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Trabalho Escravo

Abolida oficialmente em 1888, escravidão vitima milhares de trabalhadores no Brasil e configura-se como instrumento do capitalismo contemporâneo
Leila Leal - EPSJV/Fiocruz | 01/03/2010 00h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h44
Foto: Flávio Condé

“Aconteceu da seguinte forma: os trabalhadores estavam aqui no Piauí trabalhando nas roças, com poucas condições, sem arrumar quase nada. Aí chegou um moço, o chamado ‘gato’, e perguntou se queriam ir trabalhar no Pará. Disse que lá iam ganhar muito bem, praticamente em um mês o que ganhavam aqui em um ano, que pagaria a passagem deles e deixaria um dinheiro aqui para a família ir comprando a alimentação. Na mesma hora os trabalhadores se animaram, e um foi convidando o outro. Quando chegaram no Pará, entraram na mata sem saber pra onde iam. A mata foi ficando cada vez mais fechada e, de repente, disseram que era pra eles fazerem suas barracas. O barraco foi feito por eles mesmos, era uma barraca de lona. Os trabalhadores não tinham alojamento, compravam a mercadoria toda no comércio do próprio patrão, a um preço bem alto, e o que precisava de ferramenta de trabalho, como facão, machado, eles pegavam lá e tinham que pagar depois, também a preços altos. Quando alguém adoecia, pegava o remédio com o patrão e depois tinha que pagar. Quando fechou o primeiro mês e os trabalhadores foram ver quanto tinham para receber, se depararam com a situação de que não tinham nada e, pelo contrário, estavam devendo o patrão e não podiam ir embora enquanto não pagassem”.

O depoimento é de Francisco José dos Santos Oliveira, o Chiquinho, presidente da Associação do Assentamento Nova Conquista. O assentamento, que fica no município de Monsenhor Gil, no Piauí, reúne trabalhadores libertados dessa e outras situações de escravidão contemporânea. A história, muito mais comum do que se imagina, poderia ilustrar outros milhares de casos nos quais trabalhadores de todo o Brasil são aliciados em regiões pobres para prestar serviços em condições análogas à escravidão. No entanto, o reconhecimento do grande número de casos semelhantes ao do depoimento acima, apesar de evidenciar a extensão do problema no Brasil, não é suficiente para compreendê-lo por completo. Há outras formas de trabalho escravo contemporâneo, utilizadas em diferentes ramos do sistema produtivo brasileiro, inclusive em grandes centros urbanos. Além disso, a exploração não é utilizada apenas para fins econômicos: a chaga do trabalho escravo dos dias de hoje incorpora também casos de exploração sexual, sobretudo de mulheres e crianças.

Trabalho exaustivo, degradante e cerceamento de liberdade: faces da escravidão contemporânea

Mas, afinal: se a escravidão oficial no Brasil - o direito de propriedade de uma pessoa sobre a outra - foi abolida em 13 de maio de 1888, o que é o trabalho escravo utilizado nos dias de hoje, mais de 120 anos depois da assinatura da Lei Áurea? Atualmente, o Código Penal brasileiro especifica o crime de ‘sujeitar alguém a condição análoga à de escravo’, que acontece quando o trabalhador é submetido a trabalhos forçados ou jornada exaustiva, a condições degradantes de trabalho ou tem sua liberdade cerceada. O texto foi modificado em 2003, justamente com a preocupação de descrever as formas de utilização do trabalho escravo na atualidade. Até então, o art.149 do Código Penal apenas citava o crime e estipulava a pena para aqueles que o cometessem (ver Box na PÁGINA TAL).

