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Trabalho mais precário para os jovens?

Sob o pretexto de recriar o programa de redução de jornada e salários instituído durante a pandemia, a MP 1.045, que tramita no Senado, traz medidas que, segundo especialistas, aprofundam a Reforma Trabalhista de 2017, afetando especialmente os mais jovens
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 27/08/2021 10h09 - Atualizado em 01/07/2022 09h41
Foto: Marcelo Camargo/ABr

O Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda (Pemer), criado pelo governo federal como uma medida para conter o avanço do desemprego durante a pandemia de Covid-19, terminou na última quarta-feira (25), em meio à controvérsia no âmbito do Legislativo.

O programa prevê a redução da jornada de trabalho e salário ou a suspensão dos contratos de trabalho por meio de acordos firmados entre trabalhadores e empresas, com uma contrapartida do governo federal, que paga aos trabalhadores um Benefício Emergencial correspondente a uma parcela do seguro-desemprego a que o trabalhador teria direito caso fosse demitido. A iniciativa foi criada em abril do ano passado pela Medida Provisória 936, que virou a lei 14.020/2020 depois de aprovada no Congresso, em julho daquele ano. Em abril de 2021, por sua vez, o programa foi reeditado por meio da MP 1.045, com duração de 120 dias. 

No dia 10 de agosto, no entanto, a Câmara dos Deputados aprovou um texto substitutivo da MP 1.045. Além de ampliar a vigência do Pemer, o relator da proposta, deputado Christino Áureo (PP-RJ), introduziu ao texto propostas do chamado Contrato de Trabalho Verde e Amarelo, que haviam sido anteriormente apresentadas na MP 905/2020 - que caducou no Congresso em 2020 - agora sob o nome de Programa Primeira Oportunidade e Reinserção no Emprego (Priore) – voltado a estimular a contratação de jovens entre 18 e 29 anos. Segundo seus críticos, os programas apostam na redução de direitos trabalhistas como forma de dinamizar a contratação de trabalhadores, mesma justificativa usada na época da aprovação da Reforma Trabalhista em 2017, que não gerou melhorias no mercado de trabalho brasileiro, como defendiam seus proponentes. Além disso, a MP 1.045 introduz no texto da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) dispositivos que segundo entidades como o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) aprofundam a Reforma Trabalhista e ampliam a precarização do trabalho no Brasil.


Direitos diferenciados

“Esses programas tem viés precarizante”, alerta o diretor de assuntos legislativos da Anamatra, Valter Pugliesi, para quem o Priore cria situações em que um trabalhador tem menos direitos que outro. “O trabalhador contratado pelo Priore teria alíquotas referentes aos depósitos de FGTS menores que os demais trabalhadores: seriam 2% se a contratação se desse por uma microempresa, 4% por empresa de pequeno porte e 6% para as demais. Enquanto os demais trabalhadores têm direito a um depósito mensal de 8% sobre a sua remuneração”, explica Pugliesi. A multa rescisória para demissão sem justa causa, que incide sobre o saldo do FGTS do trabalhador, cairia pela metade no caso dos contratados pelo Priore. “Esses trabalhadores teriam direito a multa de 20% do FGTS, enquanto para os demais trabalhadores é de 40%. Ou seja, você teria em uma mesma empresa trabalhadores com direitos diferenciados”, pontua Pugliesi.

