Comprar uma carne no açougue pode parecer uma ação muito comum e talvez você nem pense, de imediato, em todos os processos pelos quais essa carne passou até chegar à sua mesa. Como por exemplo, os cuidados sanitários para garantir a qualidade do produto, o monitoramento ambiental das fazendas, a fiscalização das condições de trabalho nos frigoríficos. Tudo isso compõe o campo da Vigilância em Saúde, que está relacionada às práticas de atenção e promoção da saúde dos cidadãos e a mecanismos adotados para prevenção de doenças. E foi para construir uma política nacional para essa área que duas mil pessoas se reuniram em Brasília entre os dias 27 de fevereiro a 2 de março na 1ª Conferência Nacional de Vigilância em Saúde.
Englobando procedimentos que envolvem o conhecimento da população e do território de atuação (para análise da situação de saúde), a identificação e priorização dos problemas encontrados nesse território, o desenho de estratégias de solução e controle desses problemas e ainda o acompanhamento e avaliação dessas ações, o campo da vigilância em saúde se tornou um braço importante do Sistema Único de Saúde (SUS) principalmente no que tange à informação para redução de riscos de doenças e promoção da qualidade de vida. E todo esse trabalho se estrutura a partir de quatro ‘subcampos’ de atuação: vigilância epidemiológica, ambiental, sanitária e saúde do trabalhador.
“Mas na verdade tudo está junto”, explica Maurício Monken, professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), ressaltando que essa concepção de vigilância em saúde é um das mais conhecidas teoricamente, embora na prática nem sempre funcione assim. Eis aí o grande desafio.
Histórico
Historicamente essa área está relacionada aos conceitos de saúde e doença presentes em cada época e lugar, às práticas de atenção aos doentes e aos mecanismos adotados para tentar impedir a disseminação das doenças, como explica Monken. “No final da Idade Média, a vigilância surge num contexto de isolamento, da quarentena dos doentes e havia uma influência religiosa. Adoecer de lepra, por exemplo, era um pecado. Suas primeiras práticas estavam relacionadas à medicina de reclusão, que prevalece até o século 17”, explica o pesquisador. Outro esquema que ele chama de “médico-político” foi estabelecido contra a peste bubônica. Nele, a quarentena, baseada na análise minuciosa da cidade, no registro permanente da saúde e da doença sobre o espaço demarcado, dividido, inspecionado, constitui não mais um modelo religioso, mas militar.
O desenvolvimento das investigações no campo das doenças infecciosas e o advento da bacteriologia, em meados do século 19, resultaram no aparecimento de novas e mais eficazes medidas de vigilância, entre elas a vacinação, iniciando uma nova prática de controle das doenças, com repercussões na forma de organização de serviços e ações em saúde coletiva. Surge, então, na saúde pública, o conceito de vigilância, definido pela específica - mas limitada - função de observar contatos de pacientes atingidos pelas denominadas doenças pestilenciais. A partir da década de 1950, o conceito deixa de ser aplicado no sentido da observação de contatos de doentes para ter significado mais amplo: o de acompanhamento sistemático de eventos adversos à saúde na comunidade, com o propósito de aprimorar as medidas de controle. A metodologia aplicada pela vigilância, nesse novo conceito, incluiu a coleta, análise contínua e divulgação de dados relevantes: quantas pessoas adoecem no Brasil, de que elas morrem, por que adoecem e onde vivem, por exemplo.
No Brasil, a trajetória da vigilância herdou as influências europeias. As primeiras ações datam do período colonial: em 1561, quando a varíola chegou ao país, e em 1685, com os casos de febre amarela em Recife. “Nesse período, os serviços de saúde, organizados precariamente, preocupavam-se com as doenças pestilenciais. A prática médica era baseada em conhecimentos tradicionais e não científicos. A estratégia de controle utilizada na época baseava-se no afastamento ou no confinamento dos doentes nas Santas Casas de Misericórdia, cuja função era mais assistencial do que curativa”, conta Monken. Com a chegada da família real portuguesa ao Brasil, em 1808, incorporou-se por aqui a prática denominada de Polícia Médica, originária da Alemanha do século 18, que propunha a intervenção nas condições de vida e saúde da população, com o propósito de vigiar e controlar o aparecimento de epidemias. Era uma espécie de vigilância da cidade, que controlava as instalações de minas e cemitérios, o comércio do pão, vinho e carne. No ano seguinte, no decreto de criação do Cargo de Provedor Mor da Saúde da Corte, de 28 de julho de 1809, já aparece a palavra vigilância, baseada na noção de contágio e prevendo medidas de isolamento para as embarcações vindas de áreas suspeitas de peste ou doenças contagiosas, bem como controle sanitário sobre as mercadorias a bordo.
Aos poucos, a medicina higienista começava a ganhar força e a pautar o planejamento urbano da maioria das cidades. Os problemas de saúde que aparecem como preocupação maior do poder público são as endemias e as questões gerais de saneamento nos núcleos urbanos e nos portos. “Esse caráter higienista tinha como objetivo limpar o meio para atacar os males, os chamados miasmas. Antes de haver a descoberta dos microrganismos, dos vírus, das bactérias, achava-se que em áreas com muita poluição havia maus ares. Sob essa ótica, muitos erros foram cometidos”, explica Maurício Monken. Ele cita como exemplo clássico o aterramento de áreas pantanosas, principalmente na cidade do Rio de Janeiro. “A medicina higienista influenciou diretamente a legislação sanitária brasileira, incluindo as campanhas de Saúde Pública contra a febre amarela e a peste bubônica, no final do século 19 e início do século 20, encabeçadas pelo médico sanitarista Oswaldo Cruz (1872-1917). “As medidas gerais destinadas à higiene urbana caracterizavam-se pela utilização de medidas jurídicas impositivas de notificação de doenças, vacinação obrigatória e vigilância sanitária em geral”, explica o professor-pesquisador da EPSJV.
