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Seguridade Social: desafios para a construção de sistemas universais

Modelo brasileiro apresenta problemas de funcionamento, mas muitos países sequer possuem o direito à  seguridade definido em suas legislações. Conferência mundial em Brasília discutiu o tema
Raquel Torres - EPSJV/Fiocruz | 04/01/2011 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

DivulgaçãoO que é seguridade social? O que é preciso para oferecer proteção e segurança aos cidadãos? No Brasil, ela foi institucionalizada como direito pela Constituição Federal de 1988, que estabeleceu um sistema em que devem estar integradas previdência social, saúde e assistência social. Mas isso não vale para o mundo todo: muitos países não possuem sistemas organizados de seguridade; para alguns, a proteção é quase sinônimo de previdência; outros enfatizam a assistência; e há muita gente que discute se não seria interessante incluir, como itens necessários à seguridade, direitos como alimentação, terra e educação.

México, Índia, Bolívia, Alemanha, Moçambique, Irã, Uruguai, Suíça e Brasil são apenas alguns dos quase cem países que estiveram representados em Brasília, entre 1º e 5 de dezembro, para a 1ª Conferência Mundial sobre o Desenvolvimento de Sistemas Universais de Seguridade Social. Os mais de mil participantes – que eram tanto representantes da sociedade civil organizada quanto de governos e organismos intergovernamentais – tinham como objetivo sair da Conferência com um rumo a ser seguido para construir uma agenda política mundial comprometida com a implantação de sistemas universais de seguridade .

Para isso, muita coisa teve que ser tratada, e o encontro se organizou em torno de três eixos principais: ‘As razões e oportunidades para a construção de sistemas universais e seus imperativos democráticos e éticos’, ‘Os desafios para alcançar a universalização da seguridade social’ e ‘Os caminhos políticos para a construção dos sistemas universais: a definição da agenda política e as estratégias de comunicação’. Esses grandes temas foram discutidos durante as manhãs, a partir de exposições de especialistas sobre cada um dos eixos gerais. À tarde, os participantes se dividiam para assistir a novos painéis seguidos de debates sobre diversos sub-eixos e, à noite, eram novamente divididos – dessa vez, por regiões, para apresentarem seus problemas específicos, as soluções pensadas em seus países e suas impressões sobre o que havia sido falado e ouvido durante o resto do dia. Daí saíram documentos com as demandas e sugestões de cada região .

Economia e direitos sociais

A relação entre investimentos em direitos sociais e economia foi mencionada o tempo todo durante a Conferência: buscou-se mostrar que o pensamento neoliberal segundo o qual é necessário fazer cortes sociais para estabilizar a economia não se sustenta e apontar que o investimento em áreas sociais tem impulsionado o desenvolvimento econômico das nações. Os delegados acreditam que o viés econômico pode inclusive servir como argumento para convencer governos mais conservadores a investir nas áreas sociais.

O tom foi dado já na solenidade de abertura, quando se enfatizou que, na crise internacional que estourou em 2009, saíram-se melhor os países que tinham sistemas de seguridade mais ou menos estruturados. “Se algo era preciso para mostrar a falência do neoliberalismo, a crise mostrou isso. Em muitos países, governos e forças hegemônicas, em vez de tirarem uma lição da crise, continuam apontando soluções que retrocedem. Essa é uma armadilha que se precisa evitar, pois pode enfraquecer o sistema de proteção justamente quando as pessoas estão mais vulneráveis. É a política, e não a economia, que dá as melhores respostas para a crise”, afirmou o ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência da República, Luiz Dulci, que representou o presidente Lula.

Ainda na abertura, a indiana Kardi Duppa, representante da sociedade civil internacional, lembrou que não faz sentido esperar que venha primeiro o crescimento econômico para depois investir na população, já que isso, na prática, não acontece. “A Índia é um grande exemplo disso. É um país de economia crescente, mas uma das nações com o maior número de pobres, famintos e analfabetos. Tem um grande desenvolvimento nas ciências médicas, mas milhares ainda morrem de doenças simples e de desnutrição”, disse.