Clóvis Scherer, economista do Dieese, concorda, e dá outros exemplos relativos ao Priore. “Você pode embutir no salário o 13º, a gratificação de férias, o que tende a fazer com que elas deixem de existir na prática”, aponta. Scherer pondera que o programa será “ineficiente” frente aos objetivos a que se propõe, que é a contratação de jovens. “O raciocínio é de que existe um grande desemprego de jovens, maior que dos adultos, e isso é um fato, no Brasil e no mundo. Em cima desse diagnóstico, a ideia do Priore é que os empregadores não contratam porque a legislação trabalhista onera muito essa mão de obra em relação a produtividade que esse grupo de trabalhadores têm, por terem pouca experiência, etc. Essa lógica é questionável”, afirma o economista do Dieese. Segundo ele, de acordo com dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), em 2020 foram contratados 1,1 milhão de jovens a mais do que os que foram demitidos no período, movimento contrário ao que acontece na população adulta. “Se houve saldo positivo de geração de empregos em 2020 isso se deve única e exclusivamente a contratação de jovens. E o que esse programa vai fazer é desequilibrar ainda mais essa situação em detrimento dos adultos. Vai destinar um volume de recursos considerável para empresas que já contratam mão de obra juvenil sem a necessidade de qualquer benefício”, argumenta.


Jabuti legislativo

Além da criação do Priore, o texto da MP 1.045 aprovado na Câmara – cujo objetivo original era apenas a recriação do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda – introduziu na CLT dispositivos que, de acordo com o Dieese, dão continuidade a Reforma Trabalhista de 2017. Segundo nota técnica divulgada pela entidade, um deles é o artigo que trata da chamada dupla visita na fiscalização do trabalho, que prevê uma série de exigências antes que o fiscal do trabalho possa notificar um estabelecimento irregular.

“Isso retira em parte o elemento surpresa na fiscalização do trabalho. Então permite ao empregador estar mais relaxado em relação a fiscalização porque ele não vai ser multado da primeira vez”, avalia Scherer. Segundo o economista, o acesso dos trabalhadores à Justiça do Trabalho é outro ponto prejudicial trazido pela MP 1.045, que aprofunda dispositivos introduzidos na legislação a partir da Reforma Trabalhista de 2017 no sentido de criar barreiras para que os trabalhadores reivindiquem na justiça direitos como o pagamento pelos seus empregadores de verbas indenizatórias, FGTS, entre outros.  A MP 1.045, por exemplo, cria uma série de critérios para o acesso à justiça gratuita, que fica limitada apenas aos trabalhadores com renda familiar per capita de até meio salário mínimo ou com renda familiar mensal de até três salários mínimos. O texto introduz ainda dispositivo que estabelece que mesmo os trabalhadores beneficiários da justiça gratuita terão que pagar as chamadas verbas sucumbenciais, ou seja, terão que ressarcir os gastos de seus empregadores em caso de derrota em uma eventual ação. “Vai no mesmo sentido já da reforma trabalhista, que era de aumentar o risco para o trabalhador, para ele não mover uma ação para reclamar seus direitos. Mesmo que ele esteja certo que seus direitos foram violados, o trabalhador vai pensar duas vezes porque se houver uma decisão contrária a ele, ele vai ter um prejuízo porque vai ter que pagar as verbas de sucumbência da parte vencedora”, explica Scherer, para quem a introdução desses dispositivos via medida provisória, que tem um prazo mais curto de tramitação, é um “equívoco”. “Colocar essas medidas em uma tramitação de MP não permite um debate suficientemente aprofundado, com calma, sobre assuntos que não são urgentes”, diz o economista.

Para Valter Pugliesi, da Anamatra, mais que um equívoco, as alterações propostas pela MP 1.045 ao texto da CLT são inconstitucionais. “O rito das medidas provisórias é extremamente abreviado, assim que editado ela já tem força de lei. Então o Parlamento tem um prazo para analisar, sob pena de trancar a sua pauta. A partir do momento em que você insere matérias estranhas ao texto da MP, sem diálogo, sem debate, você já está afetando o chamado devido processo legislativo que é previsto na Constituição”, diz o diretor de assuntos legislativos da entidade. E completa: “Em relação às alterações que dizem respeito aos artigos que tratam do acesso à justiça, concessão do benefício da justiça gratuita, tudo isso são matérias de direito processual e a Constituição federal, no artigo 62, que trata justamente das medidas provisórias, tem dispositivo expresso que proíbe matérias de direito processual. Então entendemos que toda matéria estranha ao texto original da medida provisória padece de inconstitucionalidade”.