas. Teremos como meta a ampliação do acesso a medicamentos, evitando a repetição do apartheid de vacinas que vimos na Covid-19”, afirmou Lula.

Ao longo da semana seguinte, o país recebeu representação diplomática dos países do Grupo dos 20 (G20), que reúne as 18 maiores economias do mundo – África do Sul, Alemanha, Arábia Saudita, Argentina, Austrália, Canadá, China, Coreia do Sul, Estados Unidos, França, Índia, Indonésia, Itália, Japão, México, Reino Unido, Rússia e Turquia – , além da União Europeia, União Africana e do próprio Brasil. Dentre as reuniões que ocorreram no período, 170 delegados de 30 organizações internacionais, nove países observadores, além dos representantes do G20 participaram do primeiro encontro do Grupo de Trabalho (GT) de Saúde do fórum, que desde dezembro de 2023 tem na presidência o Ministério da Saúde brasileiro. Na pauta, a prioridade apresentada pela ministra Nísia Trindade Lima foi a criação de uma Aliança para a Produção Regional e Inovação.

O tema também esteve em pauta na visita que o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, fez ao Brasil no início daquele mês de fevereiro. Na agenda oficial da visita de Ghebreyesus e de seu colega diretor da organização Pan-Americana da Saúde (Opas), o brasileiro Jarbas Barbosa, constou também o papel de articulação do Brasil para a aprovação do novo tratado internacional sobre pandemias. Existe a expectativa de que o novo regulamento seja aprovado na 77º Assembleia Mundial de Saúde, em maio próximo.

Em entrevista à Poli, o chefe da Assessoria Especial de Assuntos Internacionais (Aisa) do Ministério da Saúde, embaixador Alexandre Ghisleni, afirmou que, além da proposta a ser votada, a visita de Ghebreyesus permitiu a presença da OMS no evento de lançamento do ‘Brasil Saudável’, programa nacional para a eliminação das doenças socialmente determinadas, que não encontra paralelos no mundo. “A visita constitui um marco e significa o reconhecimento do diretor-geral da OMS em relação à importância do Brasil na saúde global”, afirma Ghisleni.

Esse conjunto de atividades relacionadas ao binômio saúde e relações internacionais envolvendo o Brasil é uma amostra da atuação do país naquilo que se convencionou chamar ‘Diplomacia da Saúde Global’, que dá nome ao artigo em que a cientista política alemã Ilona Kickbusch define “o conjunto de negociações desenvolvidas em diversos níveis, que delineia e gerencia o ambiente das políticas globais em saúde; e que, idealmente, produz melhores resultados para a saúde da população de cada país envolvido (atendendo, assim, aos interesses nacionais), bem como implementa as relações entre Estados e reforça o compromisso de um amplo arco de atores em prol do empreendimento comum de assegurar a saúde como direito humano e bem público”. O coordenador do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Cris/Fiocruz), Paulo Buss, defende, inclusive, que a Aisa, a Assessoria Internacional do ministério, deveria se chamar Assessoria de Diplomacia da Saúde e funcionar como “uma divisão atuante no campo da diplomacia em associação com o Ministério das Relações Exteriores e sua recém-criada Divisão de Saúde Global, além da Agência Brasileira de Cooperação (ABC)”, que ele define como “nosso veículo da cooperação Sul-Sul e de ajuda humanitária”. “São coisas combinadas e que precisam ocorrer em paralelo”, argumenta.

O Brasil na criação da Opas e da OMS

A contribuição brasileira para essa diplomacia, aliás, é histórica e faz parte da origem tanto da Organização Pan-Americana da Saúde quanto da Organização Mundial da Saúde. Em 1870, uma epidemia de febre amarela atingiu, além do Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina. Em oito anos a doença se espalhou pelos Estados Unidos, onde matou mais de 20 mil pessoas. A necessidade de controlar a propagação de epidemias entre países, protegendo a saúde das populações sem impactar o comércio marítimo, motivou a criação, em dezembro de 1902, do que hoje conhecemos como Opas.

