Em 2003, depois de uma apuração nos estados e municípios, o Ministério Público do Trabalho (MPT) questionou formalmente o vínculo terceirizado dos agentes comunitários de saúde. E a alegação era que, como trabalhadores “finalísticos” do Sistema Único de Saúde (SUS), os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) deveriam ser servidores públicos. Esse foi o ponto de partida para o Termo de Ajustamento de Conduta que pressionou o Ministério da Saúde e estimulou a luta desses profissionais, resultando na Lei 11.350/2006, que estabelece, entre outras coisas, que eles devem ter vínculo direto com o município ou estado que os contrata. Esse exemplo concreto mostra a importância que a diferenciação entre atividade-fim e atividade-meio já teve para frear a terceirização em atividades importantes no campo da saúde pública no Brasil.
É exatamente o fim dessa distinção que está em jogo no projeto de Lei 4.330/2004, que regulamenta a terceirização do trabalho e teve seu texto-base aprovado na Câmara dos Deputados, provocando reações contrárias da maioria das centrais sindicais e movimentos sociais organizados. Na verdade, na versão atual, as “disposições” do PL não se aplicam à administração pública direta, que seria o caso dos ACS no processo descrito na abertura desta matéria. O exemplo vale, no entanto, para mostrar a importância das discussões em torno da concepção que embasa o projeto.
Nas últimas movimentações parlamentares em torno da proposta, que aconteceram no dia 14 de abril, o plenário da Câmara aprovou uma emenda que exclui também as empresas públicas e de economia mista da possibilidade de terceirizar trabalhadores que desempenhem atividade-fim, o que faria com que o projeto só valesse para a iniciativa privada. Mas nem por isso o PL, que está sendo considerado um ataque aos direitos dos trabalhadores, deixa de ser uma questão para o campo da saúde pública. O Portal EPSJV/Fiocruz entrou em contato com a Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação em Saúde (SGTES) do Ministério da Saúde e com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), além de pesquisadores do tema, mas não localizou números sistematizados sobre o quantitativo de terceirizados em atuação na área da saúde no Brasil.
Já terceirizou?
Na avaliação de Francisco Batista Junior, que integra a Comissão Intersetorial de Recursos Humanos (CIRH) do Conselho Nacional de Saúde, do qual ele também já foi presidente, é preciso reconhecer que, na saúde pública, boa parte da chamada área-fim já é terceirizada, na medida em que um número crescente de trabalhadores que prestam serviço ao Estado são contratados por Organizações Sociais (OS), fundações públicas de direito privado, fundações de apoio, e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips). As OSs, inclusive, acabam de ser consideradas constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, que julgou ontem uma Ação Direta de Inconstitucionalidade apresentada em 1998. A diferença é que essas são entidades sem fins lucrativos que são credenciadas sem licitação para assumir a gestão completa de hospitais e unidades de saúde, o que inclui a contratação e gestão de pessoal. “Hoje já é terceirizado, mas não tem sustentação legal”, diz, alegando que, exatamente por isso, às vezes o Ministério Público do Trabalho consegue vitórias na luta pela desprecarização dos trabalhadores e melhoria dos serviços. “O que o PMDB quer é fazer isso com as empresas privadas porque com as públicas ele já está fazendo”, diz o vereador Paulo Pinheiro (Psol-RJ), referindo-se a cidades como o Rio de Janeiro, que, administradas pelo mesmo partido que tem defendido o PL na Câmara, inclusive através do presidente da Casa, Eduardo Cunha, são inteiramente “contaminadas” pelas OSs. “O trabalhador da saúde virou custeio”, lamenta.
