Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras

SUS em jogo no Congresso Nacional

Câmara aprovou Projeto de Lei que determina o que é gasto em saúde e fixa percentuais mínimos para União, estados e municípios investirem. Agora, o Senado tem a responsabilidade de definir novas fontes de financiamento para o SUS.
Beatriz Salomão - EPSJV/Fiocruz | 31/10/2011 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

 Câmara dos Deputados, setembro de 1993: “Passados já quase cinco anos da vigência da nova Constituição, não se conseguiu reverter o dramático quadro prevalente na saúde. O país continua nas últimas posições mundiais quanto ao seu gasto em saúde” (trecho da proposta de Emenda à Constituição Nº 169, dos deputados Waldir Pires e Eduardo Jorge). Câmara dos Deputados, setembro de 2011: “Para dar conta do novo SUS, precisamos de políticas que garantam investimento crescente na área pública da saúde. Se o Brasil quiser chegar a patamares de financiamento parecidos aos dos seus companheiros sul-americanos é preciso investir mais R$ 45 bilhões na saúde do nosso país” (ministro da Saúde, Alexandre Padilha, durante comissão geral na casa).

Questão em suspenso no Sistema Único de Saúde (SUS) desde a sua criação, o financiamento voltou à pauta política do país, quando, após 11 anos de indefinição, a Câmara avançou em direção à regulamentação da Emenda Constitucional 29 (EC 29), que define os recursos mínimos que União, estados e municípios devem investir, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde. A medida, porém, configura apenas o primeiro passo de um longo caminho a ser traçado para desatar o nó do subfinanciamento da área e garantir um SUS universal.

Publicada no dia 13 de setembro de 2000, a EC 29 definiu que estados e municípios deveriam investir em saúde, respectivamente, 12% e 15% do montante arrecadado através de impostos. No caso da União, ficou determinado que, em 2000, seria aplicado o total empenhado no exercício financeiro de 1999, acrescido de, no mínimo, 5%. De 2001 a 2004, o investimento seria o valor do ano anterior corrigido pela variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB), que equivale à inflação mais o crescimento alcançado pela economia do país. Esses valores deveriam ser aplicados até que uma lei complementar, reavaliada pelo menos a cada cinco anos – mas que até hoje não foi definida – regulamentasse a Emenda.

Depois de três anos tramitando na Câmara, no início da noite do dia 21 de setembro deste ano, deputados, finalmente, concluíram a votação do Projeto de Lei Complementar 306 de 2008 (PL 306/08), elaborado para regulamentar a EC 29. A história, porém, é mais antiga. O projeto original nasceu no Senado, em 2007, de autoria do ex-senador e atual governador do Acre, Tião Viana (PT-AC), com o título de Projeto de Lei do Senado nº 121 (PLS 121/07).

Ao chegar à Câmara, o texto sofreu uma série de modificações, fruto do substitutivo do relator, o deputado Pepe Vargas (PT-RS), da Comissão de Finanças e Tributação. A mais substancial refere-se ao montante aplicado, anualmente, pelo governo federal em ações e serviços públicos de saúde. De acordo com o PLS 121 de Tião Viana, a União deveria investir no setor, no mínimo, 10% de suas receitas correntes brutas . O projeto de Viana, que não contém referência a fontes adicionais, determina o crescimento gradativo deste percentual ao longo de quatro anos: 8,5% em 2008, 9% em 2009, 9,5% em 2010, terminando em 10% este ano.

A Câmara rejeitou a proposta do Senado e, assim, não incrementou os investimentos federais ao SUS, mantendo o previsto na EC 29 (montante do ano anterior acrescido da variação nominal do PIB), medida que a União já cumpre. Se a proposta do Senado já tivesse sido aprovada e sancionada pelo presidente, este ano, os investimentos federais em saúde chegariam a cerca de R$ 100 bilhões, contrastando com os R$ 72 bilhões que configuram o orçamento do Ministério da Saúde para 2011. O emprego de 12% e 15%, respectivamente, para estados e municípios foi mantido pela casa.