De acordo com a própria Organização, isso ocorreu a partir da 1º Conferência Internacional dos Estados Americanos, realizada em Washington, nos EUA, de 2 de outubro de 1889 a 19 de abril de 1890. Na sessão de 7 de dezembro de 1889, os delegados aprovaram a criação de uma Comissão, composta por sete membros de cinco países – Brasil, Nicarágua, Peru, Estados Unidos e Venezuela – para estabelecer as regulamentações sanitárias no comércio entre os vários países representados na Conferência. Essa comissão recomendou, com endosso dos demais países, a adoção da Convenção Sanitária Internacional do Rio de Janeiro (1887) ou o texto da Convenção Sanitária do Congresso de Lima (1888). A aprovação de recomendações sanitárias a todos os países participantes só ocorreu em 1902, na cidade do México, quando foram estabelecidos critérios sanitários para a prevenção e controle da febre amarela, febre tifoide, cólera e peste bubônica, através de medidas como quarentenas e manejo adequado de animais e resíduos sólidos. No mesmo evento, se oficializou a criação da Opas.

Quase meio século depois, como consequência da Segunda Guerra Mundial e a criação do ‘sistema ONU’, foi criada a Organização Mundial da Saúde. Coautor do livro ‘The World Health Organization – A History’, o pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) Marcos Cueto afirma que sua origem está relacionada ao trabalho dos Aliados em prestar socorro às populações civis dos territórios europeus liberados das forças do Eixo.

Em vários trabalhos e entrevistas, Cueto identifica que a proposta de criação da OMS foi encabeçada pelo diplomata chinês Szeming Sze e pelo médico brasileiro Geraldo de Paula Souza. Egresso do curso de doutorado da Faculdade de Higiene e Saúde Pública da John Hopkins University, nos EUA, Souza atuou no cenário internacional a partir de 1927, quando ingressou na Liga das Nações como técnico da Seção de Higiene. Após 18 anos trabalhando entre Europa e África no diagnóstico e combate à febre amarela e malária, o médico integrou a delegação brasileira na Conferência de São Francisco, que em 1945 gerou a Carta das Nações Unidas.

Neste espaço, ao lado de Szeming Sze, o médico propôs a criação de um organismo global destinado à saúde pública. Apenas um ano depois, Souza participou da reunião que aprovou a constituição da OMS e a definição de que “saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não somente a ausência de doença ou enfermidade” – que abre a Constituição da Organização Mundial da Saúde. A OMS foi instituída a partir da primeira Assembleia Mundial da Saúde, em 1948, e dela o médico brasileiro foi membro até falecer em 1951, durante viagem a trabalho pela própria Organização. E essa não é a única curiosidade sobre a participação do Brasil na trajetória da OMS: seu diretor-geral mais longevo, que esteve à frente da Organização por 20 anos (1953-1973), foi o médico brasileiro Marcolino Gomes Candau.

Foi durante sua gestão que a entidade deu início a uma das principais conquistas da história da saúde pública: o Programa Intensificado de Erradicação da Varíola, de 1967, até hoje o único exemplo de ‘extinção’ de uma doença viral no mundo.

Vacinas: cartão de visitas brasileiro

Há anos a expectativa de que o exemplo da varíola se repita ocupa corações e mentes daqueles envolvidos com a Iniciativa Global de Erradicação da Poliomielite (GPEI, na sigla em inglês). De acordo com a OMS, em 2023 as infecções por poliovírus selvagem, causadoras da paralisia infantil, haviam decrescido mais de 99% em comparação com 1988, passando de uma estimativa de 350 mil casos anuais em 125 países endêmicos para 12 infecções em apenas dois países endêmicos – seis casos no Afeganistão e seis no Paquistão.

Para essa “quase erradicação” contribuiu, em muito, a estratégia brasileira adotada nos anos 1980 de organizar dias nacionais de vacinação com o uso de vacinas orais, chamadas ‘tipo Sabin’, em homenagem ao seu formulador – a imunização em massa com essa vacina gerou imunidade de grupo, reduzindo a capacidade do vírus de infectar indivíduos em bolsões de não vacinados. Em três anos de aplicação dessa estratégia, a incidência de pólio foi quase a zero no Brasil, e em 1989 foi finalmente registrado o último caso de infecção.