Após a Segunda Guerra Mundial, a Campanha de Erradicação da Varíola (1966-1973) aparece como marco da institucionalização das ações de vigilância, com a criação do Sistema de Notificação Compulsória de Doenças. Além disso, a 21ª Assembleia Mundial da Saúde, de 1968, discutiu a aplicação da vigilância no campo da saúde pública, o que resultou em uma visão mais abrangente desse campo, com recomendação para que ele envolvesse não só o controle de doenças transmissíveis, mas também outros eventos adversos à saúde. Monken lembra também da instituição, em 1975, do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (Lei 6.259/75 e Decreto 78.231/76), por recomendação da 5ª Conferência Nacional de Saúde. Em 1976, foi criada a Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária, que definiu a organização do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária. A vigilância ambiental começou a ser pensada e discutida a partir da década de 1990, especialmente com o advento do Projeto de Estruturação do Sistema Nacional de Vigilância em Saúde (VigiSUS). Nesse momento, o Brasil adota oficialmente a definição de Vigilância em Saúde nas práticas de monitoramento e ações realizadas pelo país. “Esse conceito de vigilância em saúde amplia a ideia de não vigiar apenas a doença, e sim monitorar o problema de saúde. Mas essa ideia da vigilância em saúde é algo que está em construção”, explica Maurício Monken.
Construindo a política
E esse processo de construção é realmente longo. Apenas agora em 2018 foi realizada a primeira Conferência Nacional de Vigilância em Saúde, espaço em que segmentos de trabalhadores, usuários e gestores poderiam discutir e formular uma política para essa área. “Foram dois anos para sistematização dos trabalhos, com 28 anos de atraso. Ou seja, com certeza, a força social e política na defesa do que foi contratado lá na Constituição sobre o sistema de saúde vai ser outra depois dessa conferência”, disse Ronald dos Santos, presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Ele destacou ainda que a marca dessa conferência foi a “identidade nacional”, por conseguir incluir na mesma discussão o problema do morador de rua, do morador do Amazonas, da fronteira, da cidade, do campo, da população negra... “Conseguimos que as diversas dores e os diversos sonhos da mais diversa característica da população brasileira tivessem expressão”, resumiu.
Com o tema central ‘Vigilância em Saúde: Direito, Conquistas e Defesa de um Sistema Único de Saúde (SUS) Público de Qualidade’, a conferência objetivou construir uma política de fortalecimento das ações de promoção e proteção à saúde dos brasileiros. O processo de preparação para a etapa final da 1ª CNVS teve início em julho de 2017, quando começaram a acontecer as etapas municipais, territoriais, estaduais e livres em todo o país. Os delegados, participantes livres e convidados construíram coletivamente o Relatório Nacional Consolidado com as diretrizes para Política Nacional de Vigilância em Saúde (PNVS). “Elencamos três palavras-chave para mobilizar a sociedade brasileira, que são a proteção social, a democracia e a construção de uma política nacional de vigilância em saúde. Mesmo passados 30 anos da consolidação do SUS, nós ainda não havíamos conseguido debater com a sociedade brasileira essa questão central” afirmou Ronald.
Um dos desafios dessa Política de Vigilância em Saúde será a superação de um sistema fragmentado. Atual-mente, a Vigilância em Saúde no Brasil é organizada por dois sistemas que coordenam toda a área: Sistema Nacional de Vigilância em Saúde e Sistema Nacional de Vigilância Sanitária. “E isso é um problema”, afirma Lia Giraldo, pesquisadora aposentada do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães/Fiocruz Pernambuco, que explica o processo de organização da vigilância epidemiológica. “Na década de 80 foi iniciado um programa de treinamento básico em vigilância epidemiológica em São Paulo e depois se estendeu a todo Brasil, em uma série histórica muito importante. A preocupação na época era criar um sistema nacional e fazê-lo integrado. Muitos de nós acreditávamos que se partíssemos dos códigos sanitários renovados municipais, estaduais e nacional era possível dar sustentação legal para as ações de vigilância”.
Mas isso não aconteceu. Segundo a pesquisadora, a prioridade do Movimento da Reforma Sanitária, que culminou na 8ª Conferência Nacional de Saúde e no trabalho político de participação na Assembleia Nacional Constituinte, foi especialmente a organização de um sistema de saúde integrado com foco na garantia do acesso e da atenção à saúde nos diversos níveis. Com isso, diz, as questões da vigilância epidemiológica e da vigilância sanitária ficaram em segundo plano. “Houve pouca normatização para mudança no modo operacional dessas vigilâncias no âmbito do Sistema Único de Saúde. Permaneceram praticamente no mesmo modelo vertical e burocrático. Com a criação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a vigilância sanitária ficou ainda mais externa ao sistema. A Vigilância Epidemiológica continuou ainda por muitos anos sob comando do Centro Nacional de Epidemiologia(Cenepi), que era competência da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), órgão bastante conservador frente às ideias do SUS e que sofria e ainda sofre muita interferência política, além de sua herança institucional das velhas estruturas de saúde pública relacionadas ao controle de endemias, que vem da ideia de sermos um país das doenças tropicais. Mesmo diante de um quadro epidemiológico complexo em que não houve a transição epidemiológica, em que o país acumula as doenças tanto da pobreza como aquelas decorrentes da industrialização e da urbanização, vemos manterem de forma predominante o modelo herdado das doenças infecciosas e parasitárias do começo do século, exceto no caso da AIDS, que incorporou elementos novos, especialmente o conceito de vulnerabilidade no processo de fazer a vigilância em saúde”, explica.