A tônica era de não mais subordinar os direitos sociais à economia, mas fazer o oposto: construir um modelo de desenvolvimento econômico que pudesse atender à área social. Mas representantes de alguns países, especialmente do continente africano, se mostraram preocupados em relação à implantação de sistemas de seguridade em regiões com recursos financeiros realmente limitados. “Dar às pessoas saúde, pensões, alimentação, educação, habitação e outros direitos é o que desejamos. Mas como isso será financiado? Vimos aqui que, quando se investe em seguridade social, isso estimula a economia. Mas em que nível de investimento se tem esse efeito multiplicador? Será que países mais pobres, investindo muito pouco em seguridade, terão um bom retorno, tanto social quanto econômico? Ou deveremos recorrer a empréstimos de longo prazo para isso?”, questionou um delegado do Quênia.

A cooperação internacional apareceu como uma boa saída em algumas das rodas de discussão. O representante da Organização Internacional do Trabalho (OIT) Jesus Garcia Jimenez, da Espanha, alertou, no entanto, para o perigo de transformar essa cooperação em problemas. “Parece que agora a dívida externa veste a camisa da cooperação internacional, mas não é a mesma coisa. Talvez eu perca meu emprego por dizer isso, mas, com políticas que se apóiam no Banco Mundial, vejo duas coisas: dívida externa e perda de soberania dos povos – além de o país perder a oportunidade de aplicar uma reforma fiscal que crie sustentabilidade no seu sistema de seguridade”, disse, completando: “Vê-se muito uma ‘cooperação’ marcada pela lógica do domínio econômico. Na União Europeia, os povos estão perdendo soberania a partir das condições de ajuste fiscal impostas pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Eles estão receitando o mesmo que receitaram para a América Latina nos anos 1980. E isso para nós, europeus, que acreditávamos estar acima disso tudo. Devemos ter cuidado e uma reflexão profunda sobre como financiar a partir de cooperações solidárias, e não destruidoras”, alertou.

Redistribuição global

A painelista Rene Loewenson, do Centro de Apoio à Pesquisa do Zimbábue, também abordou a questão. De acordo com ela, a maior parte dos países considerados pobres são na verdade ricos, mas de população inquestionavelmente pobre, com grande desigualdade social. “Mas a desigualdade não é apenas da nossa economia: é global”, disse Rene. Para ela, a discussão das políticas universais é um desafio direto a esse nível de desigualdade, na medida em que estabelece uma plataforma de direitos que torna essa disparidade inaceitável no nível nacional e global. “E isso não será resolvido a não ser que distribuamos os recursos sociais”, afirmou.

A pesquisadora também citou os malefícios do Banco Mundial e do FMI para os países africanos, e disse ainda que a injustiça no comércio global hoje precisa ser revista: muitos dos países agrícolas têm sua produtividade aumentando enquanto o preço dos produtos que vendemos está caindo, o que traz implicações para a renda básica, para a seguridade social e para o salário mínimo. “Como garantir esses direitos quando ganhamos cada vez menos pelo que produzimos na economia global? Os valores passaram para processos fora do nosso controle”, ressaltou. Ela disse ainda que as políticas de liberalização entraram muito rapidamente na forma de atividade econômica africana, descrevendo um padrão que pode também ser observado em outras regiões: “Produzimos o que não consumimos e importamos o que consumimos. Destruímos a produção doméstica, importando até mesmo alimentos. Agora temos uma crise alimentar grave e reconhecemos esse problema”.

Rene afirmou que o problema a ser resolvido não é meramente técnico, mas político. De acordo com ela, a solução passa pela inclusão de direitos sociais nas constituições das nações, mas isso não é suficiente: “As políticas através dos anos têm levado a África – e não só a África – a uma grande perda de recursos da nossa economia para economias de alta renda. Somos exportadores de riquezas. Será que é possível resolver essas questões domesticamente, apenas dentro de cada nação? Penso que a África é uma razão para observarmos com cuidado a economia mundial. Precisamos de sistemas redistributivos não apenas dentro de cada país, mas em escala global: sistemas que, de alguma forma, tragam de volta o dinheiro que saiu do sul para os países de alta renda”, defendeu.

Qual seguridade?

Só que não adianta decidir que se vai investir dinheiro nem definir de onde tirá-lo sem saber exatamente o que se quer fazer. Luciana Jaccoud, representante do Instituto de Política Econômica Aplicada (IPEA), do Brasil, explicou que cada país tem respondido a objetivos diferentes quando se trata de seguridade: “Há sistemas que visam a combater a pobreza, oferecendo proteção aos mais pobres por meio de mínimos sociais, ou seja, patamares que impeçam a consolidação da pobreza extrema. Esse é um objetivo distinto do de modelos que pretendem proteger trabalhadores quando eles estão impedidos de trabalhar, como na velhice, doença ou invalidez. Diferente ainda é o objetivo de quem quer consolidar padrões de igualdade a partir da cidadania. Cada uma dessas interpretações gera modelos que oferecem níveis distintos de proteção e colocam demandas diferentes ao  Estado”, exemplificou.