De acordo com Leonardo Sakamoto, coordenador da ONG Repórter Brasil, que atua no combate ao trabalho escravo, integrante da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) e autor da tese ‘A reinvenção do trabalho escravo no Brasil contemporâneo’, a mudança na legislação corresponde, além da busca por uma definição mais precisa, também a uma necessária ampliação do conceito de trabalho escravo diante da realidade que começava a ser encontrada no campo e na cidade: “Até 2003, o trabalho escravo se caracterizava pela soma de trabalho degradante com cerceamento da liberdade. Hoje, é trabalho escravo no Brasil quando há o cerceamento de liberdade no trabalho, o trabalho degradante por si só ou o trabalho exaustivo. É importante entender que aquele trabalho degradante do qual se falava até 2003 é diferente do que está presente hoje no Código Penal. Antes, ele significava trabalho precário. Agora, é aquele que separa o ser humano de sua dignidade: o trabalhador pode até ir embora da fazenda, mas é tratado como um animal, sub-humano, um instrumento de trabalho. Em segundo lugar, vem o cerceamento da liberdade por si só, que envolve as dívidas impagáveis que os contratadores de mão-de-obra forçam os trabalhadores a contrair, as ameaças de agressão física e outras. E há a situação de trabalho exaustivo, na qual o trabalhador é levado diariamente até o limite das suas capacidades. Essas três situações, juntas ou separadas, caracterizam trabalho escravo”, explica.

No Brasil, a maioria dos casos de trabalho escravo contemporâneo se concentra na zona rural e em muito se assemelha à história contada por Chiquinho, que abre esta reportagem. Os trabalhadores das áreas mais pobres do país, carentes de infraestrutura e políticas sociais de trabalho, acesso à terra, educação, moradia, saúde e outras, tornam-se vulneráveis ao aliciamento operado pelos chamados ‘gatos’. Iludidos por falsas promessas e movidos, sobretudo, pela necessidade material, migram para áreas distantes de suas casas e famílias e são escravizados em atividades não mecanizadas do setor produtivo. Justamente por isso, a maioria dos trabalhadores libertados de escravidão são homens adultos, aptos a praticar atividades que envolvem o uso da força física.

No caso da pecuária, uma das atividades que mais concentra casos de trabalho escravo, os trabalhadores realizam tarefas de derrubada da mata para ampliação ou instalação de pastagem para os animais e, também, o chamado ‘roço de juquira’ - a retirada de plantas indesejáveis como arbustos e ervas daninhas. No meio rural, a exploração de mão-de-obra análoga à escravidão também acontece comumente em carvoarias, para produção de matéria-prima para a indústria siderúrgica, e no corte de cana-de-açúcar. Muitos trabalhadores, como no caso relatado por Chiquinho, são presos ao trabalho através da contração de dívidas e da vigilância ostensiva operada por seguranças armados. Outros, sobretudo aqueles que atuam no corte de cana, sofrem com jornadas de trabalho penosas e exaustivas. Em quase todos os casos, os trabalhadores recebem tratamento sub-humano e, como demonstram relatos divulgados pela ONG Repórter Brasil, têm vergonha de voltar para suas casas sem ter o que oferecer às suas famílias. Os relatos apontam ainda para a precariedade das condições de saúde desses trabalhadores. Nas tarefas de ampliação da fronteira agrícola (avanço das plantações e pastagens sobre a mata virgem), são comuns os casos de malária, febre amarela e tuberculose entre os trabalhadores. Eles sofrem também de desnutrição e contaminação por água e comida estragada, diante da falta de saneamento básico e alimentação adequada. A saúde dos trabalhadores é, ainda, afetada por maus tratos e violência, aos quais são frequentemente submetidos.

Como destaca Frei Xavier Plassat, coordenador da Campanha Nacional de Combate ao Trabalho Escravo da Comissão Pastoral da Terra (CPT), os trabalhadores aliciados tornam-se vulneráveis não apenas por sua situação de precariedade material, mas também por serem transportados para longe de seus ciclos sociais: “No caso dos canaviais, por exemplo, as tarefas do corte da cana não são mais aceitas pela população local. Os donos desses canaviais são obrigados a ir a milhares de quilômetros contratar uma população em situação de carência, que aceita todo e qualquer serviço. No Paraná, os trabalhadores escravizados são do Vale do Jequitinhonha; em São Paulo, são da Bahia e de Alagoas; no Mato Grosso, são do Piauí; em Goiás, são do Maranhão, e por aí vai. O escravo é sempre alguém que foi procurado longe e que, quando trabalha, está longe de sua comunidade de origem, de seus laços sociais, totalmente desprotegido. Essa vulnerabilidade é aproveitada para obrigá-lo a fazer tudo o que o patrão quer”, descreve.