A posição adotada pela Câmara vai de encontro ao lema da campanha da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco): “100% SUS, 10% da receita”. Para a vice-presidente da Abrasco, Ligia Bahia, o Brasil está arrecadando mais, porém, subfinanciando a saúde, o que, segundo ela, compromete a universalidade do Sistema. “Em relação aos 10%, poderíamos pensar ‘se a receita ficar pequena, como resolveremos a questão do financiamento?’ Mas é importante lembrar que, neste momento, não vemos perspectiva de retração de receita. Teremos que fazer uma pressão popular muito forte para garantir essa vinculação. Se o SUS continuar com esse financiamento, deixará de ser universal e passará a ser apenas para pobres”, avalia.

Presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), Ana Costa também considera o atual financiamento do SUS insuficiente para um sistema universal e de qualidade. “É esse subfinanciamento que determina que o SUS tenha hoje um conjunto de precariedades e seja excludente. Apesar de ser para todos, hoje é um sistema para uma população que não tem mais para onde correr”, lamenta.

Nova Contribuição

Nos meses que antecederam à votação, o debate na Câmara dos Deputados convergiu para um ponto polêmico: a Contribuição Social para a Saúde (CSS), que, se viabilizada, injetaria recursos extras no setor. Na noite em que os deputados concluíram a aprovação do PL 306/08, este foi o único item abordado, já que o restante do texto já havia sido votado. A votação se concentrou no destaque apresentado pelo deputado Antônio Carlos Magalhães Neto (DEM-BA), que retirava do projeto de Pepe Vargas a definição da base de cálculo da CSS. Por 355 votos a favor, 76 contra e quatro abstenções, o destaque do DEM foi aprovado, impossibilitando a aplicação da CSS. Apesar de os demais detalhes do novo tributo continuarem no texto, ele não poderá ser cobrado. “Nós temos um texto que cria a CSS, temos o texto que define um fator gerador, que é a movimentação financeira, temos o texto que define a alíquota, que é de 0,1%, temos definido quem está isento de pagar, mas nós não temos a base de cálculo, por isso não podemos usar a CSS”, explica Pepe Vargas.

Durante a votação do substitutivo, todas as legendas, com exceção do PT, se manifestaram contra a CSS. Diante do panorama político, o líder do governo, deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP), articulou a base aliada para votar contra a criação do tributo. No dia da votação, ele defendeu, no entanto, a necessidade de uma discussão posterior para que o setor tenha uma nova fonte de financiamento.

Para Pepe, o texto que saiu da Câmara e retornou ao Senado não melhora o atual cenário do financiamento, devido à ausência da fonte adicional. O deputado afirma que, se tivesse sido aprovada, a CSS renderia R$ 19 bilhões por ano para a saúde. Segundo ele, a proposta era uma alíquota de 0,1% sobre movimentações financeiras, ficando isentas pessoas com rendimentos até R$ 3.689 (teto de benefício da Previdência Social). “Isso significa que 95% da população brasileira não pagaria esse tributo. Uma pessoa que ganha R$ 6.689 iria pagar R$ 3 por mês. Estou falando de uma faixa de renda que tem plano privado de saúde e, no ajuste anual do imposto de renda, abate o que gastou com o plano. Eu acho extremamente justo que essa parcela da população contribua de forma solidária com a saúde daqueles que dependem do SUS”, defende.

Quando percebeu que o destaque seria aprovado e a CSS, suspensa, Pepe propôs a criação de um novo texto que identificasse outras fontes para a saúde. “Mas fui voto vencido”, afirma. O deputado ressalta que o DEM apresentou diversos destaques ao substitutivo para inviabilizar a CSS. “Tinha um que retirava a alíquota, um que retirava a base de cálculo, outro que retirava o artigo que permitia criar a CSS. Nós, lá em 2008, conseguimos rejeitar quase todos, mas faltou um, que foi esse votado agora”, declara.