Foco no financiamento
O último ato da Conferência foi a votação do Relatório Nacional Consolidado, que resultou em 170 propostas que contemplam ações das vigilâncias ambiental, em saúde do trabalhador, epidemiológica e sanitária. Espera-se que essas diretrizes orientem as ações do Ministério da Saúde nos próximos anos. No entanto, apesar da relevância da efetivação de uma Política Nacional de Vigilância em Saúde, o espaço da Conferência foi atropelado pela preocupação com o desmonte do Sistema Único de Saúde como um todo. Temas como os das arboviroses - que têm se destacado como problemas de saúde pública e da vigilância no Brasil, com as sucessivas epidemias ou surtos de dengue, zika, chinungunya e agora febre amarela silvestre –, e a violência no trânsito – que é a primeira causa de morte entre 15 e 29 anos, com 37.306 óbitos e 204 mil pessoas feridas só em 2015 – ganharam destaque no documento de propostas, mas não foram protagonistas do evento. Até mesmo a histórica – e criticada – fragmentação da área foi relacionada principalmente aos cortes na saúde. “Nunca houve um debate sobre a vigilância no país e essa conferência aparece como uma grande oportunidade em um momento, inclusive, curioso, pela própria ameaça de desmonte da saúde pública. A vigilância está no meio dessa história toda. Nos lugares em que eu fui falar sobre esse tema, parece até meio estranho ficar falando da construção de uma área, já que é algo que está arriscado a não existir mais: o próprio SUS”, conta Monken.
Ao todo, 29 moções foram votadas pelos participantes. Dentre elas, teve destaque a moção de apoio à Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra a Emenda Constitucional 95, que congela por 20 anos os investimentos federais. O objetivo é que a emenda seja revogada para que o Estado garanta o financiamento adequado e suficiente das ações e serviços de saúde. “A emenda não só afeta, mas inviabiliza as políticas públicas no geral. Impacta diretamente o financiamento do SUS que, como um sistema de saúde do Estado, precisa de investimentos permanentes para a implantação e implementação de serviços de saúde, em respeito aos artigos 196 e 200 da Constituição de 1988”, afirmou a conselheira nacional de saúde Maria da Conceição Silva, durante a conferência.
Élida Graziane, procuradora do Ministério Público de Contas de São Paulo, foi categórica no primeiro painel da conferência sob o tema ‘Vigilância em Saúde: direito, conquista e defesa de um SUS Público de Qualidade’: “Não é possível falar em defesa do SUS e da vigilância em saúde sem discutir o financiamento progressivo do Estado. Não há direito social sem dinheiro que ampare o seu custeio. Ou o direito à saúde é amparado por uma garantia de financiamento ou ele é precarizado e entregue à substituição do Sistema Suplementar”. A mudança na forma de repasse de recursos do SUS para estados e municípios, que acaba com o dinheiro ‘carimbado’ por bloco de financiamento, e a Emenda Constitucional 95/2016, foram duramente criticados pela procuradora. “A EC 95 é inconstitucional. Precisamos garantir o financiamento do SUS para que ele seja um direito universal. E é com orçamento público que se garante direitos”.
Outro olhar
O fato de a primeira conferência da área se referir à “vigilância em saúde” pode sugerir um consenso em torno desse conceito, mas isso, definitivamente, não é verdade. Pesquisadora do Centro Colaborador em Vigilância Sanitária (Cecovisa) da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz), Maris Mary de Seta acredita que a vigilância em saúde implementada no Brasil não funciona de forma integral, sendo apenas a reunião de áreas diferentes numa mesma estrutura organizacional. Segundo ela, cada uma delas tem um processo de trabalho distinto, usa instrumentos diferentes e conta com profissionais que se orientam com base em disciplinas diferentes. Mas ela é enfática em dizer que essa análise não significa defender qualquer tipo de fragmentação. “A questão está no que se pensa ser integração. Integração não é justaposição, mas articulação, cooperação, trabalho conjunto. E essa ideia de integração passa longe dos organogramas das secretarias estaduais e municipais de saúde”, afirma.
Assim, segundo ela, a vigilância em saúde deveria incluir apenas as áreas ambiental e epidemiológica. Já a vigilância sanitária e de saúde do trabalhador não entrariam nesse espectro. “A vigilância sanitária é por natureza intersetorial, é a que vai se dedicar à questão da qualidade e segurança dos bens, dos produtos, dos insumos. E então, ela vai se ocupar dos medicamentos, dos alimentos, é uma vigilância que não existe para estar integrada à Estratégia Saúde da Família, por exemplo”, defende. A pesquisadora acredita ainda que a vigilância da saúde do trabalhador reúne um conteúdo de atenção, de cuidado com o trabalhador, e por isso também se afasta desse conceito amplo. “Além do debate sobre o que é integração, há outra diferença, que é o processo de vigilância como atividade do Estado, que é diferente na essência do processo de cuidado. Essas pequenas diferenças é que fazem com que nós, no Cecovisa, pensemos a vigilância em saúde com uma configuração diferente”, explica.
O ponto divergente está em não considerar a vigilância em saúde um Modelo de Atenção. “Trabalhamos com o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, com a questão da organização, da estruturação. Eu vejo a necessidade de esse sistema continuar existindo. Hoje, nessa conjuntura adversa que o movimento sanitário vive, eu não vou, por exemplo, para uma Conferência, defender nada integrado nem fragmentado. Vou defender que não haja retrocesso para nenhuma das vigilâncias”, explica. Para a pesquisadora, se a vigilância sanitária tem que trabalhar em prol da qualidade da segurança de modo geral nos produtos e serviços, ela não tem mesmo que se aproximar da Estratégia da Saúde da Família. “Não trabalho com um modelo, mas com o concreto. Como é que a saúde vai botar o dedo na ferida das contradições entre capital e saúde nas várias vertentes, trabalho, consumo, se abrir mão de ser uma atividade de Estado?”, resume.
Mauricio Monken concorda que, apesar de necessário, o modelo de vigilância em saúde não funciona como no papel. “Mas isso não pode ser um argumento que invalide esse conceito”, diz. Para ele, o conceito de vigilância em saúde é historicamente relacionado à determinação social da doença, baseada no olhar sob o território, com ações intersetoriais. “Para saber qual o problema e necessidades daquele grupo populacional, é preciso entender como eles vivem, como é produzida a saúde ou a doença ali naquele território. E isso só será possível se todas as áreas trabalharem de forma conjunta. Infelizmente a maioria das vigilâncias municipais ainda não se estrutura assim. Só monitoram o problema, não fazem intervenção”, classifica Monken.
