Qual é o estado da proteção social e dos sistemas de saúde no mundo? E como a pandemia mudou esse quadro? Essas foram algumas das questões que estimularam a reflexão no último dia (26/03) do 4º Congresso Brasileiro de Política, Planejamento e Gestão da Saúde. Para debater o tema, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) convidou Asa Cristina Laurell, diretora de Planejamento do Instituto Mexicano de Seguro Social (IMSS), Luis Eugenio de Souza, professor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA) e vice-presidente da Federação Mundial das Associações de Saúde Pública, Cristiani Machado, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) e Eduardo Levcovitz, pesquisador do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj).
Asa Cristina Laurell começou o debate abordando a situação da América Latina e, particularmente, do México depois da irrupção da pandemia. De acordo com ela, a crise sanitária encontrou sistemas públicos de saúde fragilizados, países com um grau alto de dependência da indústria farmacêutica para assegurar medicamentos e vacinas, cenários nos quais a pandemia foi bastante politizada e, como pano de fundo estrutura, determinantes sociais e econômicos que influenciaram muito os indicadores de hospitalização e mortalidade.
A diretora do IMSS lembrou que, há tempos, cientistas faziam alertas sobre a alta probabilidade de uma pandemia – a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) chegou a falar em epidemia “X”. A despeito disso, na sua avaliação o organismo internacional não se mostrou forte o suficiente para liderar uma preparação a nível internacional para uma ameaça como essa. No nível nacional, os sistemas de saúde foram enfraquecidos por políticas neoliberais.
O México, continuou ela, viveu anos de intensa fragmentação e segmentação do seu sistema de saúde, resultado de contrarreformas e ajustes. Mesmo assim, contrapôs, os institutos de seguro social foram basicamente os únicos a lidar com a crise sanitária. Naquele país, o setor privado não se ocupou do atendimentos à Covid-19.
Voltando para a América Latina, Asa Laurell observou que houve bastante instabilidade, com ministros da Saúde e até mesmo governos caindo em decorrência da pandemia. Para ela, no entanto, o maior exemplo de negacionismo da região foi dado pelo governo brasileiro – que segue sustentado por uma base de extrema-direita que interpreta as medidas de distanciamento e isolamento social existentes para frear as transmissões e óbitos como limites às liberdades individuais. Essa politização entre esquerda e ultradireita é, de acordo com ela, uma tendência observada na região.
Iniquidade e pandemia
Para Luis Eugênio Portella, vice-presidente da Federação Mundial das Associações de Saúde Pública – entidade que representa cinco milhões de trabalhadores –, a pandemia deixou à mostra o “rastro de destruição” de quatro décadas de neoliberalismo sobre as estruturas de proteção social.
“Mesmo nos países mais ricos as desigualdades se acentuam”, destacou, citando o exemplo do Reino Unido, onde pesquisas revelam uma queda na expectativa de vida ao nascer na última década, fenômeno que atinge particularmente os segmentos mais pobres da população.
Nesse sentido, Portella acredita que os sistemas de proteção social perderam muito da sua capacidade mesmo nos países ricos e considera “alarmante” a falta de perspectiva de superação dessa crise estrutural na direção do fortalecimento das políticas sociais e do enfrentamento do aquecimento global – “para não falar da falta de projeto socialista”, notou.
“No curto prazo, o que se constata é a ampliação do poderio do 1% da população sobre o restante e a emergência e fortalecimento de movimentos de extrema-direita mobilizando os perdedores da globalização econômica e grupos sociais sensíveis ao conservadorismo”, afirmou.
No âmbito da diplomacia global, Portella mencionou um conjunto de iniciativas que se estruturaram durante a pandemia contra a iniquidade, principalmente no acesso às vacinas, desembocando na criação do Movimento Global pela Equidade Sustentável em Saúde que têm investido na interlocução com a Organização Mundial do Comércio (OMC), onde há meses se discute a proposta originalmente apresentada por Índia e África do Sul de suspensão temporária dos direitos de propriedade intelectual das tecnologias de saúde necessárias ao combate à pandemia. Ele destacou a grande resistência dos países ricos em relação à ideia.
Tudo isso somado tem gerado, na sua opinião, um descontrole muito maior do que seria observado se os únicos fatores fossem o vírus ou a doença. “Os obstáculos residem no sistema de poder”, afirmou.
Um novo pacto social?
Para Cristiani Machado a pandemia recolocou o Estado no centro do debate político – e, dependendo de uma série de fatores, pode vir a alterar o pacto social que o sustenta. Dentre as condições que precisam ser observadas, ela citou a inserção dos países no contexto global e a ação política no nível nacional, que é cenário de “lutas e indefinições”.
Usando dados do Fundo Monetário Internacional (FMI), ela observou que os impactos econômicos da pandemia se distribuíram de maneiras bem distintas entre os países. Enquanto a China, que soube conter as transmissões do novo coronavírus, acabou até crescendo um pouco em 2020 (2,3%), o conjunto das economias avançadas teve retração de 3,5%, mas deve recuperar as perdas até 2022. Já a América Latina se encontra em um quadro muito mais complicado, com retração de 7,4% em 2020 sem perspectiva de recuperação próxima.