A emenda que excluiu as empresas públicas e de economia mista do projeto foi apresentada pelo PSDB, partido que governa o estado de São Paulo, tomado como referência de gestão por meio de Organizações Sociais, que atuam na saúde e na cultura. O argumento da emenda era garantir que o concurso público continuasse a ser a porta de entrada de trabalhadores nessas instituições de modo a evitar “apadrinhamentos”, o que de fato é uma das preocupações anunciadas pelos movimentos sociais que se opõem à proposta. A questão é que, segundo Paulo Pinheiro, o processo de ‘terceirização’ que já está em curso na saúde através dessas entidades tem sido um prato cheio para processos de fisiologismo no setor público. “As OSs fazem processo seletivo, sem que haja qualquer tipo de controle. Hoje, vemos inclusive parte dos representantes do controle social na saúde ser capturada por essas organizações por meio da oferta de empregos”, denuncia. Para o ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde, é importante atentar para os objetivos distintos da terceirização no setor privado e no serviço público. “O empresário do setor privado terceiriza com a finalidade de ter um custo menor. No setor público, tem dois elementos a mais. Um é a indicação por fisiologismo: eu conheço um monte de pessoas que para conseguir emprego naquela empresa que terceiriza a mão de obra de um hospital teve que falar com alguém da secretaria, teve indicação. É assim que a roda gira nesse perfil patrimonialista do Estado brasileiro. E o outro aspecto, que nós já denunciamos em vários lugares do Brasil, é que o Estado paga a essas empresas um valor bastante considerável, que daria para pagar quatro vezes o que o trabalhador ganha. Ele recebe 25%, até 40% daquilo que o ente público paga e o restante é dividido pelos interessados na história, caixa 2 de campanhas eleitorais, etc”, diz.
Os prejuízos que as centrais sindicais têm apontado que a terceirização traz para o trabalhador também estão, na avaliação do vereador, presentes nesse novo modelo de gestão que a saúde já adota em cerca de 1.400 municípios de 25 estados. “Se o contrato não for renovado, por exemplo, todos são demitidos. Além disso, essas entidades atrasam salários e, aqui no Rio, já denunciamos ao Ministério Público do Trabalho que várias OSs não recolhem os encargos trabalhistas”, diz. Existe, no entanto, uma diferença importante: se, de acordo com o relatório do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), os terceirizados ganham em média 25% a menos do que os trabalhadores com vínculo direto, no caso dessas entidades a situação se inverte já que, normalmente os salários dos profissionais de saúde contratados por OSs são mais altos. E isso tem alterado inclusive a proporção de servidores e trabalhadores contratados nas instituições públicas de saúde. Segundo Paulo Pinheiro, o Rio de Janeiro, por exemplo, pulou de 2 mil cooperativados prestando serviços ao governo municipal em 2009, quando a Câmara de Vereadores ainda não havia autorizado a habilitação de OSs, para 20 mil contratados por esse meio em 2013. No mesmo período, de acordo com o vereador, o número de servidores estatutários caiu de 29 mil para 24 mil. Outro problema, apontado por Batista Junior, é que esse contingente de trabalhadores com vínculos mais frágeis, terceirizados ou contratados por entidades como as OSs, estão sempre submetidos ao risco de assédio moral. “Terceirizado só conversa com representante sindical escondido porque tem medo”, exemplifica.
Outro fenômeno que as centrais sindicais tentam barrar no PL da terceirização e que já acontece nessas estratégias de gestão indireta dos serviços de saúde é a quarteirização. Em outro exemplo do Rio, Paulo Pinheiro conta que o Instituto Unir de Saúde contratou uma outra empresa de home care para desenvolver a meta relativa ao Programa de Atenção Domiciliar ao Idoso (Padi), que consta do contrato de gestão que essa Organização Social assinou com a prefeitura.
Discutindo a “área-meio”
Mas a polêmica que se criou em torno do PL 4330 também traz a oportunidade de se discutir a terceirização da chamada atividade-meio, que já é permitida no Brasil, tanto no setor privado quanto no serviço público. Para Batista Junior, essa definição precisa ser desnaturalizada. “Não cabe esse conceito de área-meio como se fosse algo à margem daquele setor. Isso vale para todos os setores, mas na saúde é ainda mais grave por envolver a possibilidade direta de morte”, questiona, exemplificando: “Por que há tanta infecção hospitalar no serviço público no Brasil?”. E explica: “Eu não consigo entender, por exemplo, que um auxiliar de serviços gerais do hospital em que eu trabalho, que é de referência em doenças contagiosas, não seja considerado um trabalhador da saúde. Porque para exercer a função de limpeza, ele tem que aprender o que é aquele serviço, tem que saber sobre infecção hospitalar, tem que entender os riscos de comprometimento da saúde do paciente e da sua própria. O profissional não é contratado como trabalhador da saúde e não é devidamente qualificado para isso. São apenas colocados lá para fazer a limpeza. Então, é obvio que isso pode significar concretamente um prejuízo na qualidade do serviço”.