Para exemplificar essa ação integrada, basta pensar em um local onde a Unidade Básica de Saúde está recebendo um grande número de pessoas com sintomas parecidos. A causa não foi identificada, mas a vigilância epidemiológica computou todos os números. No mesmo período, a vigilância da saúde do trabalhador atuou para garantir que os trabalhadores dessa unidade tivessem condições físicas para atender essa demanda não esperada. Por outro lado, bem perto do bairro onde esses usuários moram, tem uma fábrica que despeja produtos químicos diretamente no rio que abastece a cidade e que já foi notificada pela vigilância ambiental. Sem falar na água engarrafada vendida do mercadinho que já foi, por três vezes, fechado pela vigilância sanitária. “Se essas vigilâncias tivessem informações e ações integradas, seria muito mais fácil descobrir que os sintomas dos moradores podem estar ligados à água contaminada e a intervenção proposta seria muito mais eficaz. O território envolve todos os processos e não temos como separar isso. Está em processo, é uma luta. Não é algo concreto, mas não podemos negar a importância de considerar a integralidade”, defende Monken.
Na prática: como funcionam?
Vigilância Sanitária
Sabe aquele restaurante que foi notificado ou até mesmo fechado por não oferecer condições de higiene ideais? Ou aquele anticoncepcional que não passava de pílula de farinha? Ou até mesmo a regulamentação de um medicamento que ainda não teve sua liberação e já circula no mercado? Evitar que casos como estes ocorram compõe o conjunto de ações relativas à Vigilância Sanitária, que é responsável por garantir a qualidade de todos os bens, produtos e serviços consumidos pelos brasileiros. No caso dos bens e produtos, o controle e a fiscalização vão desde a produção até o consumo. Já os serviços fiscalizados pela vigilância sanitária incluem locais como hospitais, escolas, clubes, academias e centros comerciais e ainda inspecionam-se os processos produtivos que podem pôr em riscos e causar danos ao trabalhador e ao meio ambiente. “Atualmente, as ações de vigilância sanitária incidem sobre o controle de bens de consumo relacionados à saúde em todas suas etapas e seus processos, da produção até o consumo, e do controle da prestação de serviços neste âmbito. Assim, um enorme conjunto de bens e serviços é regulado pela vigilância: medicamentos, alimentos, cosméticos, agrotóxicos, saneantes, artigos de saúde, kits diagnósticos, serviços de diálise, para citar alguns exemplos”, explica Sérgio Luiz Silva, pesquisador do Instituto Nacional de Controle da Qualidade em Saúde (INCQS).
Embora as atividades de vigilância sanitária no Brasil sejam centenárias apenas em 1999 um Sistema Nacional de Vigilância Sanitária foi formalmente estabelecido, mediante a publicação da Lei 9782/99, que criou também a Anvisa. As ações de proteção e de promoção da saúde da vigilância sanitária, tal como estabelecidas na Constituição de 1988, são atribuições do Sistema Único de Saúde. Permanecem no Ministério da Saúde a formulação, o acompanhamento e a avaliação da política nacional de vigilância sanitária e das diretrizes gerais do SNVS.
Segundo Sérgio, a criação das Agências Reguladoras no Brasil, como a Anvisa, se deu no âmbito da reforma regulatória da década de 1990, e foi possível graças ao movimento de lideranças políticas e à pressão de organismos internacionais, em especial o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O discurso político fundamentava-se na busca do ‘novo’, de instrumentos que favorecessem o “desenvolvimento econômico” e a ‘modernização do país’. “A pressão das agências internacionais foi exercida basicamente mediante incentivos ou restrições na concessão de empréstimos. Ao Brasil era cobrado que fosse um ‘Estado regulatório moderno’, como pré-requisito para desenvolver-se. Hoje o país conta com diversas agências, que regulam de água a petróleo, de saúde suplementar à vigilância sanitária”, contextualiza.
Sérgio afirma ainda que, para dar conta de tamanha atribuição, a vigilância sanitária conta com um grande, porém insuficiente, contingente de trabalhadores, que atuam nos níveis federal, estadual e, principalmente, municipal. “Ampliar a infraestrutura e a força de trabalho nos municípios, bem como aperfeiçoar a integração entre os diversos entes é uma antiga reivindicação do Sistema, conforme documentado na 1ª Conferência Nacional de Vigilância Sanitária, ocorrida em 2001 e mais recentemente no Ciclo de Debates de Vigilância Sanitária, ocorrido em 2015”, explica.
Maurício Monken destaca outro aspecto: “A vigilância sanitária é até hoje fiscalizatória, punitiva, tem poder de polícia. É a única que tem esse poder, de fechar estabelecimento, por exemplo. Muitas vezes o núcleo da vigilância sanitária não fica nem dentro da área da saúde, mas no gabinete do prefeito, na secretaria da fazenda. Por quê? Porque ela arrecada, e por isso é uma área que tem muito interesse, permite também corrupção”.
Sérgio Luiz afirma que os problemas não são só no nível local. Como ocorre com outras agências reguladoras, a Anvisa tem promovido a desregulamentação de algumas de suas áreas de atuação. Como exemplo, ele cita a área de cosméticos, produtos de higiene e perfumes, em que uma grande quantidade de categorias de produtos passou a ser isenta de registro sanitário que, assim, se torna passível apenas de uma notificação on-line. “Para que se possa desregulamentar com segurança o registro sanitário é fundamental que a fiscalização e o controle da qualidade de pós-mercado sejam fortalecidos, incluída a ampliação do monitoramento laboratorial por parte dos Laboratórios Oficiais, o que não vem ocorrendo”, denuncia Sérgio. Para o pesquisador, os laboratórios oficiais brasileiros carecem de políticas e recursos para garantir seu papel fundamental de controle da qualidade de produtos comercializados no Brasil.