Apesar de defender a contribuição, o deputado reconhece que a medida não resolveria o problema de financiamento do SUS. “Eu nunca fiz o discurso dizendo que a criação da CSS seria a panaceia da saúde. Seria uma fonte a mais, uma melhora”, afirma.

Contrário à criação da CSS neste momento, o médico pediatra e especialista em Saúde Pública, Gilson Carvalho, lembra que, ao longo dos anos, houve redução da participação da União no financiamento do SUS. Ele cita dados do Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS), que mostram que, em 1980, da totalidade dos gastos públicos em saúde, 75% eram da esfera federal, 17,8% da estadual e 7,2% da municipal. Em 1995, o índice mudou, respectivamente, para 63,8%, 18,8% e 17,4%. Em 2008, a União tinha participação em 47,14% dos gastos públicos e estados e municípios ficaram com 25,94% e 26,91% cada. “Defendo que haja percentual da receita da União também no financiamento do SUS. Deve haver simetria com estados e municípios que já fazem isso. Historicamente a receita da União cresce mais do que o PIB. O grande crescimento da arrecadação federal que ocorre há muitos anos – e a consequente disponibilidade de mais recursos para a saúde – consolida a possibilidade da adoção dos 10%, sem a necessidade de criar tributo ou contribuição”, expõe.

Menos R$7 bilhões para o SUS

A Contribuição Social para a Saúde não foi a única mudança feita pela Câmara ao PLS 121/07. Além de não garantir mais recursos para o SUS e, assim, amenizar o problema do subfinanciamento da saúde, o texto que saiu da casa, em setembro, retira do setor cerca de R$ 7 bilhões. Como? Para garantir os 257 votos necessários, em 2008, para a aprovação do projeto, o deputado Pepe Vargas fez uma concessão aos governadores. De acordo com o artigo 6º do substitutivo, ficam excluídos da base de cálculo dos 12% dos recursos empregados pelos estados, anualmente, no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).

“Com a CSS, seriam incorporados R$ 19 bilhões, mas perderíamos R$ 7 bilhões por ano com o que os estados deixariam de pagar. Então, na prática seriam R$ 12 bilhões a mais para a saúde por ano. Mas, como a Câmara rejeitou a criação da CSS, nós estamos sem fonte adicional e com essa perda. Precisamos que o Senado vete a proposta de retirada do Fundeb da base de cálculo”, explica Pepe.

Uma medida que aumenta, de forma tímida, o financiamento do SUS encontra-se nos artigos 3º e 4º do substitutivo de Pepe Vargas. Com o objetivo de coibir a “maquiagem” do orçamento de estados e municípios e impedir que essas esferas usem recursos da saúde para outras áreas, foi acrescentado ao texto a íntegra da resolução nº 322 do Conselho Nacional de Saúde, de 8 de maio de 2003, que lista doze pontos que podem ser considerados gastos em saúde.

Entre as diretrizes, destacam-se: vigilância epidemiológica e controle de doenças, vigilância sanitária, vigilância nutricional, educação em saúde, saúde do trabalhador, atenção à saúde dos povos indígenas, assistência farmacêutica, serviços de saúde penitenciários, atenção especial aos portadores de deficiências e saneamento básico (desde que associado diretamente ao controle de vetores, a ações próprias de pequenas comunidades ou em nível domiciliar, ou aos Distritos Sanitários Especiais Indígenas e outras ações de saneamento a critério do Conselho Nacional de Saúde).

O texto da Câmara exclui do rol de investimentos na área da saúde ações como custeio de merenda escolar, pagamento de aposentadorias e pensões, limpeza urbana e remoção de resíduos sólidos.

No artigo 27, o PL 306/2008 inclui um conjunto de regras para aperfeiçoar o SIOPS, para conferir mais transparência ao setor. Foram incluídas sete atribuições, entre elas, a realização de cálculo automático dos percentuais mínimos aplicados em ações e serviços públicos de saúde, obrigatoriedade da inserção e atualização permanente de dados pela União, estados e municípios e disponibilidade dos dados à população.