Mas o cenário da escravidão contemporânea no Brasil não para por aí. Presente em toda a cadeia produtiva, o trabalho escravo é cada vez mais constatado também nos grandes centros urbanos. Segundo documento produzido pela ONG Repórter Brasil para a Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), os casos mais comuns envolvem imigrantes, sobretudo bolivianos, que são explorados em confecções de tecidos na Grande São Paulo e muitas vezes são obrigados a prestar serviços forçados sob ameaça de denúncia para a deportação. E Leonardo Sakamoto aponta que o problema é ainda mais amplo: “Há outros casos de trabalho escravo urbano, muitos deles na construção civil e principalmente em construção de hidrelétricas. Já foi encontrado trabalho escravo também em ferros-velhos, e tudo isso só para fins de exploração econômica. A OIT separa o trabalho escravo para fins de exploração econômica – subdivido em rural e urbano – e fins de exploração sexual, o que abre um campo gigantesco. Há milhares de crianças e mulheres brasileiras que são forçadas a se prostituir dentro e fora do Brasil. É claro que, novamente, a pobreza aparece como elemento que está na origem de tudo isso, mesmo na questão sexual”, avalia.

"A palavra escravidão remete a uma forma arcaica, mas a escravidão moderna acontece em contexto de tecnologia avançada, e isso é chocante. Há ração balanceada para o gado e os trabalhadores só comem carne se algum gado morrer por doença” (Frei Xavier Plassat)

Panorama

Em 2005, a OIT publicou o relatório ‘Uma aliança global contra o trabalho forçado’, no qual estimava que, no Brasil, existiam 25 mil pessoas reduzidas a situações análogas à escravidão. No entanto, os dados recentes referentes à libertação de trabalhadores escravizados demonstram que a situação é ainda mais grave: entre os anos de 1995 - quando começaram a ser realizadas ações de fiscalização pelo Ministério do Trabalho e do Emprego - e 2009, mais de 35 mil trabalhadores já foram libertados no Brasil (ver quadro na PÁGINA TAL – atuação do MTE de 95 a 2009).

Justamente por acreditar que os números obtidos com estimativas ficam aquém da realidade e acabam mascarando-a, as instituições públicas e entidades da sociedade civil envolvidas no combate ao trabalho escravo deixaram de publicar estimativas do total de trabalhadores escravizados no país: “Nós preferimos trabalhar com dados concretos, do número de trabalhadores libertados, e não mais com estimativas do total de trabalhadores escravizados. Não temos conhecimento do número total e as estimativas feitas anteriormente demonstraram estar muito abaixo da realidade brasileira”, explica José Guerra, coordenador executivo da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, vinculada à Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República.

Divulgados no início deste ano, os dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho do MTE referentes ao combate ao trabalho escravo em 2009 trouxeram novos elementos para a avaliação do cenário nacional da escravidão. Pela primeira vez, a região sudeste concentrou o maior número de casos de trabalhadores libertados: foram 1.022, dos 3.571 resgatados em todo o país. Outro dado chamou atenção: o Rio de Janeiro, com 521 trabalhadores libertados, é o estado brasileiro com maior número de libertações realizadas pelo MTE em 2009. Os números gerais, no entanto, caíram: se em 2009, os 3.571 trabalhadores resgatados foram fruto de 141 operações de fiscalização, em 2008 foram realizadas 158 operações, que libertaram 5.016 trabalhadores.

Os dados referentes a 2009 apurados e divulgados pela Comissão Pastoral da Terra, apesar de apontarem um número de operações e libertações superior ao divulgado pelo MTE para o mesmo período , confirmam a tendência de redução nas libertações em relação ao ano anterior e concentração de casos no sudeste: de acordo com a entidade, foram 4.234 os trabalhadores libertados em 2009, 1.524 deles na região sudeste do país. Segundo a CPT, em 2008 foram 5.266 os trabalhadores libertados, e o percentual de casos no sudeste subiu de 10% em 2008 para 36% em 2009.  