Já na área de medicamentos, a Anvisa tem sido cobrada a ampliar os programas de monitoramento laboratorial oficial, principalmente no que se refere aos medicamentos genéricos, “uma vez que o programa de monitoramento atual é singelo”, como define Sérgio. Sem contar que se tornou frequente a queda de braço entre a Agência e o Congresso Nacional do que tange à regulamentação de medicamentos e substâncias. A lei que liberou a fosfoetanolamina no Brasil, chamada de pílula do câncer, é um exemplo recente. “Isso significou, nitidamente, uma invasão do Congresso Nacional a uma atribuição que, constitucionalmente, é exclusiva do Executivo e que, no Executivo, é delegada à Anvisa. Ela é ruim para a população brasileira duplamente. Primeiro porque corre o risco de colocar para serem comercializados produtos sobre os quais não se tenha avaliação de segurança e eficácia, ou seja, há um risco sanitário flagrante. E segundo, porque põe em xeque a credibilidade do que é feito no país. Quem vai importar um medicamento do Brasil, se tem a dúvida sobre se aquele medicamento foi registrado pela Anvisa ou autorizado diretamente pelo Congresso? Isso desmoralizaria qualquer medicamento brasileiro”, afirma Jarbas Barbosa, diretor-presidente da Anvisa. Segundo ele, além de projetos autorizando medicamentos ou sustando proibições determinadas pela Anvisa, as tentativas de ingerência vêm também de iniciativas isoladas de parlamentares, que pedem preferência a determinadas empresas na fila de processos a serem analisados. De tão frequente, a agência já tem uma resposta padrão para enviar a deputados e senadores.
Outra área de disputa por dentro da Anvisa é a regulação de agrotóxicos. “Pouquíssimos laboratórios oficiais têm os recursos necessários para realizar a detecção de resíduos de agrotóxicos em alimentos e os que têm lutam com dificuldade para manter-se realizando ensaios. Além disso, reavaliações toxicológicas de ingredientes ativos, realizadas pela Fiocruz, têm demorado anos para serem publicadas, ou mesmo deixam de sê-lo”, alega Sérgio. Para ele, os programas de monitoramento de alimentos, que deveriam ser tomados como base pela agência para a ampliação em outras áreas de atuação, uma vez que monitoram parâmetros relevantes para a saúde pública, como os contaminantes orgânicos e inorgânicos, passam constantemente por turbulências e questionamentos dentro do próprio SNVS.
Jarbas discorda e reforça que a Anvisa tem se posicionado fortemente contra qualquer tentativa de enfraquecimento do papel da Agência. “Há projetos de lei, deslanchados pela bancada ruralista, [sobre os quais] já nos manifestamos muito claramente. Somos contra, por exemplo, qualquer proposta de eliminar a Anvisa ou o Ibama da avaliação de agrotóxicos, porque em qualquer país civilizado do mundo o uso de agrotóxicos tem que ser visto do ponto de vista do interesse da agricultura”, enfatiza. E ainda acrescenta: “Sem isso, nós vamos retroagir algumas décadas e eu creio que não é bom nem para a agricultura e muito menos pra população brasileira”. Sobre o enfrentamento com a tentativa de desregulação por parte da bancada ruralista, o pesquisador André Burigo, da EPSJV, concorda inteiramente com Jarbas, mas pondera que, ainda que a agricultura também se beneficie desse esforço, o interesse principal que deve orientar as decisões, nesse caso, é a defesa da saúde da população e do meio ambiente em relação aos impactos dos agrotóxicos.
Vigilância Epidemiológica
Na mesma esteira dos desafios da vigilância sanitária, que estão atravessados por interesses políticos e econômicos, a vigilância epidemiológica também esbarra em obstáculos. Em tese, sua função é reconhecer as principais doenças de notificação compulsória e investigar epidemias que ocorrem em territórios específicos. Além de coleta, análise e divulgação de informações de fatores que influenciam a saúde, como tétano e sarampo, ou de interesse epidemiológico, como diabetes ou hipertensão. Essas ações devem auxiliar na elaboração de estratégias para a prevenção e o controle desses agravos, como a vacinação e a oferta de remédios gratuitos nos postos de saúde. Também faz parte das ações a investigação de epidemias, como, recentemente, a dengue, a zika e a chikungunya. “Mas a vigilância epidemiológica deveria ser mais que uma ação de monitoramento”, enfatiza a pesquisadora da Fiocruz Pernambuco, Lia Giraldo.
Para Lia, essas ações deveriam compor um sistema complexo que envolvesse o permanente acompanhamento da saúde da população no sentido de verificar como se comporta a morbimortalidade – relação entre o número de indivíduos portadores de determinada doença em relação ao total da população analisada e a estatística de pessoas mortas num grupo específico–, nos grupos populacionais, segundo suas diversas características individuais e coletivas, e também nos territórios onde vivem e trabalham as pessoas. “A vigilância epidemiológica tem a possibilidade de evidenciar, por exemplo, a ocorrência de epidemias, se existem iniquidades sociais envolvidas na causalidade das doenças, avaliar se as medidas de proteção estão sendo adequadas, entre outras ações que são fundamentais para o planejamento e gestão em saúde”, explica. No entanto, Lia afirma que esse sistema não funciona automaticamente, ele precisa de pessoal qualificado e também requer prontidão na permanente investigação e análise da incidência e prevalência das doenças. Mas, segundo ela, isso nem sempre ocorre.