Como isso se expressa nas possibilidades de alteração do pacto social? A pesquisadora citou uma reportagem da revista The Economist centrada na tese de que a pandemia estava transformando o Estado de Bem-Estar Social nas economias avançadas da Europa. Esses países injetaram mais de 13% do PIB em ajuda emergencial, pacotes de estímulo fiscal e proteção de emprego, expansão do gasto social e conseguiram alcançar pessoas nunca antes beneficiadas.
No caso dos Estados Unidos, a fonte foi uma reportagem do New York Times que observou que após duas décadas de aumento da desigualdade e concentração de renda, mesmo o governo Donald Trump acabou direcionando um pacote trilionário que incluía incentivos fiscais e transferências monetárias.
O novo governo do democrata Joe Biden, por sua vez, já avançou em um pacote mais amplo, que transforma parte das transferências monetárias em permanentes, e inclui ainda investimentos em infraestrutura, ampliação da cobertura de saúde, redução dos custos com educação e medidas de proteção ambiental – tudo isso com boa aceitação.
Retornando à América Latina, Cristiani Machado lembrou que além do quadro de desigualdades estruturais, a região vêm de anos de baixo crescimento econômico, alta desocupação, informalidade e empregos precários, aumento da pobreza e, consequentemente, das tensões sociais. Segundo a Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal), a região vive um retrocesso de 20 anos com a irrupção da pandemia. “Isso se expressa em outros números, como o dado que diz que apesar de a região abrigar 8% da população mundial, mais de 27% dos óbitos por covid-19 aconteceram por aqui”, citou.
Ela destacou que apesar de as medidas de proteção social aprovadas durante a crise terem coberto 49% da população latino-americana, diferentemente dos países europeus mais ricos, o total desses recursos só chegou a 1,25% do PIB da região.
As chances de a pandemia alterar o pacto social na América Latina dependem de a região caminhar para um cenário que ela chamou de “Estado Social Democrático” no qual as políticas de incentivo persistam e não fiquem reduzidas à transferência monetária, mas caminhem no sentido mais amplo e universal dos investimentos em ciência, tecnologia, inovação e educação, do fortalecimento dos sistemas de saúde, de um novo realinhamento diplomático, como foi tentado com as cooperações Sul-Sul e por meio da instituição do BRICs, entre outros fatores.
Desigualdade e papel do Estado
Eduardo Levcovitz defendeu a perspectiva de que é difícil traçar hoje um cenário internacional de proteção social e de desenvolvimento dos sistemas de saúde. De acordo com o pesquisador do Instituto de Medicina Social da Uerj, existem pelo menos seis cenários.
O primeiro é formado pelos países da União Europeia (UE), e também por nações como Canadá, Austrália e Nova Zelândia que têm no mínimo 60 décadas de Estado de Bem-Estar Social consolidado e passam por transformações internas nesses sistemas.
Um segundo cenário descrito pelo pesquisador é o do bloco de países que fizeram parte da União Soviética, onde depois de 40 anos de sistemas públicos universais estatais passaram por um acelerado processo de privatização a partir dos anos 1990 e, hoje, veem um retorno à presença forte do Estado. “O caso mais exemplar é a Rússia, e as exceções ficam por conta da Polônia e da Hungria, onde governos de extrema-direita mantém políticas de corte neoliberal”, disse.
Levcovitz partiu para o caso seguinte, dos EUA, segundo ele “difícil de enquadrar” em algum dos modelos anteriores, mas que desde o governo Bill Clinton vem tentando, na sua análise, “aproximações a uma forma de pensar universalista entre muitas aspas”. Isso tem se dado sem sucesso do ponto de vista aceitação parlamentar e social por boa parte da população, avaliou.
Há o cenário dos países “completamente desassistidos”, caracterizou, localizados em sua maioria na África e na Ásia. São nações com “conjuntos de serviços completamente segmentados” que não podem ser considerados sistemas de saúde, segundo o pesquisador – e dependentes da cooperação internacional.
Há também o caso da China e da Coreia do Sul, que nos últimos 40 anos têm visto uma expansão significativa da rede de serviços de saúde.
Já na América Latina, cenário no qual se especializou, Eduardo Levcovitz acredita que há ondas de “expansão e retração da proteção social”, particularmente no caso da saúde. O marco inicial são os anos 1920 e 1930, com os primeiros seguros sociais, depois houve impacto do Estado de Bem-Estar Social no sentido positivo, com crescimento da proteção até meados de 1970.
“Depois disso um impacto brutal das ‘reformas’ capitaneadas pelo Banco Mundial, com cumplicidade da ONU, da própria Opas, do PNUD, do UNICEF. E no início dos anos 2000 até 2013 um período de expansão de iniciativas muito heterogêneas nos vários países, que com o impacto da crise das hipotecas dos EUA de 2008 e com o final do ciclo de governos progressistas de esquerda e centro-esquerda teve uma enorme retração que talvez tenha anulado efeitos dos anos anteriores”, resumiu.
Por fim, o pesquisador defendeu que duas categorias analíticas devem ser levadas em conta na investigação de todos os cenários: a evolução das desigualdades e o papel dos Estados e das políticas nacionais na condução das políticas de proteção social.