Frei Xavier Plassat destaca que, além do fato de as libertações realizadas na região do sudeste terem sido em canaviais - que concentram um número maior de trabalhadores em relação às outras atividades que normalmente utilizam mão de obra escrava -, outro motivo contribuiu para os altos números de trabalhadores libertados na região: o aumento das fiscalizações operadas por equipes locais, vinculadas às superintendências regionais do MTE. Segundo ele, isso evidencia que a escravidão não necessariamente ‘se espalhou’ para os estados do sudeste, mas sim que, pela primeira vez, a realidade está sendo reconhecida em função do aumento da fiscalização. Plassat ainda lembra que a região norte sofreu um déficit de fiscalizações em 2009, o que também pode ter contribuído para a concentração das libertações no sudeste.

Já para Sebastião Caixeta, procurador do trabalho e responsável pela Coordenadoria de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho (Conaete/MPT), fatores como a crise econômica internacional e a mudança na legislação referente ao trabalho escravo, em 2003, contribuíram para a queda do número de libertações e o aumento do número de casos no sudeste: “Em relação à diminuição do número de casos, a crise econômica contribuiu. Um setor muito afetado pela crise foi o de siderurgia, que utiliza o carvão vegetal como matéria-prima para a produção do ferro gusa e do aço. As carvoarias, que comumente utilizam trabalho escravo, praticamente pararam durante a crise econômica, e isso com certeza está refletido nesses números. Sobre o crescimento dos casos na região sudeste, atribuo isso à mudança legislativa que, embora seja de 2003, demora a produzir efeitos. Eles estão aparecendo agora na libertação cada vez mais frequente nas regiões sul e sudeste, justamente através das novas modalidades de trabalho escravo -  especialmente aquela que diz respeito às condições degradantes de trabalho”.Flávio Condé

Resquício ou instrumento?

Se os dados referentes ao trabalho escravo contemporâneo demonstram sua utilização em todo o país e em diferentes ramos da produção, como compreendê-lo como um resquício de um modo de produção arcaico, pré-capitalista, que simplesmente resistiu aos anos anacronicamente? Contrariando o senso comum, pesquisadores do assunto e militantes da causa da erradicação do trabalho escravo apontam que, longe de ser um resquício pré-capitalista, o trabalho escravo é utilizado como instrumento pelo capital em seu atual estágio de desenvolvimento. Frei Xavier Plassat e Leonardo Sakamoto, por exemplo, lembram que, diferentemente do que se poderia pensar, o trabalho escravo não aparece hoje no Brasil prioritariamente associado aos empreendimentos rurais mais rudimentares, atrasados e desprovidos de capital, mas sim ao agronegócio.

“É uma idéia relativamente equivocada pensar que o trabalho escravo é associado a empreendimentos arcaicos. Dos casos mais simbólicos que processamos nos anos 1990 e 2000, grande parte das fazendas tinham pista de pouso, dezenas de engenheiros veterinários e agrônomos no seu quadro, gados administrados de forma computadorizada e, ao mesmo tempo, utilizavam o trabalho escravo. A forma moderna do trabalho escravo é muito frequentemente ligada a atividades terceirizadas, para as quais a engenharia que organiza o resto da fazenda não é empregada. É bom desmistificar essa ideia, porque a palavra escravidão remete a uma forma arcaica, mas a escravidão moderna acontece em contexto de tecnologia avançada, e isso é chocante. Há ração balanceada para o gado e os trabalhadores só comem carne se algum gado morrer por doença”, analisa Xavier Plassat.

Leonardo Sakamoto concorda, destacando a incorporação do trabalho escravo à lógica da acumulação capitalista: “Há uma idéia de que, quando o capitalismo estiver bastante desenvolvido, o trabalho escravo irá acabar. É um erro pensar assim. Pelo contrário, o trabalho escravo contemporâneo é um mecanismo utilizado racionalmente por empreendimentos capitalistas para viabilizar a acumulação na situação e ambiente de expansão do capital. Ou seja, é um instrumento de expansão do capital, um instrumento de consolidação do capital. A superexploração do trabalho, da qual a escravidão é a forma mais densa, é deliberadamente utilizada em determinadas circunstâncias como parte do modelo capitalista, mesmo. O trabalho escravo não é generalizado, até porque uma economia capitalista prevê trabalho assalariado, logicamente, para gerar consumo. Mas ele tem uma função importante”, diz. 