O sucesso da estratégia fez dela um exemplo, que passou a ser adotado nas Américas através da Opas, tornando este o primeiro continente livre da pólio pelas mãos... de mais um brasileiro: Ciro de Quadros. Sobre ele, o ex-diretor do Instituto Evandro Chagas Francisco de Paula Pinheiro afirma no artigo ‘Ciro de Quadros, herói da saúde pública das Américas e do mundo’ que em 1986, quando eram muitos os “obstáculos a serem enfrentados”, ele “idealizou, organizou e liderou a execução do Programa de Erradicação do Poliovírus Selvagem na América Latina e no Caribe”. E o resultado foi logo percebido: “O último caso de pólio por vírus selvagem nas Américas foi diagnosticado no Peru, em 1991. Em seguida, Ciro comandou os esforços para interromper a transmissão do sarampo – o que ocorreu em 2002 – e da rubéola nas Américas”, conta o autor.

Além de ‘exportar’ estratégias de vacinação, desde 2001 o Brasil é fornecedor internacional da vacina de febre amarela, e desde 2007 da vacina contra meningite meningocócica, ambas produzidas pela Fundação Oswaldo Cruz, instituição pública ligada ao Ministério da Saúde. Em 2022, a esse portfólio de exportação foi incluída a vacina contra a influenza (gripe), através do Instituto Butantan, também público, vinculado ao governo estadual de São Paulo. Através da venda para agências das Nações Unidas, esses produtos são usados majoritariamente na América Latina, Caribe e África. No caso das vacinas produzidas pela Fiocruz, as cerca de 190 milhões de doses já vendidas permitiram o controle de surtos no Cinturão da Meningite, na África; e de uma epidemia de febre amarela que se iniciou em Angola e chegou até a República Democrática do Congo, em 2016; além de surtos no Paraguai em 2008 e na Argentina em 2021, dentre outros. Pelo Butantan, mais de sete milhões de doses comercializadas – das quais as 5,3 milhões fornecidas em 2023 equivalem a metade da demanda da Opas para o produto.

Em novembro de 2023, a vacina de febre amarela, já exportada para mais de 70 países endêmicos, foi objeto de acordo de transferência de tecnologia pelo qual a Fiocruz transmitirá para a Administração Nacional de Laboratórios e Institutos de Saúde Dr. Carlos Malbrán (Anlis), da Argentina, todos os conhecimentos necessários para que o país vizinho produza a vacina em seu território. Dois anos antes, em 2021, o Brasil já tinha sido selecionado pela Opas como hub para desenvolvimento tecnológico e produção de um produto recente, uma vacina de RNA mensageiro para Covid-19, projeto da Fiocruz. Para assegurar o acesso equitativo, a vacina, que ainda deverá ser desenvolvida, será oferecida aos estados-membros e territórios da Opas por meio de seu Fundo Rotatório, que fornece vacinas acessíveis há mais de 40 anos na região. Como escopo do projeto, a Fiocruz se compromete a compartilhar seu conhecimento para a produção da vacina com demais laboratórios da região, garantindo a eles a transferência de tecnologia para ampliar a capacidade produtiva regional.

Durante a recente visita do diretor-geral da OMS ao Brasil, foi noticiada a possibilidade de o país produzir vacinas contra a dengue para distribuição regional. Sobre isso, o chefe da Aisa afirmou à Poli que na reunião entre Ghebreyesus e a ministra Nísia Trindade, “a questão da produção de vacina contra a dengue não chegou a ser tratada especificamente”. Ghisleni complementa que “há um reconhecimento dessa questão, na medida em que um dos elementos mais importantes da participação do Brasil na saúde global é sua capacidade de inovação e produção de vacinas. Então, está implícito o papel que o fortalecimento da capacidade produtiva e de pesquisa no Brasil vai ter nessa atuação internacional”.

A necessidade de acesso a tecnologias e o ‘case’ da Aids

Contribui para as ações de solidariedade internacional do Brasil, no segmento de vacinas, a existência de laboratórios públicos, como Butantan e Bio-Manguinhos, unidade da Fiocruz. Para a incorporação de novos produtos em sua cesta de exportação, bem como a inovação em novas tecnologias, como a de RNA, existe a estratégia de fortalecimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (Ceis), valorizado na atual gestão do Ministério da Saúde. A aposta é fortalecer e diversificar os arranjos produtivos nacionais, tanto no setor de equipamentos de saúde quanto no farmacêutico, entendendo o SUS como um grande comprador do que o Estado produz – os dados mais recentes da pesquisa do IBGE ‘Conta-Satélite de Saúde’, de 2019, revelam que naquele ano foram gastos 9,6% do PIB no consumo de bens e serviços de saúde.

