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Violência nas Escolas

Aumento de casos tem chamado atenção de especialistas sobre a necessidade de ações coordenadas entre Estado, famílias e escolas
Julia Neves - EPSJV/Fiocruz | 27/04/2023 12h20 - Atualizado em 27/04/2023 12h29

Os casos mais recentes de ataques a escolas no Brasil mostram um quadro que vem se agravando nos últimos anos. Segundo o relatório “O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às escolas e alternativas para a ação governamental”, produzido por pesquisadores e ativistas dedicados à educação pública e à prevenção do extremismo de direita no país, durante o processo de transição governamental, aconteceram 16 ataques entre 2002 e 2022. Ao todo, 35 pessoas morreram e 72 sofreram ferimentos. Nos primeiros meses de 2023, novos casos foram registrados no país, entre eles, o ataque de um ex-aluno a uma escola em São Paulo, que deixou uma professora morta e quatro pessoas feridas; e o atentado à creche em Santa Catarina, que vitimou quatro crianças.

Para Andressa Pellanda, coordenadora-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e uma das autoras do relatório, o aumento de ataques violentos a escolas não é por acaso. Os motivos, na visão dela, são a combinação de uma série de fatores, como o uso intenso de redes sociais e jogos virtuais por crianças e adolescentes sem monitoramento e acompanhamento dos familiares ou responsáveis, além de uma onda de populismos e extremismos no mundo. "No Brasil, especialmente, está ligado ao aumento dos discursos de ódio dos últimos anos e às políticas de base violenta e armamentista que foram implementadas pelo governo federal anterior, como flexibilização do porte de armas e militarização de escolas, entre outras”, aponta Andressa.

Preocupada com o agravamento da situação, a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), lançou uma nota pública reafirmando que “o combate à violência nas instituições de ensino passa por vários aspectos da proteção social de estudantes e trabalhadores destas instituições, tais como ações de enfrentamento da violência, do bullying e do cyberbullying nas escolas; constituição de vínculos sociais e cultura de acolhimento e empatia; não banalização do discurso de ódio na sociedade em geral, bem como apoio psicossocial a estudantes e comunidade escolar;  e adequada cobertura da imprensa sobre os casos”.
Para o coordenador-geral do Ensino Técnico de Nível Médio em Saúde da EPSJV, Jonathan Ribeiro, há questões importantes de serem pensadas sobre os atos de violência nas escolas: a primeira é que o discurso extremista foca em minorias: mulheres, negros e o grupo LGBTQIA+. “Isso significa que os ataques tentam aniquilar quem faz parte desses grupos ou aqueles que, de alguma forma, propõe o diálogo”, comenta.

A segunda questão, segundo ele, é uma integração entre escola e família para perceber como esses jovens podem dar indícios que estão sendo cooptados pelos discursos extremistas. “Uma característica que os estudos revelam é uma reclusão exacerbada e uma interação maior com o meio digital", aponta.

Jonathan ressalta ainda a necessidade de combater o pânico generalizado, ou seja, como as escolas, as políticas públicas e, dessa forma, o Estado, precisam propiciar que as escolas sejam ambientes acolhedores e seguros. “Indo contra o discurso de militarização e pessoas armadas dentro das escolas”, conclui.

Repostas governamentais

Após a repercussão dos casos mais recentes, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se reuniu, no dia 18 de abril, com os chefes dos poderes Legislativo e Judiciário, ministros e governadores no Palácio do Planalto, para debater a ampliação da segurança no ambiente escolar.

No encontro, Lula apresentou um pacote de R$ 3 bilhões para ações nas escolas em reação às ameaças ocorridas em várias partes do país. Apesar disso, o presidente frisou que o problema não será resolvido “só com dinheiro” e apresentou outras medidas, dentre elas: a elaboração da cartilha “Recomendações para Proteção e Segurança no Ambiente Escolar” , direcionada para a comunidade escolar; e a criação do Grupo de Trabalho Interministerial, coordenado pelo Ministério da Educação (MEC), para o desenvolvimento de medidas preventivas e imediatas de proteção do ambiente escolar; do programa de formação para implementação das recomendações com foco nas secretarias estaduais e municipais, regionais de ensino, gestores escolares, professores e comunidade escolar; do programa de fomento à implantação de ações integradas de proteção do ambiente escolar (infraestrutura, equipamentos, formação e apoio a implantação dos núcleos de apoio psicossocial nas escolas); e do programa de ações articuladas para implantação de núcleos psicopedagógicos, com acompanhamento de psicólogos e assistentes sociais no ambiente escolar.