O trabalho escravo também é resultado direto da deterioração das condições de vida da classe trabalhadora e da formação do chamado ‘exército industrial de reserva’ - ou seja, a gama de trabalhadores desempregados ou subempregados que sustentam os modos de exploração no capitalismo. Leonardo Sakamoto encara a escravidão como uma espécie de sintoma da pobreza. Por isso, o pesquisador e militante acredita que a erradicação do trabalho escravo passa necessariamente por uma modificação no modelo de desenvolvimento: “O problema é o modelo de desenvolvimento do Brasil, que gera pobreza e faz com que haja esse tipo de mão-de-obra. É um modelo de desenvolvimento extremamente concentrador, explorador, que desconsidera a dignidade e a vida humana. A pobreza é mãe do trabalho escravo: se esses trabalhadores não tivessem que migrar em busca de melhores condições de vida, se pudessem viver em suas terras e produzir, ter bons empregos, haveria uma diminuição mais substancial do trabalho escravo. É essa pobreza que afeta dezenas de milhões de brasileiros que precisa ser revertida para acabar de vez com o trabalho escravo”, avalia.

Intimamente relacionado à pobreza, outro elemento que está na raiz da escravidão contemporânea no Brasil é a concentração de terras. Nas áreas rurais, o grande número de trabalhadores desempregados, impedidos de produzir, contrasta com a reconhecida existência de latifúndios improdutivos e ajuda a explicar a situação que empurra muitas pessoas para a escravidão. Frei Xavier Plassat lembra que a maior parte dos resgatados são trabalhadores sem-terra que não encontraram outra alternativa de trabalho em seus locais de moradia. “Quando falamos que a principal reivindicação de política pública para prevenção do trabalho escravo é a reforma agrária, muita gente diz que estamos aproveitando para impor nossa pauta [da CPT]. Mas não é isso. Se observarmos o perfil desses trabalhadores, notaremos sua característica mais habitual: são sem-terra, ou mesmo pessoas que receberam o benefício da reforma agrária, mas em condições tão precárias que não conseguem nem fazer seu sustento. E a reforma agrária anda a passos lentíssimos, ao mesmo tempo em que avançam o agronegócio, a reconcentração da terra e a consecutiva expulsão de posseiros e trabalhadores rurais de suas terras”, analisa. 

No caso do trabalho escravo utilizado nas cidades, a pobreza também aparece como o principal fator a impulsionar os trabalhadores à situação de escravidão. Muito relacionado à imigração, o trabalho escravo urbano costuma fazer vítimas justamente as pessoas que são obrigadas a deixar seus países diante de situações precárias de vida e, muitas vezes, são traficadas por aliciadores de escravos. “No caso dos bolivianos que vêm para o Brasil e são escravizados em oficinas de costura, está claro que buscam uma situação melhor de vida. E o Brasil tem um papel fundamental nisso, pois retira recursos naturais daquele país e devolve pouco para ele — existem muitos contratos que são extremamente positivos pra o Brasil e negativos para a Bolívia. Então, é parte disso atuarmos para haja melhoria na qualidade de vida dessas pessoas na Bolívia, para que eles não precisem imigrar. Imigração é o último recurso, não deveria ser o primeiro”, pondera Leonardo Sakamoto. Ele ainda destaca aquilo que caracteriza como o elemento ‘ganância’ na cadeia do trabalho escravo: como demonstra documento produzido pela Repórter Brasil para a Conatrae, a maioria dos trabalhadores escravizados em áreas urbanas está concentrada nas oficinas de costura da grande São Paulo, o que é explicado pela busca por maiores lucros no comércio de roupas: “Essas oficinas de costura fazem parte de um sistema extremamente negativo, que machuca os trabalhadores. As grandes lojas de roupa, os grandes atacados, acabam pedindo preços cada vez mais baixos para oferecer produtos mais baratos e lucrar com isso, e é claro que não se importam muito em como isso é feito na cadeia produtiva”.