Para a pesquisadora, na perspectiva da vigilância em saúde, a vigilância epidemiológica deveria avaliar os contextos de vida e de trabalho das pessoas para identificar os condicionantes que podem ser nocivos à saúde, que tornam os ambientes e as populações mais vulneráveis. Isso significaria dizer que a vigilância epidemiológica requer um modelo que não se restrinja a identificar causas ou fatores de risco de doenças, mas que necessariamente inclua o contexto social e ambiental nos territórios de vida. “É necessário muito trabalho de campo, de investigação, de análise e de proposição de ações que devem ser integradas e não ficar restritas apenas ao cuidado com o doente, ou aos aspectos da transmissão da doença ou às medidas focais de contenção das epidemias”, explica. E alerta: “Esta atitude proativa requer um lócus de trabalho protegido das contingências políticas que com frequência interferem na possibilidade da ação mais ampla e integrada”.
Na prática, Lia afirma que a vigilância epidemiológica é herdeira de um modelo de causa e efeito sobre a saúde, cuja prática de investigação e atuação limita-se a uma notificação individual de casos absolutamente descontextualizados. “No caso da zika, por exemplo, começou a ter um vírus novo circulando no país no semestre de 2015. Como esse vírus também é transmitido pelo aedes aegypti, foi interpretado como uma dengue ‘branda’, e a própria vigilância epidemiológica fez o quê? Induziu as secretarias estaduais e municipais a tratar aquilo como tal. Portanto, o que houve foi um aumento de notificação de casos de dengue e não de zika”, explica.
Segundo ela, a falta de vigilância sobre esse novo contexto fez com que o país fosse surpreendido com os casos de microcefalia associados à zika. “Isso mostra como nós temos uma vigilância epidemiológica que está centrada num modelo causalista e não contextual, que leva a uma série de erros, conceituais, de intervenção, que custa muito caro para o nosso Sistema de Saúde”.
Outro exemplo é a dengue. “Se analisarmos o comportamento epidemiológico desse agravo, veremos que ela está nos lugares onde tem maior pobreza, insuficiência de saneamento, difícil acesso aos serviços de saúde e, consequentemente maior letalidade pelos seus agravos”, afirma. No entanto, a pesquisadora lamenta que, apesar de conhecer essas informações, a vigilância epidemiológica não as leva em consideração ao propor as intervenções. “O que a vigilância epidemiológica não integrada, de modo muito setorializada, induz? Induz a focar em cima do mosquito, então o mosquito vira a causa”, critica.
Segundo a pesquisadora, essa falta de intersetorialidade é vista principalmente no afastamento entre as vigilâncias epidemiológica e ambiental. “Considerando que toda intervenção humana que tem sido desastrosa, com desmatamentos, contaminações, alagamentos, soterramentos, criam-se esses novos contextos nocivos. Por isso se faz necessária uma vigilância de base territorial e ambiental não apenas em termos de notificação de casos – macaco morto, caso de febre amarela silvestre ou urbana diagnosticada”, enfatiza Lia. O problema, segundo a pesquisadora, é que o Sistema Nacional de Vigilância em Saúde trata o que chama de risco biológico–organismo, ou substância oriunda de um organismo que traz alguma ameaça à saúde humana –, completamente separado da vigilância ambiental. “Para mim não há questão mais ambiental do que as doenças transmitidas por vetores”, diz.
A pesquisadora explica que essa integração não acontece porque não há interesse político em questionar o modelo de vigilância vigente. “O seu isolamento favorece o mercado da ‘big pharma’[expressão que define as grandes indústrias farmacêuticas]. O controle das doenças de forma ‘causalista’ mobiliza muito dinheiro e muitos interesses econômicos não só no país como no nível internacional”, denuncia e acrescenta, referindo-se ao famoso ‘fumacê’: “Sabemos o que rola de interesse no caso do controle de dengue, que mobiliza anualmente R$ 1,2 bilhões na compra de agrotóxico que é aplicado inutilmente há cerca de 30 anos sem resolver o problema”. Ela ainda menciona que a diminuição da densidade vetorial mediante o uso de biocidas – produtos para combater pragas ou bactérias que contêm substâncias tóxicas – vem sendo questionada pela indústria de biotecnologia interessada em introduzir o mosquito transgênico. Nesse caso, diz, se os argumentos forem suficientes para convencer a Organização Mundial da Saúde (OMS), o método certamente será introduzido no Brasil. “Este é um dado da realidade que explica por que a vigilância epidemiológica tem de permanecer em um gueto. E se formos para os agravos não-transmissíveis, aí vemos menos integração ainda”, resume.
Lia Giraldo destaca que, para sair de uma vigilância epidemiológica subordinada para uma Vigilância em Saúde integrada, é preciso se orientar por unidades de análise territorial e de grupos populacionais vulneráveis, considerando a ecologia humana e sua interdependência com outras ecologias, no caso das doenças transmissíveis, e os processos produtivos e de consumo. “Os diferenciais de vulnerabilidade, de exposição, de susceptibilidade e de efeito são importantes de serem conhecidos para as tomadas de decisão nas políticas públicas e isto deveria ser uma atribuição da Vigilância em Saúde, para a qual a vigilância epidemiológica tem uma centralidade na produção de dados e indicadores”, finaliza.
Vigilância Ambiental
Para Alexandre Pessoa, professor-pesquisador da EPSJV, o termo mais adequado para definir esse campo seria vigilância ‘em saúde’ ambiental. Isso porque, numa primeira definição, trata-se da área que gera conhecimento sobre os fatores de risco biológicos e não biológicos relacionados com o ambiente que podem trazer efeitos na saúde, produzir doenças e agravos. “No entanto, a definição mais abrangente e mais adequada é que a vigilância em saúde ambiental é um conjunto de ações que resulta num conhecimento sobre as alterações, as mudanças que ocorrem nos determinantes e condicionantes do meio ambiente que interferem na saúde humana”, define o pesquisador.