Um levantamento do Ministério da Saúde divulgado em setembro aponta que, em 2009, dez estados não investiram o mínimo de 12% das receitas em saúde e, juntos, deixaram de aplicar cerca de R$ 2 bilhões no setor. Na lanterna do ranking, o Rio Grande do Sul destinou para a área apenas 5% de sua receita. Em seguida, vem Goiás, que investiu 10,25%. São Paulo destinou 11,57%, porém, como o estado é campeão em arrecadação nacional, o percentual que falta para atingir os 12% representa um desfalque de R$ 317 milhões para a saúde.

Segundo a análise do MS, Goiás e São Paulo, além de Pará, Minas Gerais, Maranhão e Rio de Janeiro constam no levantamento porque parte dos gastos declarados como sendo em saúde não podem ser considerados como investimentos no setor.

Financiamento sem resposta

“No eixo da definição do que são ações e serviços em saúde, o texto saiu ótimo da Câmara. Já no eixo do financiamento, o resultado foi ruim. Na Câmara, retiraram a questão dos 10% da União e propuseram a forma como o financiamento é feito hoje, mais a CSS. Acontece que a CSS caiu. E ainda tem um agravante sério que é a retirada de R$ 7 bilhões da saúde”, avalia  o deputado federal Darcísio Perondi (PMDB-RS),  também presidente da Frente Parlamentar da Saúde.

Contrário à criação da CSS, Perondi defende a proposta original de Tião Viana para o financiamento da União. Ele lembra que, de acordo com relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), divulgado em maio, o Brasil investe menos em saúde do que a média dos países africanos. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam que, no Brasil, 45,7% dos investimentos em saúde são públicos, índice menor do que o de países como Colômbia (84,2%), Argentina (66,4%), Bolívia (65,1%) e Chile (47,3%). Na América do Sul, o país só está à frente do Paraguai, onde 42,9% são investimentos públicos.

De acordo com o deputado, nos oito primeiros meses de 2011, a arrecadação federal cresceu 17% em relação ao mesmo período do ano passado. Para ele, o aumento de impostos sobre cigarro e bebidas alcoólicas, além da regulamentação de bingos e cassinos, seriam mais uma opção para alocar novos recursos ao SUS. “Só Cuba e Brasil não têm jogo legalizado no Ocidente. Outra alternativa é o governo acabar com a dedução no Imposto de Renda para quem possui plano privado de saúde”, opina.

Para resolver o subfinanciamento do SUS, o deputado defende ainda melhorias no processo de gestão, mas reconhece que este não é o maior problema do sistema. “O SUS faz milagre com o dinheiro que tem. Melhorando a gestão o sistema melhora, mas o problema maior é o desfinanciamento. Precisamos de recursos com melhor gestão”, aponta.

Defensor da ideia de que o SUS corre o risco de “morrer de inanição” por falta de mais recursos, o presidente da Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara, Saraiva Felipe (PMDB-MG), comemora o fato de o financiamento em saúde ter voltado ao centro das discussões políticas. O deputado, que foi ministro da Saúde entre 2005 e 2006, lembra que o Brasil ainda gasta pouco no setor para oferecer desde programas como imunização até transplantes. “O que investimos por ano por habitante não cobre nem um plano de saúde de uma Santa Casa do interior de Minas Gerais durante um mês, o que dirá um sistema universal que oferece desde promoção até atendimento de CTI”, argumenta.

De acordo com o pesquisador Nelson Rodrigues dos Santos, o Nelsão, a média de investimento em países com bons sistemas públicos de saúde é de US$ 2 mil dólares por habitante ao ano. No Brasil, o índice é US$ 340 por habitante/ano. “Se nós aprovarmos os 10% da receita corrente bruta da União, esses 340 dólares sobem para 450. Ou seja, ainda muito abaixo dos dois mil dólares públicos dos outros países”, declara.