A importação de bens e produtos de saúde custa cerca de US$ 20 bilhões por ano ao Brasil, e a proposta de fortalecimento do Ceis busca não apenas reduzir esta dependência, como gerar excedentes de produção para fornecimento de produtos a outros países.

Para Paulo Buss, várias políticas desenvolvidas no âmbito do Sistema Único de Saúde brasileiro, dentre elas as que garantem acesso a medicamentos, podem inspirar iniciativas exitosas em outros países. “O Brasil tem no SUS uma grande experiência de política pública e um excelente tema para a cooperação estruturante, que permite colocarmos à disposição dos países interessados experiências como o PNI, o Saúde da Família, o Farmácia Popular, que dá acesso a medicamentos básicos gratuitos usando inclusive as redes de farmácias privadas, o de Transplantes e o programa de universalização do tratamento gratuito da Aids”, lista.

O último exemplo merece ser destacado. A partir da década de 1990, inicialmente no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) e posteriormente também na OMS, o Brasil esteve no centro das negociações para o licenciamento compulsório de medicamentos anti-Aids, a fim de reduzir os valores cobrados pela indústria farmacêutica. Em 2001, o país ameaçou quebrar a patente do Nelfinavir, da Roche. Os EUA entraram com reclamação contra o Brasil na OMC e a diplomacia brasileira atuou para levar o tema para a Assembleia da OMS, fórum que aprovou a resolução prevendo o acesso de medicamentos a pacientes com Aids como um direito humano fundamental. Em paralelo, organizações não-governamentais (ONGs) pressionaram Washington a retirar o processo contra o Brasil na OMC, sob a justificativa de que a postura norte-americana ameaçava a política de combate à Aids. Com a vitória obtida na batalha das ideias e na articulação de ações em diferentes organismos multilaterais, com apoio da sociedade civil, em 2003 o Brasil repetiu a ameaça, agora para o Kaletra, da Abbott. A estratégia permitiu que o Ministério da Saúde negociasse a aquisição desses medicamentos a preços mais acessíveis, o que foi fundamental para a execução da Política Nacional de Aids, que distribui gratuitamente, pelo SUS, os medicamentos para portadores de HIV.

Em 2006, o país foi além da ameaça e, utilizando a flexibilidade prevista no artigo 31 do Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionadas ao Comércio (TRIPS, na sigla em inglês), declarou o licenciamento compulsório do Efavirenz, da Merck. A decisão permitiu ao Ministério da Saúde importar versões genéricas do remédio.

Participante das negociações, então como presidente da Fiocruz, Paulo Buss relata na entrevista à Poli que “aquele momento foi decisivo, pois deixamos claro para a empresa que nós sabíamos fazer engenharia reversa e podíamos produzir aquele medicamento. Não apenas é necessário liberação de patente, mas a transferência da tecnologia de produção, a transferência do processo de conhecimento. Desde aquele momento os países olham para o Brasil como um país que não só ameaça como pode também tomar atitudes concretas e redutoras da desigualdade, quando citamos os produtos utilizáveis à saúde”.

O histórico sobre o HIV ilustra a busca do país por dar sustentabilidade econômico-financeira e segurança de fornecimento ao seu Sistema Único de Saúde, de acesso universal a 214 milhões de pessoas, incluindo o segmento de alta complexidade, com fornecimento, por exemplo, de insumos de alto custo para doenças raras e crônico-degenerativas. De acordo com Buss, a diplomacia em saúde do Brasil tem o potencial de utilizar esses exemplos para colaborar na sustentabilidade dos sistemas de saúde daquele conjunto de países que são seu foco principal de cooperação. “Nós temos falado muito em acesso a tecnologias inovadoras, quando, na verdade, grande parte dos países em desenvolvimento vive a crise ainda dos medicamentos, diagnósticos e outros recursos essenciais. Eu estou me referindo a antibióticos, anti-hipertensivo, anestésicos. Creio que o Brasil deve ser defensor de que sejam equitativamente acessíveis a todos os países do mundo e a todas as populações, aos países pobres, e dentro dos países, aos pobres desses países. Há país rico com pobres sem acesso a esses produtos”, defende.