DivulgaçãoAssim, há conceitos diferentes de seguridade. A brasileira, por exemplo, não é exatamente acessível a todos: no que diz respeito à previdência, qualquer um pode se inscrever e contribuir, mas só tem direito aos benefícios quem contribui (exceto no caso dos trabalhadores rurais, que podem receber benefícios comprovando tempo de serviço). Isso faz parte do modelo bismarkiano, que surgiu na Alemanha e é muito usado na América Latina. “A oferta de serviços é limitada e o sistema se baseia em uma estrutura de seguro social, em que trabalhadores e empresas contribuem para fundos públicos e a principal oferta de proteção se dá a partir do acesso à renda”, afirmou Luciana. As contribuições dos trabalhadores não precisam ser a única fonte de recursos nesse tipo de sistema: no caso da previdência brasileira, por exemplo, elas coexistem com tributos específicos (para saber mais, leia a edição nº 14 da revista Poli).

Ela explicou ainda que o modelo social-democrata, usado largamente na Europa, é estruturado a partir de um Estado forte que atua como ator principal: “Nesses sistemas, baseados em impostos, o acesso à renda não é o pilar central: eles operam principalmente com amplas estruturas de serviços sociais”. O esquema que os Estados Unidos estão usando para ampliar o acesso de sua população à saúde já é diferente: ele prevê uma atuação muito mais intensa das seguradoras privadas – modelo amplamente rechaçado pela maioria dos participantes, que acreditam se o Estado quem deve garantir prioritariamente esses direitos.

A professora Sonia Fleury, da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas, mencionou três reformas recentes da América Latina – a do Chile, a do Brasil e a da Colômbia – para que os delegados refletissem sobre os sistemas desejados. “A reforma chilena, feita ainda durante a ditadura, teve como princípio tornar o mercado o lugar da proteção e o Estado subsidiário ao mercado. Foi transferida ao mercado a função de garantir aposentadorias, pensões, saúde. Nesse modelo liberal, implantado por Augusto Pinochet, caberia ao Estado focalizar apenas a população pobre. O ‘problema’ é que os pobres na América Latina não são o foco, mas a maioria. E mesmo a população rica acaba usando o Estado em situações que não dão lucro ao mercado, como no caso de idosos e pessoas com doenças crônicas. Ou seja: o mercado fica com a parte ‘nobre’, com o lucro, enquanto o Estado arca com ‘o resto’”, disse.

O modelo brasileiro representou, segundo a professora, um projeto generoso de proteção. “Só que o sistema começou a ser implementado em condições completamente adversas. Estávamos em crise econômica, com recursos escassos, dívidas altas e a primazia da macroeconomia sobre a ordem social. Houve uma deterioração de vários serviços públicos e alta expulsão da classe média para o mercado. O sistema, que era para ser universal, passou a conviver com um poderoso sistema privado, em parte subsidiado pelo próprio Estado, que o patrocina. É um sistema perverso, que tem inúmeros fluxos de relação entre o público e o privado, sempre favorecendo o mercado”, afirmou Sonia.

Já na Colômbia, nos anos 1990, optou-se por resolver a questão por meio de um sistema de seguro diferente do tradicional: trata-se de uma política pública de contribuição compulsória, mas totalmente provida por seguradoras privadas. A professora apontou uma grande similaridade entre os sistemas: “Conseguimos perverter todos os modelos de reforma – seja os já criados com a ideia de fragmentação, seja o universal – em sistemas segmentados, que reproduzem as desigualdades das nossas sociedades”, disse.

Ela aponta a necessidade de refletir sobre como enfrentar isso: para Sonia, já se descobriram mecanismos para diminuir a pobreza, como as políticas condicionadas de transferência de renda, mas isso não é suficiente. “Com esses mecanismos, é possível diminuir o número de pessoas pobres e extremamente pobres, mas, na proteção social, elas continuarão tendo serviços de segunda categoria em relação às classes altas. Não temos conseguido atacar o grande problema. Estou convencida de que só fortalecendo os sistemas universais será possível combater a desigualdade. O resto serão sempre apenas medidas de combate à pobreza”, concluiu.

Qual universalidade?