Para Saraiva, existem “dois SUS”. O primeiro abrange iniciativas exitosas, como os programas de imunização e de combate a doenças sexualmente transmissíveis, como a AIDS, além do tabagismo. O outro corresponde à parte do sistema menos eficiente, como atendimento médico hospitalar e de urgência e emergência. “Precisamos discutir mais financiamentos para o SUS. Com os recursos que temos, será difícil manter o SUS constitucional, ou seja, a oferta de serviço universalizada, equânime, integralizada”, frisa.

O ex-senador Tião Viana reconhece que o PLS 121/07, apresentado no final de 2002 e votado em 2007, no Senado, foi reflexo do subfinanciamento no setor de saúde pública do Brasil. Ele ressalta que, na época em que foi apresentada a proposta de vincular 10% das receitas correntes brutas da União para a saúde, o orçamento contava com a Contribuição Provisória Sobre Movimentação Financeira (CPMF), extinta em 2007. “Estava contando com os recursos da CPMF quando propus os 10% das receitas da União. Quando a CPMF foi desconstituída, criou-se um impasse que foi a falta de uma fonte de financiamento para o meu projeto. Quando fomos votar a prorrogação da contribuição, em 2007, eu fui o principal apresentador da tese de que o presidente Lula vincularia todos os recursos da contribuição para a saúde. Então, teríamos recursos suficientes para trabalhar”, justifica.

Em relação à votação do projeto no Senado, Tião se diz “solidário ao governo” e ressalta a necessidade de haver fonte de recursos para a aplicação do Projeto de Lei de sua autoria. “A receita atual não é suficiente para o governo federal aplicar mais em saúde. Da forma como é hoje [investimento do ano anterior acrescido da variação nominal do PIB] também é insuficiente. Então, precisaríamos ter uma fonte assegurada para não trazer um desequilíbrio orçamentário. Continuo defendendo os 10%, porém com uma fonte adicional, seja por contribuição, por imposto, isso é indiferente para mim. Mas agora é com o Senado”, afirma.

Novo capítulo no Senado

No dia 28 de setembro, o PL 306/2008, retornou ao Senado, onde, novamente, tramita como PLS 121/2007. O texto está na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) e, até o dia 18 de outubro, ainda não havia sido designado o relator do projeto. Agora, a casa será palco de duas discussões centrais no contexto da regulamentação da EC 29 e do financiamento do SUS: a vinculação dos 10% das receitas da União para a saúde e o artigo que retira recursos do Fundeb da base de cálculo dos estados.

De acordo com Darcísio Perondi, são quatro hipóteses. O Senado pode acolher integralmente o projeto da Câmara e, assim, automaticamente, negar o seu. Neste caso, o texto da Câmara vai à sanção presidencial. A casa pode também rejeitar o PL 306/2008 e encaminhar o texto de Tião Viana à sanção, sem necessidade de nova votação. As outras possibilidades são acolher o projeto da Câmara e fazer supressões (desde de que o sentido do texto não fique prejudicado) ou mesclar os dois projetos, artigo a artigo, mantendo a coerência na junção.

 Ministro da Saúde de 2003 a 2005, o senador Humberto Costa (PT-PE) revela que tentará manter, no Senado, o projeto vindo da Câmara, ao invés da proposta original de Tião Viana. “Hoje, infelizmente, não há como destinar 10% das receitas da União para a saúde, sem deixar outras áreas importantes desassistidas”. Costa vai defender ainda a retirada do artigo que trata do Fundeb e, assim, evitar perdas no investimento dos estados. Ainda de acordo com ele, o artigo que define o que são gastos em saúde deve permanecer.

Em relação à CSS, o senador explica que não vai haver modificações no texto da Câmara, porque o Senado não pode definir base de cálculo ou criar nova alíquota. O ex-ministro é favorável a medidas como aumento de impostos sobre álcool e tabaco, maior repasse dos recursos do seguro DPVAT (Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre) à área da saúde e taxação de grandes fortunas. “Infelizmente, nós temos uma ação limitada. Não é possível fazer nenhum acréscimo ao texto vindo da Câmara. Podemos fazer supressões, porque a votação pode ser feita artigo a artigo. Vamos manter a CSS no texto, mas não poderíamos acrescentar a definição de uma base de cálculo, logo ela continua sem ser aplicada”, explica.