Na prática, a vigilância em saúde ambiental costuma ser fatiada em diversos programas tanto em nível nacional como estadual e municipal. Ela se materializa, por exemplo, na vigilância de populações expostas a contaminantes químicos, de populações expostas à poluição atmosférica e até mesmo na vigilância de saúde ambiental de fatores de risco associados aos desastres. “O escopo da saúde ambiental é muito amplo e exige uma continuidade de recursos expressivos, pois quando a vigilância em saúde ambiental está funcionando adequadamente, ela é pouco perceptível para a população de uma forma geral. Sua importância aparece exatamente quando o sistema não está devidamente estruturado”, diz.
O controle da qualidade da água é um bom exemplo, segundo ele, pois requer o fornecimento contínuo em quantidade e qualidade. Quando os padrões de potabilidade não são atendidos, imediatamente a população fica exposta à contaminação e pode com isso haver surtos epidêmicos, como aconteceu recentemente com a Hepatite A no Rio de Janeiro. “No caso da água, que tem um elemento de centralidade na vida de pessoas, o aspecto quantitativo é fundamental: se passamos por uma crise hídrica, diante de situações de emergência, com prolongamento da escassez, estresse hídrico no semiárido, obviamente a demanda da vigilância aumenta, porque a luta pelo acesso à água requererá novas fontes e essas fontes são mais vulneráveis à contaminação”, explica Alexandre Pessoa.
Também na vigilância ambiental a falta de intersetorialidade persiste e soma-se às vulnerabilidades institucionais. Para Alexandre Pessoa, a questão é que a vigilância não pode se restringir a trabalhar com a produção de dados, mas deve agir para reverter esses cenários [produtores de doenças]. E isso, em muitos casos, atinge os interesses de grandes corporações. “O território é, por excelência, um espaço de poder, de disputa de interesses e de usos. Então, o poder do Estado precisa ser materializado por meio de suas políticas públicas, caso contrário, a vulnerabilidade socioambiental se expressa de várias formas”, explica. Um exemplo importante, segundo ele, está na vigilância relacionada aos fatores das populações expostas à contaminação de químicos. E aqui voltam a cena os mesmos agrotóxicos que apareceram como nó crítico na atuação da Anvisa, lá no debate sobre a vigilância sanitária. O Brasil ocupa o 1º lugar no ranking mundial de consumos de agrotóxicos. De acordo com o Instituto Nacional do Câncer (Inca), é como se cada brasileiro tomasse um galão de cinco litros de veneno por ano. A vigilância ambiental, nesse caso, deveria atuar no monitoramento e controle de fatores de risco do meio ambiente que interferem na saúde humana. Mas não é bem assim que funciona. Pessoa explica que o controle sistemático e contínuo deveria ser baseado no Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA), que desde 2001 realiza anualmente o monitoramento. Mas em 2012 houve uma interrupção desse monitoramento e o relatório só voltou a ser apresentado em 2015. “O monitoramento, o controle e a fiscalização precisam ser constantes, caso contrário, amplia a vulnerabilidade. Está relacionado também com o corte de recursos orçamentários”, afirma Alexandre. Como a produção de agrotóxicos é um negócio muito lucrativo, esse é também um bom exemplo dos tais interesses privados que interferem no trabalho da vigilância ambiental.
Ele destaca ainda o trabalho feito pelo agente de vigilância em saúde – que na maioria das vezes, é chamado de agente de controle de endemias – no território como um elemento importante nesse monitoramento. “Esses trabalhadores da saúde, que são o contato direto com o território e com a população, precisam ter uma continuidade no seu processo formativo. Inclusive para que ele possa ter no seu itinerário formativo uma qualificação de técnico de vigilância em saúde. Esse também constitui um desafio para a vigilância ambiental em saúde”, diz.
Saúde do Trabalhador
A cada três horas, um trabalhador morre por acidente de trabalho no Brasil, de acordo com o Observatório Digital de Saúde e Segurança no Trabalho. O dado por si só reforça a importância do setor de vigilância em saúde do trabalhador, que agrega um conjunto de ações que auxiliam na proteção e na recuperação da saúde da população trabalhadora, que tem como objetivo a promoção da saúde e a diminuição dos riscos de acidentes de trabalho, morte e adoecimento. No SUS, a saúde do trabalhador está definida como conjunto de atividades que, através de ações de vigilância epidemiológica e sanitária, se destina à promoção, proteção, recuperação e reabilitação da saúde dos trabalhadores submetidos aos riscos e agravos advindos das condições de trabalho.
No entanto, essas ações transversalizam as políticas e os programas de, pelo menos, quatro Ministérios: da Saúde, do Trabalho e Emprego, da Previdência Social e do Meio Ambiente. Celia Regina, da Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Costeiras e Marinhas do Brasil (Confrem) e convidada da Conferência de Vigilância em Saúde, considera que a atuação desses organismos tem se mantido restrita ao campo específico, sem articulação de diretrizes, o que interfere nas formulações e no fortalecimento dessa vigilância da saúde do trabalhador. Celia apresentou exemplos concretos de como essa falta de integração política prejudica a vida de muitos trabalhadores dos manguezais da reserva de Mocapajuba, em São Caetano de Odivelas, Estado do Pará. “E é por conta dessas marisqueiras, que temos um mangue preservado e cheio de caranguejos, mas qual a segurança que elas têm em se tratando de saúde do trabalhador? Elas não têm Equipamento de Proteção Individual (EPI). Sem mencionar que o trabalhador do manguezal, o caranguejeiro, usa durante um ano de trabalho cerca de 40 litros de óleo diesel no corpo”, contou. Para a militante, os povos de comunidades tradicionais são historicamente discriminados e abandonados. “Não é possível discutir a equidade do SUS excluindo, por exemplo, as condições de trabalho dos agentes comunitários de saúde que trabalham na Amazônia. Que muitas vezes não tem nem combustível para o barco para atender as comunidades isoladas. Passam horas sem comer nessas longas viagens de barco e ficam expostos a vários perigos”, lamentou.