Lula falou ainda sobre a necessidade de uma política educacional, familiar e humanizada como um caminho para a solução do problema. “Não vamos transformar as nossas escolas em uma prisão de segurança máxima, que não tem solução. Não tem dinheiro para isso, nem é politicamente correto, humanamente correto, socialmente correto. Se a gente tentar fazer isso, a gente está dando uma demonstração de que não servimos para muita coisa, porque nós não sabemos resolver o problema real”, afirmou o presidente, durante a reunião do dia 18.

Redes sociais e jogos virtuais

Em sua fala no evento, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, apontou que o Brasil tem enfrentado uma “epidemia” de violência e radicalismo disseminada pelas redes sociais. E que medidas já estão sendo tomadas no ambiente virtual: somente nos dez dias anteriores à reunião, 756 perfis em diferentes redes foram retirados do ar e 225 pessoas foram presas ou apreendidas por influenciarem ou estimularem ataques violentos nas escolas.

A discussão do impacto das redes sociais no agravamento da violência nas escolas, inclusive, tem sido um tema de debate em diversos espaços. Dados do relatório citado anteriormente mostram, por exemplo, que os ataques violentos às escolas estão relacionados com um contexto social que se vincula com a escalada do ultraconservadorismo de direita no país e a falta de controle e/ou criminalização desses discursos e práticas, bem como de sua difusão através de meios digitais.

Ainda recuperando dados do relatório, a cooptação desses jovens acontece, geralmente, de forma on-line, em fóruns, chats de vídeos e de jogos como Minecraft, Roblox e Fortnite, além de outros espaços de interação virtual. Além disso, a concretização de atos violentos reais é geralmente validada nesses espaços on-line, seja de forma velada ou explícita. “Casos de ataques com armas de fogo nas escolas praticados por alunos e ex-alunos, em geral, são normalmente associados ao bullying e situações prolongadas de exposição a processos violentos, incluindo negligências familiares, autoritarismo parental e conteúdo disseminado em redes sociais e aplicativos de trocas de mensagem”, alerta um trecho do documento.

Para Andressa, é preciso uma regulação geral e estrutural de redes sociais, de mídias e da imprensa no Brasil, assim como a regulação da atuação do setor privado em agendas que tocam os direitos humanos, a educação e os direitos da criança e do adolescente. “Temos uma série de dispositivos legais que tocam nesse assunto hoje, mas estão dispersos e não são suficientes para responder ao problema, que é bastante complexo e exige um arcabouço intersetorial, trazendo uma discussão sobre empresas e direitos humanos, sobre comunicação como um todo, gestão da internet, proteção de dados, direito da criança e do adolescente, segurança pública, assistência social e psicologia, circulação e divulgação de informações, entre outros temas”, aponta.

Uma das frentes de combate, segundo Andressa, é, sem dúvida, a agenda da qual trata o PL das Fake News, uma lei ampla que regulamenta a atividade das plataformas de mídias sociais, de mensagens privadas e ferramentas de busca no país, sobretudo no que diz respeito à responsabilidade dos provedores pelo combate à desinformação e pelo aumento da transparência na internet, à transparência em relação a conteúdos patrocinados e à atuação do poder público, bem como sanções para o descumprimento da lei. No dia 25 de abril, a Câmara dos Deputados aprovou urgência do PL e, com isso, ele poderá ser votado em plenário sem precisar passar pelas comissões da Câmara, o que deve acontecer no dia 2 de maio.

Entretanto, a coordenadora da Campanha afirma que apenas isso não dará conta da demanda. "Não é uma lei que, sozinha, resolverá o problema, já que há brecha sobre casos de jogos virtuais e não especifica questões de cooptação de jovens por adultos nesse tipo de plataforma ou em redes sociais. Ou seja, é preciso ir além e trazer detalhamento maior de previsão legal para esse tipo de crime”, pondera.

Sobre o contexto das legislações, a coordenadora da Campanha aponta que ainda que o direito penal não seja o veículo mais eficaz nas políticas públicas de enfrentamento ao extremismo de direita dos jovens, há aspectos a destacar no aprimoramento da legislação penal que podem atuar como fator coadjuvante no enfrentamento desses crimes.  "Há necessidade de aperfeiçoamento da Lei nº 7.716/1989, que diz sobre a fabricação, comercialização, distribuição e veiculação de símbolos, emblemas, distintivos ou propaganda de teor supremacista que não necessariamente façam uso da cruz suástica ou gamada. Isso porque é da natureza dos movimentos e grupos extremistas o uso de imagens e linguagem simbólica”, esclarece, acrescentando a necessidade de melhor definição normativa dos crimes de ódio para possibilitar o monitoramento e a produção de dados estatísticos com maior regularidade, uniformidade e abrangência nacional, além da modificação da Lei nº 7.716/1989, para definir como crime qualificado a conduta de recrutar crianças e adolescentes para comunidades e células nazistas, neonazistas e outros grupos extremistas de direita, bem como a conduta de aliciar, autorizar, admitir e permitir a permanência de crianças e adolescentes em clubes de tiro, de air-soft e paintball.