Diplomacia da Saúde não se restringe à produção

É reducionista, entretanto, creditar apenas à exportação de produtos as ações que destacam o Brasil na diplomacia em saúde. Um exemplo são as ações comunitárias que o país promove através da Agência Brasileira de Cooperação (ABC), do Ministério de Relações Exteriores. Durante a visita de Estado do presidente da Lula a Etiópia, por exemplo, o Brasil entregou purificadores de água e alimentos – dentre os quais quatro toneladas de arroz parboilizado orgânico e outras quatro toneladas de leite em pó produzidos e doados pelo Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) – aos cerca de 385 mil refugiados atendidos pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) na região de Gambela.

No escopo de ação humanitária, inclui-se também a doação de medicamentos e imunizantes. Apenas no último trimestre de 2023, por exemplo, segundo informações do site da ABC, o Brasil doou vacinas contra a febre amarela, antirrábicas e medicamentos antirretrovirais para o Paraguai, 20 mil doses da vacina pneumocócica ao Belize e comprimidos do tenofovir alafenamida, medicamento usado para o tratamento de hepatites virais – 100 mil para Cuba e 200 mil para a Guiné. Ao Uruguai, em dezembro foram doados comprimidos de raltegravir 400mg, usado em infecções por HIV; testes rápidos DDP para o tratamento de leishmaniose visceral canina; frascos de imonoglobulina humana antirrábica e de imunoglobulina anti-hepatite B; além de ampolas de soro antiaracnídico.

No mesmo período – outubro a dezembro de 2023 –, o país desenvolveu uma série de outras ações de cooperação técnica, como a avaliação final do projeto ‘Apoio ao Programa de Luta contra a Tuberculose de São Tomé e Príncipe’ e ações de treinamento no âmbito do ‘Programa de Reanimação Neonatal de Moçambique’, em parceria com a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). O Brasil também firmou compromisso para apoiar a implementação do Plano Nacional de Recursos Humanos em Saúde de Angola, por meio da capacitação de profissionais do Ministério da Saúde (MINSA) do país africano. Com o Uruguai, foram assinados quatro projetos: ‘Vigilância e controle de aedes spp. em áreas de fronteira’, ‘Fronteira protegida: iniciativa de prevenção e cuidado do HIV/Aids e da Tuberculose’, ‘Tecnologias assistivas, ciência de dados e inteligência artificial aplicadas à saúde’ e ‘Vigilância e controle de leishmaniose visceral em áreas de fronteira’. Foi também com o apoio da cooperação técnica brasileira que o Suriname se tornou o primeiro país da região amazônica sem caso de malária a relatar desde 2021, o que permitiu aos nossos vizinhos receberem, em março de 2023, o prêmio ‘Campeões contra a Malária das Américas’, da Opas.

A Saúde na construção de um futuro multilateral

E o que se espera da atuação do Brasil na presidência do Grupo de Trabalho de Saúde do G20? Atuando nos debates do GT, cujo encontro de cúpula ocorrerá no Rio de Janeiro em novembro, o chefe da Aisa, Alexandre Ghisleni, afirma que a Diplomacia de Saúde do Brasil ocorre em diferentes fóruns multilaterais. De acordo com ele, esse não seria o fórum adequado para tratar, por exemplo, da flexibilização de patentes de medicamentos, como o Brasil já fez no caso do enfrentamento ao HIV, mesmo que o tema da ‘Equidade no acesso a inovações em saúde’ tenha sido a primeira das prioridades colocadas em discussão no GT pela ministra Nísia Trindade – as outras áreas elencadas pela ministra como as mais importantes foram ‘Prevenção, Preparação e Resposta a pandemias, com foco na produção local e regional de medicamentos, vacinas e insumos estratégicos para a saúde’; ‘Saúde digital, para a expansão da telessaúde, integração e análise de dados dos sistemas nacionais de saúde’ e ‘Mudanças Climáticas, facilitando o acesso de países em desenvolvimento a tecnologias necessárias para enfrentar os impactos da mudança do clima na saúde’. “O GT segue muito a lógica do próprio G20, grupo de países com as maiores economias que se reúnem para tratar de problemas específicos. Nossa ideia é fomentar a criação de uma rede mundial de centros de pesquisa e desenvolvimento que permita impulsionar acordos para suprir falhas de mercado, mas não há previsão de que para dentro desse debate seja abordado o tema específico da propriedade intelectual. Da mesma forma, o tratado sobre pandemias e a atualização do Regulamento Sanitário Internacional, por exemplo, devem ser objeto de análise nos espaços da OMS”, explica Ghisleni.