É também preciso ter atenção e pensar que tipo de universalidade se está buscando: por mais estranho que possa parecer, ela não significa necessariamente uma ampliação dos direitos. “A crise dos anos 1990 acabou promovendo o olhar liberal da seguridade social e a adoção de um Estado mínimo por muitos países – restringindo direitos –, mas isso nem sempre veio acompanhado de um constrangimento da universalização. A ideia de focalizar as políticas nos segmentos necessitados gerou forte reação, o que levou à seguinte resposta: ‘Então, não vamos focalizar, mas universalizar a partir de mínimos. Teremos patamares mínimos que assegurem a garantia de respostas para todos a certas necessidades, mas só a essas necessidades’. Nesta Conferência, precisamos deixar claro que queremos uma universalidade que não seja ancorada nesses mínimos”, ressaltou Luciana Jaccoub.

Armando de Negri, do Movimento de Saúde dos Povos, disse em um dos painéis que o desafio é interpretar a seguridade a partir de uma interpretação política dos direitos humanos. “Essa interpretação não nos fala de direitos fracionados, mas de direitos que dependem de uma interação. Portanto, nossa agenda de reivindicações tem que ser sempre compartilhada. O direito à saúde não pode ser desconectado do direito à previdência, por exemplo. Mesmo que cada um de nós seja especialista em alguma área, a luta é conjunta. E essa compreensão articulada dos direitos humanos permite que avancemos em direção a uma resposta também articulada. Se trabalharmos fracionadamente, ao contrário, o resultado é a perda política da nossa intervenção”, observou, lembrando que mesmo no Brasil, em que a seguridade foi pensada como a integração entre saúde, assistência e previdência, ela está organizada de forma fragmentada, sem que os ministérios atuem realmente juntos.

DivulgaçãoQuando à cobertura populacional, um posicionamento quase unânime entre os delegados é o de que os sistemas de seguridades não devem ser baseados apenas na contribuição dos beneficiários, especialmente diante do alto índice de trabalhadores informais ou desempregados em muitos países, que ficam excluídos da proteção social. Foi dito que, embora seja importante haver medidas para garantir o aumento do trabalho formal, é preciso que também se ofereça cobertura a trabalhadores rurais e domésticos, por exemplo.

A proposta é que os sistemas sejam financiados também por impostos e que sejam pensadas reformas tributárias para que a parte mais rica das populações realmente ‘cubra’ a mais pobre. Sonia Fleury disse que, nesse sentido, é preciso reelaborar, em sociedades cada vez mais complexas, a noção de solidariedade. “É a primazia do social, da solidariedade e do princípio de justiça sobre as demais relações”, disse.

A professora Aldaíza Sposati, do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da PUC-SP, observou que não deve haver universalidade somente do ponto de vista do acesso, mas também em relação à equidade das respostas. “Apesar de a condição igualitária ao acesso ser uma questão fundamental, sistemas universais não podem se basear meramente na homogeneidade, porque as necessidades das pessoas são diversas, especialmente em contextos de desigualdade. Não podemos ter um sistema em que, mesmo após receber atenção, o sujeito esteja ainda numa condição inferior ao que seria um patamar de dignidade”, defendeu.

Ela citou o exemplo do Bolsa Família, no Brasil: “Aqui, o teto básico para a entrada no programa é uma renda familiar de R$ 70 per capita. Há famílias que estão tão abaixo desse teto (que já é baixo) que, mesmo depois do benefício, continuam não o alcançando”. Para a professora, não se pode tratar a assistência social como assistencialismo. Isso porque, ao transformar as pessoas em necessitados, não se leva em conta a cidadania – é como se a assistência fosse não um direito, mas uma ‘ajuda’, sobre a qual não se pode reclamar. “A fragmentação da atenção às crianças pelas políticas sociais nos permite mostrar o seguinte: o Bolsa Família transfere em média, por mês, R$ 22 por cada criança dessas famílias, até que elas completem 14 anos. Ao mesmo tempo, pais com renda suficiente para pagarem impostos recebem isenção de R$ 150 por filho, e isso até os 24 anos. Se não olharmos as políticas de isenção junto às de benefício – entendendo que elas também são formas indiretas de benefício por parte do Estado –, não vamos enxergar que os filhos de famílias mais ricas são ainda mais financiados pelo Estado que os de famílias precarizadas. É preciso pensar em acesso a direitos e dignidade, e não em ‘ajuda’”, refletiu a professora.