Formas de enfrentamento

Como resposta aos ataques, os governos estaduais têm desenvolvido protocolos de ações para combater ameaças à comunidade escolar. Em São Paulo, o governo do estado anunciou a contratação temporária de 550 psicólogos para atendimento nas escolas estaduais, além de mil vigilantes de empresas de segurança privada que vão trabalhar nas unidades, desarmados.

Em Santa Catarina, foi anunciado que haverá um policial armado em cada escola da rede estadual. Já no Rio de Janeiro, foi criado um Comitê Permanente de Segurança Escolar, com representantes da segurança pública e da Secretaria da Educação para atuar na prevenção às situações de violência nas escolas públicas e privadas, além do reforço policial da patrulha escolar.

Medidas semelhantes estão sendo tomadas pelos governos do Distrito Federal, Rio Grande do Sul, Pará, Bahia e Ceará, com a intensificação do policiamento nas proximidades das escolas e o monitoramento dos chamados grupos de ódio nas redes sociais.

No entanto, diversos pesquisadores, assim como Andressa, têm destacado que a opção por aparatos e instrumentos de segurança não produzem respostas efetivas. Dados do “Guia sobre Prevenção e Resposta à Violências às Escolas”,  lançado no dia 25 de abril, pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, mostram que algumas medidas de segurança, apontadas por governos estaduais, são questionáveis.

É o caso do policiamento dentro das escolas que, por exemplo, “produz uma sensação de segurança imediata, mas não reduz os ataques e pode produzir problemas de outra natureza visto que os agentes de segurança pública não são preparados para atuarem no ambiente escolar, com as especificidades que exige”, de acordo com o guia. Além disso, podem tornar o ambiente mais hostil, deixando os alunos desconfortáveis e contribuindo para um clima escolar de medo, insegurança e autoritarismo.

O documento aponta também que o monitoramento por câmeras dentro das escolas, assim como as catracas nas entradas e detectores de metal, exigiriam altos investimentos de instalação, manutenção e operação desses equipamentos.
Outra medida apontada foi a presença de psicólogos nas escolas que, segundo o documento, não neutraliza os riscos de ataques praticados por pessoas de fora da comunidade escolar. E dessa forma, o guia orienta que é necessário que haja psicólogos alocados nas redes de ensino, em postos de saúde, hospitais e em outros âmbitos de atendimento social e de saúde, para atingir uma esfera mais ampla e uma ação mais continuada.

Para Andressa, há necessidade de revogar o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), lançado em 2019, e desmilitarizar as escolas. Isso porque, segundo ela, as reformas de Estado ocorridas nos últimos anos, com redução do papel deste e dos serviços públicos, aliadas ao enfraquecimento das instituições públicas, tais como a escola, impedem a promoção da pluralidade do debate público e o oferecimento da proteção contra as tendências antidemocráticas em curso. “Assim, a privatização da educação e da escola, os processos de militarização das instituições educativas, os ataques que objetivam silenciar a diversidade e a imposição de reformas curriculares não favorecerão o combate às múltiplas formas de violência nas e contras as escolas”, destaca.

Nesse sentido, Andressa ressalta que a diminuição da violência nas escolas não será resolvida pela criação de mais escolas cívico-militares, pela educação domiciliar ou por meio de reformas curriculares exógenas à lógica desse espaço.

Em vez disso, é preciso reconhecer e compreender esse fenômeno específico que conecta a juventude aos movimentos supremacistas; fortalecer as comunidades escolares para que sejam “círculos” agregados de mobilização contra a violência; impulsionar a formação continuada de professores sobre o extremismo de direita e como enfrentá-lo; criar parcerias com outras instituições que atuam na rede de proteção de crianças, adolescentes e jovens; implementar educação crítica da mídia em transversalidade; bem como criar uma política pública de Convivência Escolar que proporciona a possibilidade de transformação da instituição escolar e a ressignificação da educação. “Precisamos apostar no princípio da gestão democrática e da escola como ambiente fértil para o exercício da cidadania, na qual trabalhadores da escola e estudantes possuem voz ativa na construção do espaço escolar e da sociedade que desejam conviver”, conclui Andressa.