Visão dos gestores

Saindo da esfera do Congresso Nacional, o que pensam Ministério da Saúde e gestores sobre a regulamentação da Emenda 29? Coordenador da Comissão de Orçamento e Financiamento (Cofin) do Conselho Nacional de Saúde, Fernando Luiz Eliotério, considera que a forma como o projeto saiu da Câmara dos Deputados, com a Resolução 322 do CNS, impacta apenas nos estados que não cumprem os 12%. Eliotério cita o caso de Minas Gerais, onde, de acordo com ele, gastos com Corpo de Bombeiros e Companhia de Água são considerados ações e serviços de saúde. “O projeto só está regulando a questão dos estados que não cumpriam o determinado na Emenda 29. É insuficiente para resolver o problema de financiamento do SUS. Há pessoas que falam que o problema é de gestão, mas boa gestão só se faz com recursos financeiros”, declara.

Antonio Carlos Figueiredo Nardi, presidente do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) defende a vinculação dos 10% da receita da União e alerta que, a cada ano, municípios empregam mais recursos no SUS. Segundo ele, em 2010, foram cerca de R$ 10 bilhões a mais, em comparação com o ano anterior. “As capitais, praticamente todas colocam, no mínimo, os 15% previstos na Emenda 29. Uma única capital que não atingiu o mínimo colocou em saúde 14,7%. A média de gasto com ações e serviços de saúde foi de 19,35%, ou seja, 29% a mais que o mínimo legal”, declara.

Para Beatriz Dobashi, presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), a vinculação dos 10% também seria uma forma de desafogar os estados. “O aporte maior do Ministério da Saúde permitiria abertura de novos serviços e aumento de oferta dos serviços já existentes nos estados”, defende.

Fausto Pereira dos Santos, assessor especial do gabinete do ministro Alexandre Padilha, afirma que, caso o PLS 121/07 seja aprovado, a proposta de vincular 10% das receitas correntes brutas da União deverá ser analisada pela área econômica da Presidência e pela Casa Civil. Ele considera a queda da CSS e a ausência de fonte adicional pontos negativos do projeto que saiu da Câmara, porque impossibilitam o incremento do orçamento federal. A expectativa do Ministério da Saúde, segundo Fausto, é a correção do artigo do Fundeb no Senado. “O governo tem reiterado que não existe espaço fiscal, hoje, para o retorno da proposta que tenta vincular 10% das receitas da União. Esse é um debate em aberto, mas a Saúde precisa de mais recursos”, afirma.

Pesquisadores da área da saúde, porém, defendem que o subfinanciamento do SUS não passa por falta de recursos, mas, sim, por escolhas governamentais que não priorizam o SUS. Segundo Nelsão, 44,9% do Orçamento Geral da União (OGU) de 2010 – que configura toda a arrecadação federal, somando os impostos e as contribuições sociais – foram gastos com a dívida pública 44,9%, o que corresponde a R$ 665 bilhões e, destes, mais de R$ 200 bilhões foram direcionados apenas para o pagamento dos juros. Dos 55% restantes, 22% são da Previdência Social e 9,2% das transferências obrigatórias constitucionais da União para estados e municípios.

Nelsão acrescenta que os 23,7% do OGU do ano passado foram divididos em diversos setores, entre eles a saúde. “A saúde está com 3,9%, educação 2,8%, assistência social 2,7%, transporte 0,7%, segurança pública 0,5% e energia e saneamento apenas com 0,04% cada”, aponta. “Quando discutem o orçamento da União com saúde, não analisam o OGU como um todo e só pegam o resto do resto. Aí eles dizem que a saúde está explorando os outros setores e que é a área que mais recebe verba”, conclui.