Erradicação do trabalho escravo no Brasil

Atualmente considerado pela OIT uma das principais referências internacionais no combate ao trabalho escravo, o Brasil só reconheceu oficialmente sua existência em 1995. As primeiras denúncias da CPT sobre utilização de trabalho escravo no país datam da década de 1970, mas somente naquele ano, através de um pronunciamento do então presidente Fernando Henrique Cardoso, o governo federal admitiu diante do país e da OIT a ocorrência de escravidão contemporânea no Brasil. Ainda em 1995, foram criadas as primeiras estruturas para combate a esse crime: o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (Gertraf), composto por representantes de diferentes ministérios, e o Grupo Especial de Fiscalização Móvel, vinculado ao Ministério do Trabalho e do Emprego. A partir daí, se iniciaram as ações de fiscalização de denúncias e resgate de trabalhadores escravizados.

Em 2003, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva lançou o Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo e criou, através da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, a Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae). Orientada pela perspectiva de que o combate ao trabalho escravo não é apenas uma questão trabalhista, mas de defesa dos direitos humanos, a Conatrae busca a intersetorialidade e é composta por ministérios, entidades da sociedade civil, representantes dos trabalhadores, dos empregadores e diversas outras instituições envolvidas no combate ao trabalho escravo. Em 2008, foi lançado o Segundo Plano Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, que buscou atuar em frentes diferentes do primeiro: “O primeiro Plano é mais voltado para o combate ao trabalho escravo. Mas a política de erradicação deve ser composta de combate, prevenção de novos casos e reinserção dos trabalhadores resgatados. A partir dessa noção, construímos o segundo Plano Nacional, mais centrado em medidas de reinserção e prevenção”, explica José Guerra.

Dos mais de 35 mil trabalhadores libertados de situação de escravidão desde 1995, 30 mil foram resgatados de 2003 em diante. O ano marca um avanço na atuação dos Grupos Especiais de Fiscalização Móvel, acompanhado pela criação da Conatrae e pelo lançamento do Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, que significou a ampliação do número de operações e fiscalizações. Hoje, os grupos atuam em todo o país, em áreas rurais e urbanas, a partir de denúncias ou operações planejadas em locais em que haja suspeita de utilização de mão-de-obra escrava. São compostos por auditores fiscais do trabalho, ligados ao MTE, procuradores do trabalho, do Ministério Público do Trabalho (MPT), e integrantes da Polícia Federal ou Polícia Rodoviária Federal. As equipes, coordenadas pela Secretaria de Inspeção do Trabalho do MTE, verificam o cumprimento das leis trabalhistas e a possível submissão de trabalhadores aos riscos à sua saúde e segurança.

Quando o crime de trabalho escravo é constatado, os trabalhadores são libertados e tem seus direitos garantidos. Como o crime de trabalho escravo não se relaciona somente à ausência do pagamento dos direitos trabalhistas, os ‘senhores de escravo’, além de pagarem as multas aos trabalhadores, podem ser condenados a pagar indenizações e respondem, também, a processos criminais. “Quando verificamos a procedência de uma denúncia de trabalho escravo, decorre uma série de responsabilizações. O auditor fiscal do trabalho faz as autuações administrativas, que geram as multas a serem pagas. O Grupo Especial também vai exigir imediatamente o pagamento dos valores que foram sonegados dos trabalhadores e resgatá-los dessa condição indigna. Além das verbas rescisórias, esse trabalhador tem direito também a uma indenização por dano moral individual, diante da violação de seus direitos básicos de cidadania. O trabalhador resgatado também tem direito a três meses de seguro desemprego. Além disso, o MPT propõe um termo de ajuste e estabelece as condições de trabalho, obrigações para que essas condições que foram verificadas não voltem a ocorrer. É também cobrado o pagamento de uma indenização coletiva, que é revertida para o conjunto da classe trabalhadora — normalmente, essa indenização é diretamente direcionada para a comunidade lesada, seja com a construção de equipamentos de saúde, educação, casas de abrigo para os trabalhadores migrantes, ou até mesmo cursos de qualificação, de educação formal”, explica Sebastião Caixeta, representante da Conaete/MPT.