Leticia Oliveira Gomes de Faria, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), também participante da Conferencia Nacional de Vigilância em Saúde, lembrou que durante o desastre que atingiu a cidade de Mariana (MG), após rompimento de um barreira, 15 trabalhadores morreram. E os casos de adoecimento continuam. “O grupo que trabalha com a reparação os atingidos é o que mais sofre. E o setor onde os trabalhadores mais adoecem, mais sofrem mutilações e mais morrem”, contou. E olha a presença dos interesses privados aqui de novo: soma-se a isso a estreita relação da Samarco, empresa responsável pelo crime ambiental de Mariana, com a prefeitura e com o sistema de saúde. “Na cidade existem vários casos de assistentes sociais que, ao repassarem as informações para os setores responsáveis, sofrem assédio ou são demitidos. Essa pressão faz com que muitos relatórios deixem de ser apresentados e muita coisa fica escondida. Para nós é um absurdo que o criminoso tenha a função de cuidar da vitima”, denunciou.
Delegado representante dos trabalhadores na Conferência, Raphael Domunt Schlegel, releva que discutir as diretrizes para vigilância da saúde do trabalhador num contexto de controle social é um passo importante. “Todas as propostas relativas ao tema pressupõe qualidade no processo de trabalho, uma organização melhor no sistema de saúde”, disse. Raphael também reforça a importância de debater especificamente o trabalhador da saúde. “As propostas contemplam aqueles anseios que a gente tem com relação àquilo que a gente não consegue oferecer para o usuário, e olha também um pouco para o nosso processo de trabalho, para nossa própria saúde, como que ela vem andando, o que pode ser feito para melhorar, tanto de volta para o usuário como pra gente também, diante do trabalho que a gente vem desenvolvendo”, resumiu.
O braço da Vigilância em Saúde
O trabalhador da vigilância é bastante antigo no campo da saúde pública. Teve suas primeiras ações juntamente com a criação do Fundo Nacional de Saúde (FNS), durante a Segunda Guerra Mundial, para combater os vetores na Amazônia, de modo a evitar que os trabalhadores da borracha adoecessem. Seringueiro saudável significava matéria-prima dos armamentos garantida. De lá para cá muita coisa mudou, a começar pelo nome, que deixou de ser guarda de saúde pública e passou a ser agendes de combate a endemias (ACE). Em 1999, esses trabalhadores, cerca de 24 mil, antes vinculados ao governo federal, passaram por um processo de descentralização. É nesse momento que a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) propõe um processo formativo diferenciado. “Havia um processo de trabalho muito fragmentado sobre as doenças. Então a Escola fez proposta formativa que tinha como princípio básico o olhar sobre o território e as condições de vida da população”, conta Gracia Gondim, pesquisadora da EPSJV.
Naquele momento, nasceu o Programa de Formação de Agentes Locais de Vigilância em Saúde (Proformar), com o objetivo de oferecer a formação inicial e posteriormente a formação técnica para esses trabalhadores. Entre os anos de 2000 a 2006 o Programa qualificou 32 mil trabalhadores no Brasil, na modalidade de 168 horas. Em 2004, com Secretaria de Vigilância em Saúde e a Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação na Saúde (SGTES), no Ministério da Saúde, fez a proposta de formação técnica em vigilância em saúde. Ao mesmo tempo em que o Ministério da Educação (MEC) abre processo de formulação para habilitação técnica e convida Escola para a formulação do curso. “Em 2007, a Escola começa a formar alunos do Ensino Médio integrado a Educação Profissional e, em seguida, os trabalhadores do SUS”, lembrou Gracia.
A defesa é de que a formação sob a ótica da Vigilância em Saúde propicia a esses trabalhadores um olhar amplo sobre o território, as condições de vida, a situação de saúde, não somente para o controle de vetores. “São trabalhadores que estão voltados para os determinantes sociais da saúde e muito menos para as doenças. É claro que eles são capazes de reconhecer as doenças, ou seja, podem entrar numa residência e ver que se tem uma criança com uma barriga grande, provavelmente ela pode estar com verminose. Mas ele não é o trabalhador que vai fazer uma ação diretamente vinculada a essa criança. O que ele vai ver? Se ele está com lombriga, provavelmente, não tem saneamento, está botando o pé no esgoto”. A partir daí, a vigilância em saúde como Modelo de Atenção também é empregado na formação.
Mas muitos municípios ainda não oferecem a formação técnica. No entanto, mesmo os que atuam como técnicos em vigilância em saúde ainda não são reconhecidos porque não existe uma regulamentação profissional para a categoria. “Mais importante que profissionalização da categoria, é luta por dentro do Sistema Único de Saúde também, pela valorização desses profissionais”, alerta Gracia.
No entanto, apesar de existir esse curso, com essa perspectiva, o Ministério da Saúde está financiando, pelo Profags, que esses trabalhadores sejam formados como técnicos de enfermagem, que têm atuação completamente diferente. “A discussão de técnico de enfermagem caminha no sentido contrário do que entendemos do que sejam as atribuições, o processo formativo e as competências dos técnicos de vigilância em saúde. A análise das condições ambientais é uma análise multiescalar, são várias escalas que os problemas ambientais ocorrem, e ela é multidimensional, tem aspectos tecnológicos, ambientais, mas também deve se considerar os aspectos socioculturais”, lamentou Alexandre Pessoa. Ele lembra, por exemplo, que o Brasil está elaborando um Programa Nacional de Saneamento Rural, no qual a figura do Técnico em Vigilância em Saúde é fundamental para o diálogo com as comunidades sobre o uso dos recursos naturais na concepção da habitação, na escala habitacional, comunitária.
Alexandre ainda ressalta que o processo formativo é fundamental para que a atribuição da educação em saúde seja devidamente incorporada na dinâmica do trabalho dos ACEs. “O cenário que estamos presenciando de flexibilização da legislação trabalhista e da legislação ambiental sem dúvida intensifica a vulnerabilidade socioambiental, fragiliza os instrumentos de controle sobre as empresas e os processos que ocorrem no território”, lamenta.
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