Ligia Bahia lista ações do governo que poderiam incrementar o orçamento da saúde. Para ela, não é suficiente aumentar a receita pública para a área, sendo necessário retirar subsídio no setor privado. Ligia defende a mudança progressiva da restituição do imposto de renda do valor gasto com planos de saúde, além da suspensão do pagamento a hospitais filantrópicos que não atendem 100% ao SUS. “Precisamos rever a questão de planos de saúde pagos para funcionários públicos com recursos públicos. A medida de suspender o abatimento do imposto de renda iria impactar no bolso de quem paga plano de saúde, por isso precisa ser progressiva. Vamos ter que retirar esses subsídios públicos em prode uma política que seja universal. O SUS precisa ser prioridade”, defende.

O assessor do ministro ressalta, porém, que saúde tem sido uma das áreas prioritárias da gestão Dilma Rousseff. Ele ressalta que o MS tem o maior orçamento da Esplanada dos Ministérios e que a União cumpre, integralmente, a Emenda 29. “A restrição orçamentária que foi feita este ano, com diversos cortes, não atingiu a área da saúde”, diz Fausto.

Ele cita ainda medidas do MS para aperfeiçoar o processo de gestão e evitar desperdício de verbas, como o decreto Nº 7.507, de 27 de junho. Elaborado para combater fraudes, o instrumento disciplina a movimentação financeira dos recursos transferidos por órgãos e entidades da administração pública federal a estados e municípios e estabelece critérios como restrição dos saques na ‘boca do caixa’. Já o decreto nº 7.508 regulamenta a Lei Orgânica da Saúde (8.080, de 1990) e estabelece métodos como o Contrato Organizativo da Ação Pública da Saúde (Coap), Mapa da Saúde e ratifica a importância de outros mecanismos já consolidados, como as regiões de saúde e a prioridade da atenção primária como porta de entrada do SUS. “Esse decreto estabelece uma série de mecanismos que vão aprimorar a relação entre os entes federativos. Consolidamos a celebração de um contrato entre União, estados e municípios onde as responsabilidades, as metas estarão dentro de um instrumento que pode ser monitorado, que vai estar presente dentro de um relatório de gestão, que vai poder ser acompanhado pela sociedade”, explica Fausto.

Idas e vindas da EC 29

 Não deve causar espanto o fato de a regulamentação da EC 29 se prolongar por mais de cinco anos. O contexto de sua criação não foi diferente. Da primeira proposta de emenda à Constituição, elaborada em 1993, até a aprovação do texto final, que regula os gastos em saúde, passaram-se sete anos, marcados por intensa negociação. Em maio de 1993, foi apresentada a Proposta de Emenda à Constituição 157 (PEC 157), de Chafic Farhat (PDS-SP), que propunha investimentos federais correspondentes a 18% da receita de impostos e contribuições. Em julho do mesmo ano, os deputados Waldir Pires e Eduardo Jorge vieram com a PEC 169 que determinava que a União investisse 30% das receitas de contribuições sociais que compunham o orçamento da Seguridade Social e 10% da receita arrecadada com impostos. A proposta votada, porém, veio em 1995 (PEC 82), de autoria do deputado Carlos Mosconi. Segundo o texto, recursos provenientes das contribuições dos empregadores sobre o faturamento e o lucro seriam destinados ao SUS. “Meu objetivo foi recuperar os recursos que eram utilizados pelo antigo Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) no SUS. A contribuição que eu sugeri havia sido extinta pelo Supremo com o fim do Inamps”, explica Mosconi.

Não há dúvida de que a redação final da Emenda Constitucional 29 difere das propostas apresentadas. “Se eu tivesse a cabeça que eu tenho hoje, eu teria brigado de forma diferente”. Essa é a avaliação de Darcísio Perondi. Para ele, faltou aos parlamentarem visão de macroeconomia e, à época, a vinculação ao PIB nominal foi encarada como um avanço para o SUS. “Eu não tinha a visão que tenho hoje sobre financiamento. O que foi votado não resolveu”, reconhece.