Outro avanço importante nessa política, segundo Leonardo Sakamoto, foi uma decisão do Supremo Tribunal Federal de 2006, que definiu a Justiça Federal como a competente para julgar os crimes de trabalho escravo. “Isso aumentou o número de julgamentos criminais do trabalho escravo, porque até então havia uma discussão de quem seria competente por julgá-lo - a Justiça Federal ou as justiças estaduais. Os produtores rurais acabavam usufruindo disso para ficarem impunes. Desde a definição do STF, aumentou o número de crimes julgados e de condenados”, diz. No entanto, em fevereiro deste ano a discussão voltou a ser pautada: o ministro Cezar Peluso propôs o entendimento de que o crime passasse a ser julgado pela Justiça Estadual. Atualmente suspenso por pedido de vista do ministro Joaquim Barbosa, ainda não há previsão de data para que o processo seja analisado no plenário do STF. 

Há ainda a chamada ‘lista suja’ do trabalho escravo, considerada uma das principais medidas do combate à escravidão no Brasil. Instituída por portaria do MTE em 2004, a ‘lista’ funciona como um cadastro com os nomes dos empregadores e empresas que utilizam o trabalho escravo em sua cadeia produtiva. O nome do empregador ou empresa só é incluído no final do processo administrativo criado a partir do auto da fiscalização que encontra o trabalho escravo. Esse processo inclui o direito de defesa do empregador. A partir da lista, instituições federais podem negar empréstimos aos empregadores envolvidos com trabalho escravo. Depois de monitoramento por dois anos, o empregador que não repetir o crime tem seu nome retirado do cadastro.

Um balanço necessário

“O Brasil avançou bastante no combate ao trabalho escravo, mas, para erradicá-lo, é preciso combater o tripé impunidade, ganância e pobreza. Em relação à impunidade temos conseguido avançar bastante, libertando as pessoas, o MPT e a Justiça do Trabalho vêm colocando pesadas multas e indenizações aos produtores rurais. O problema é que o combate à pobreza voltado para o trabalho escravo ainda é muito incipiente –temos conseguido algumas vitórias, ações como o bolsa-família e outras contribuem também para a redução da miséria absoluta, mas ainda falta caminhar muito para ter redução da pobreza. Entre um plano nacional e outro, muita coisa foi cumprida, muita coisa não, e o que percebemos é que, entre todas as metas, as que foram menos alcançadas foram as de prevenção ao trabalho escravo”. A avaliação de Leonardo Sakamoto corresponde aos dados disponíveis para análise sobre a situação do trabalho escravo no Brasil. Em contraste com o imenso salto verificado na realização de operações de fiscalização e libertação de trabalhadores, as políticas de prevenção e reinserção de pessoas escravizadas ainda são dificilmente encontradas. No caso das iniciativas de qualificação profissional para trabalhadores resgatados, por exemplo, chama atenção o fato de que a maioria não é composta de políticas públicas: são ONGs, sindicatos e movimentos sociais que mais atuam nesse sentido.

Frei Xavier Plassat aponta a ausência de políticas públicas como principal ponto a ser superado: “O que fica também muito insatisfatório, e que é objeto de cobrança da CPT e outras entidades, é o dispositivo que permitiria às vítimas do trabalho escravo ou aos grupos em geral, aqueles que migram constantemente em busca do seu sustento, a oferta de políticas públicas em sua qualificação, o acesso à terra no local de moradia, evitando assim a migração de risco. Isso está ainda na estaca zero. Nós acabamos dando alguma contribuição, mas é uma gota d’água num oceano”, analisa o representante da CPT.

Nesse sentido, uma das principais iniciativas para qualificação profissional, que serve de incentivo e instrumento de cobrança aos movimentos sociais, é um projeto piloto desenvolvido no Mato Grosso a partir de sua comissão estadual de erradicação do trabalho escravo, coordenada pela superintendência regional do trabalho e do emprego, e pelo MPT. O projeto articula entre entidades do ‘sistema S’ e universidades um curso de educação formal para os trabalhadores. Além disso, o MPT elaborou em 2009 um projeto para prevenção do aliciamento e intermediação fraudulenta de mão-de-obra rural. “O projeto se estrutura numa articulação necessária entre os três níveis de governo, União, estados e municípios, para que identifiquemos os municípios ou microrregiões que são exportadores de mão-de-obra escrava. Nesses municípios, a ideia é instituirmos agências públicas de emprego, ou estruturá-las onde elas já existem”, conta Sebastião Caixeta.