De acordo com Buss, o Brasil utiliza de sua atual presidência no G20 para atuar como uma espécie de porta-voz dos interesses do Sul global, em benefício de sua estratégia de fortalecer a relação com os países em desenvolvimento. Assim, pressiona também para que os países ricos se comprometam com as necessidades dos países mais pobres. “Um exemplo é a proposta que eu chamo ‘fórmula Haddad/Nísia’ [em referência aos ministros da Fazenda e Saúde], que propõe que se perdoe a dívida externa, uma das grandes questões não tanto no Brasil, mas de países africanos ou mesmo da Argentina, para que se aplique esse dinheiro em Saúde e também em Educação”, cita.

Outra estratégia, segundo o coordenador do Cris/Fiocruz, é reforçar uma ação interministerial sobre saúde, para que a posição do Brasil sobre o tema esteja presente em diferentes organismos globais. “Todas as agências da ONU têm, em alguma medida, a Saúde como um de seus temas. Unicef, Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), todas elas. É importante que outros ministérios estejam adequadamente articulados com a Saúde quando tiverem que se manifestar sobre o tema na agenda das organizações, sejam agências das Nações Unidas ou também nos diferentes grupos, como G20, BRICS, G77 e outros dos quais o Brasil faz parte”, diz.

Por fim, Buss acredita que a diplomacia brasileira é capaz de estabelecer múltiplas articulações para fazer valer sua orientação de fortalecimento das relações Sul-Sul, em busca de um mundo multipolar.

“A tensão sobre as hegemonias política e econômica do planeta não deveria atrapalhar uma cooperação decente e o respeito à soberania dos países. Dessa forma, o Brasil deve defender que a cooperação internacional precisa estar acima das diferenças políticas”, opina.

Em sua avaliação, isso pode estar expresso já na apresentação do relatório de Saúde do G20, em novembro. “O texto será fruto das diferentes interpretações dentro do G20, um grupo que possui representação do sul global, como são os casos de Brasil, Argentina, México, Arábia Saudita e África do Sul; do Reino Unido e Estados Unidos, ao lado de outros europeus, além de China e Rússia. Ou seja, há uma organização do G7 dentro do G20 e há uma presença dos BRICS no G20”, detalha. E conclui: “Para que se consigam resultados que venham de consensos, é necessária muita negociação, e eu acho que a diplomacia brasileira tem condições de fazer isso”.

Formação em Saúde como estratégia de cooperação internacional

A formação de quadros para saúde pública também esteve na pauta da visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a Etiópia, em fevereiro. Na ocasião, a Fiocruz sugeriu a criação de uma Escola Pan-Africana de saúde pública. A proposta materializa, segundo o coordenador da Cooperação Internacional da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), da Fiocruz, Carlos Batistella, a orientação do Ministério da Saúde de identificação de atividades com potencial de internacionalização não apenas para a América Latina e Caribe, mas também na África. “A ideia é que devemos ampliar a cooperação no continente africano não apenas entre os falantes de língua portuguesa, sob a ótica de que existem países com perfis sanitários e necessidades muito semelhantes, com os quais o Brasil poderia estabelecer parceria estratégica”, diz.

Nas palavras do chefe da Aisa, Alexandre Ghisleni, “a parte de treinamento e formação de profissionais de saúde é um ponto muito importante do trabalho da Secretaria de Gestão de Trabalho e Educação em Saúde (SGTES) do Ministério, que está envolvida em discussões sobre cooperação internacional”.

A demanda por formação é elevada. “A Opas estima um déficit atualmente de 600 mil profissionais [de saúde] na América Latina e no Caribe. Não é um déficit pequeno, e projetos de formação continuam sendo necessários para que a região atinja o básico, com os sistemas de saúde oferecendo uma atenção primária de qualidade”, exemplifica Batistella. Ele relata que, para contribuir com esse processo, a EPSJV/Fiocruz está atuando em pesquisa para identificar o perfil e a trajetória profissional e de formação dos técnicos de saúde do continente, além de identificar os conteúdos e cursos mais acessados por esses profissionais, para levantar as demandas reprimidas de formação. A EPSJV/Fiocruz é Centro Colaborador da OMS para a Formação de Técnicos em Saúde desde 2004.

 

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