Nelsão lembra que o Congresso Nacional chegou a aprovar a destinação de 30% do orçamento da Seguridade Social para a saúde, entretanto, a medida nunca foi cumprida pelo Executivo: “A PEC 169 surgiu porque constatamos que não adiantava mais brigar pelos 30%. Fomos perdedores. Outra puxada de tapete para o SUS é a regulamentação da EC 29. Na última hora, o governo federal se nega a contribuir com porcentagem do orçamento dele e sobrecarrega estados e municípios”.

Primavera da saúde

 Diante do panorama de embates, flores para conscientizar sobre a importância do SUS. Formado por militantes da área, acadêmicos, parlamentares e membros dos conselhos nacionais de Saúde e de Medicina, o movimento Primavera da Saúde pretende mobilizar população e governo a favor da regulamentação da EC 29 e de mais recursos para a saúde.

No dia 27 de setembro, milhares de pessoas se reuniram em frente ao Congresso Nacional e, em um ato simbólico, caminharam com flores até o Palácio do Planalto. Manifestantes e parlamentares se reuniram com o presidente do Senado José Sarney, para pedir que a regulamentação da Emenda 29 seja colocada em regime de urgência de votação na casa, e com a ministra de Relações Institucionais, Ideli Salvatti.

ETSUS

Para conferir ao profissional noções sobre financiamento do SUS e gestão, as Escolas Técnicas do SUS abordam a temática em cursos técnicos e qualificações. A Escola Técnica em Saúde Maria Moreira da Rocha, no Acre, pretende abrir, no próximo ano, qualificação em Gerência de Saúde para técnicos em administração que atuam nas secretarias municipais de Saúde. Com 400 horas e 25 vagas, o curso abordará temas como planejamento, regulação, financiamento e processos de licitação. As aulas serão no modelo concentração e dispersão, na escola e nas secretarias. Segundo Anna Lúcia Leandro de Abreu, coordenadora da escola, o currículo inclui ainda redação oficial e informática básica. “O pedido para abrir o curso veio das secretarias municipais de saúde e elaboramos um voltado para o trabalhador que está no meio, ou seja, não é da ponta nem é da gestão. Abriremos uma turma-piloto para aqueles que atuam no setor administrativo e precisam conhecer minimamente processos de gestão do SUS”, explica.

De acordo com a coordenadora, questões relativas a financiamento do SUS são abordadas no curso técnico em Vigilância em Saúde. O tema tem 10 horas dentro de um eixo de cem horas. “Convidamos um contador para ir até a escola para discutir o tema com os alunos”, afirma. A ETSUS Sergipe também aborda o tema no curso Técnico de Vigilância em Saúde, em atividades teóricas e práticas. Segundo Paula Aparecida de Sousa, coordenadora técnica do curso, o âmbito ‘teórico’ do financiamento é abordado por meio de publicações do Cebes e de textos que tratam da história do SUS e da regulamentação da Emenda 29. Já na atividade prática, alunos entrevistam gestores municipais com o objetivo de analisar, entre outros aspectos, a forma como recursos públicos são gastos e a atribuição de cada esfera. O tema é trabalhado em 20 horas. “Debatemos as propostas de financiamento para o SUS e como evitar desperdícios no setor. Na parte prática, alunos investigam o que é feito com os recursos. A maioria deles desconhecia o tema antes do curso, mas, depois, apresentam domínio do assunto”, diz.

Em 2008, a Escola de Saúde Pública de Minas Gerais (ESP-MG) realizou o curso de Gestão do SUS Municipal, voltado para profissionais das secretarias municipais de Saúde. Foram três módulos: Gestão Financeira, Aspectos Jurídicos e Auditoria do SUS Municipal, com 16 horas cada um. Participaram cerca de dois mil profissionais, entre tutores e facilitadores.

Já a Escola Técnica de Saúde do Centro de Ensino Médio e Fundamental da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes-MG), aborda o financiamento durante o curso de qualificação dos agentes comunitários de saúde. A escola convida um profissional com experiência no assunto para uma palestra.