Já a principal conquista dos trabalhadores em relação ao acesso à terra para reinserção profissional, o Assentamento Nova Conquista, de Monsenhor Gil, Piauí, é mais uma expressão dos limites da política de erradicação do trabalho escravo no Brasil. Depois de anos de mobilização, os trabalhadores receberam, em março do ano passado, a terra do assentamento. Mas, até agora, não tiveram acesso a nenhum crédito para construção de moradias, compra de materiais e para efetivar o início da produção no local. Chiquinho, o presidente da associação que organiza esses trabalhadores, conta que atualmente o pouco que é plantado no assentamento é resultado dos investimentos dos próprios trabalhadores, que assumem serviços em outros lugares para se manter: “As condições não estão boas. A terra foi a única coisa de concreto que saiu até agora. O Incra nos garantiu que ainda em abril vai liberar o crédito de infraestrutura – para estrada, energia e água – e o crédito de apoio – para compra de arame, animais, alimentação. Disseram também que até o final do ano sairá o crédito habitação, para as casas. Hoje quem mantém o assentamento somos nós mesmos. Vamos de bicicleta e ficamos lá de segunda a quarta, depois voltamos para a cidade para arrumar por aqui o suficiente para nossa alimentação, porque não está sendo suficiente  o que tiramos no assentamento”, diz.

PEC do trabalho escravo: a segunda abolição

Uma das principais expectativas de todos os setores envolvidos na luta contra o trabalho escravo para o avanço em sua erradicação é a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional 438/2001, conhecida como ‘PEC do trabalho escravo’. O dispositivo prevê o confisco de propriedades nas quais for comprovada a utilização de trabalho escravo. A PEC acrescenta um elemento à definição legal que permite a expropriação de terras em que for encontrada plantação ilegal de psicotrópicos (drogas que agem alterando as funções do sistema nervoso central, como a maconha). Depois de ser aprovada em dois turnos no Senado, a PEC foi enviada à Câmara dos Deputados e, em 2004, aprovada em primeiro turno. Desde então, está paralisada: “A PEC foi aprovada em primeiro turno porque, no dia 28 de janeiro de 2004, quatro funcionários do MTE, durante uma fiscalização rural na região de Unaí, em MG, foram emboscados e mortos - o que ficou conhecido como Chacina de Unaí. Isso gerou uma comoção popular muito grande, que fez com que a proposta passasse pelas comissões e fosse aprovada em primeiro turno pela Câmara dos Deputados. Contudo, desde então está parada no Congresso Nacional, esperando a votação em segundo turno, muito por conta da pressão da bancada ruralista”, conta Leonardo Sakamoto, que diz que muitas organizações veem na aprovação do dispositivo uma segunda abolição no Brasil: “É claro que ela não vai resolver o problema sozinha, mas pelo menos vai atuar de uma forma firme para ajudar a mudar esse modelo de desenvolvimento. A PEC 438 faz uma coisa que assusta muito os produtores rurais: deixa claro que quem não cumprir função social da sua terra, prevista na Constituição Federal, vai perdê-la. A terra vai ser destinada para reforma agrária. Ou seja, acaba se relativizando uma coisa que o Brasil é quase absoluta, quase que um dogma, uma religião, que é a propriedade privada da terra”.

Com o objetivo de agilizar a votação da PEC e outros projetos relativos ao combate ao trabalho escravo, foi criada neste ano a Frente Parlamentar Mista pela Erradicação do Trabalho Escravo. A iniciativa, do senador José Nery (PSOL-PA), conta com a adesão de 55 senadores e 195 deputados. A Frente foi criada a partir das mobilizações realizadas no primeiro Dia Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, definido como 28 de janeiro. A data, escolhida em referência à Chacina de Unaí, foi o marco para uma série de atividades que compuseram a Semana Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo. “Creio que a primeira Semana foi bastante exitosa, e propiciou que se cumprisse o objetivo de levar o debate à sociedade brasileira, tirando-o do esquecimento e colocando-o na ordem do dia da pauta política brasileira. Além disso, demos visibilidade à campanha de coleta de assinaturas para o abaixo-assinado que será entregue ao presidente da Câmara dos Deputados no dia 13 de maio, pedindo pressa na aprovação da PEC 438”, conta o Senador José Nery. O texto pode ser assinado em www.trabalhoescravo.org.br/abaixo-assinado.

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