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Agroecologia em prática nos territórios

Lideranças valorizam conhecimentos tradicionais diante de eventos climáticos extremos
Paulo Schueler - EPSJV/Fiocruz | 17/04/2025 14h45 - Atualizado em 17/04/2025 14h46

Neiriel Terena, do povo Terena, é integrante da Organização Coletiva Ambientalista de Ação para a Natureza, Agroecologia e Sustentabilidade (Caianás), que trabalha com tecnologias sociais e ambientais, como sistemas agroflorestais, para promover a agroecologia e a justiça climática. Sua atuação, no território indígena Cachoeirinha, localizado no Mato Grosso do Sul em área de transição entre os biomas Cerrado e Pantanal, traz desafios adicionais para a comunidade, como a pressão do agronegócio, a invasão de terras e a contaminação por agrotóxicos, que afetam diretamente a água e o solo.

Neiriel enfatiza a importância da união entre os conhecimentos tradicionais indígenas e a ciência acadêmica para fortalecer as ações agroecológicas que, no território em que vive, são vistas como uma continuação de práticas ancestrais, como o plantio de sementes crioulas e o manejo sustentável do solo. “As respostas para a crise climática nós temos fornecido principalmente na implementação de tecnologias tanto sociais quanto ambientais, tecnologias de agricultura que vêm da união de saberes”, analisa.

Segundo Neiriel, os impactos da crise climática já chegaram àquele território indígena, e se fazem sentir em transformações que à primeira vista não trariam impactos, como a redução do orvalho. “O mato aqui está sem orvalho. Uma anciã falou que antigamente não era assim, até às oito horas da manhã a gente encontrava esse orvalho, esse sereno, e saía praticamente com as calças molhadas dentro da mata, mas hoje já não é mais assim. Está esquentando muito e com isso os orvalhos secam muito mais rápido, que é impossível você encontrar orvalho dentro da mata. Então a gente precisa entrar na mata bem mais cedo, porque às sete horas da manhã o calor já não permite”, comentou. Em entrevista ao jornal A União, da Paraíba, em 15 de maio de 2022, o pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) Jean Pierre Henry Balbaud Ometto corrobora o conhecimento Terena afirmando que “no Centro-Oeste e Sudeste brasileiros, o aumento da temperatura faz desaparecer animais que bebem orvalho. Há uma tendência de que o processo de perda de água por evaporação seja maior que a entrada por precipitação”.

O jovem do povo Terena afirmou que a comunidade tem respondido a esses desafios com práticas como a irrigação sustentável e o reflorestamento, mas enfrenta dificuldades, como a escassez de água, decorrente da degradação de nascentes que estão situadas fora do Território Indígena, este mesmo alvo de disputas. “É uma terra que tem 36 mil hectares, porém apenas 2,6 mil hectares estão em posse do povo Terena”, atesta.

Neiriel destaca a importância da produção de alimentos para o consumo próprio das aldeias no território Cachoeirinha, priorizando a subsistência antes da comercialização. Ele menciona iniciativas como a introdução da agroecologia nas escolas, onde as crianças aprendem a plantar e a valorizar os alimentos saudáveis produzidos localmente. “A gente atende cerca de mil a 2 mil pessoas dentro desses dois territórios. A gente planta desde hortaliças, quiabos, repolhos, couve, tomate, cebolinha, abóbora, coisas que são bastante consumidas. E tem as roças de mandioca, de milho, e mais de 100 árvores de 32 espécies plantadas. Dessas cerca de 100 árvores, 10% representam manga, laranja, goiaba, até cacau a gente tem plantado aqui dentro do território”, comenta.

Energia renovável precisa respeitar comunidades

Coordenadora da Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia na Borborema, região da Paraíba, Roselita Albuquerque luta em defesa dos territórios no semiárido brasileiro. Seu relato reflete a resistência de comunidades rurais frente aos impactos das mudanças climáticas e à expansão de grandes empreendimentos, como parques eólicos e usinas solares, que ameaçam os modos de vida tradicionais, a agricultura camponesa e a soberania alimentar daquelas populações.

Ao ser apresentada ao conceito de agroecologia através do trabalho da ONG AS-PTA (Agricultura Familiar e Agroecologia), ela percebeu que a ideia era a sistematização das práticas já usadas por seus pais e avós, como o cultivo diversificado e o uso de sementes crioulas. Essa identificação a levou a valorizar os saberes tradicionais e a se engajar na promoção da agroecologia como um modelo de produção sustentável e justo.

Atualmente, Roselita é uma das organizadoras das lutas da comunidade local diante da expansão de grandes empreendimentos de energia renovável do semiárido, que convertem a energia eólica, do vento, em energia elétrica. Segundo ela, outras localidades do semiárido atravessam a expansão das chamadas “fazendas solares”, áreas ocupadas pelos painéis solares. E, na avaliação da agricultora e militante, esses projetos, embora apresentados como soluções para a transição energética, têm impactado negativamente os territórios, desorganizando a vida das comunidades e degradando o meio ambiente e desestruturado o patrimônio agroecológico construído ao longo de décadas, inclusive as redes de agricultores que produzem alimentos saudáveis e livres de agrotóxicos. Além disso, segundo ela, vêm sendo implantados sem o devido respeito a direitos fundamentais, como a consulta prévia, livre e informada aos povos interessados sobre obras e infraestrutura “suscetíveis de afetá-los diretamente”, como determina a Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário. “As empresas não cumprem essa legislação, e violam direitos dos agricultores. É por isso que organizamos a Marcha pela Vida das Mulheres, aqui no território, que já vai para a 14º edição. Ela tem se organizado para denunciar e ao mesmo tempo proteger o nosso território, porque a gente diz que tem um patrimônio construído que não pode ser jogado fora em função de uma transição energética que não é inclusiva, que viola direitos dos camponeses e camponesas. As violações aos direitos dos agricultores estão acontecendo em vários lugares desse semiárido brasileiro, porque é aqui onde se está a maioria do que se tem no Brasil, hoje, do que se chama de produção de energia renovável”, denuncia.

Lançado em janeiro de 2024 por um conjunto de movimentos sociais e institutos de pesquisa, o documento ‘Salvaguardas socioambientais para energia renovável’ atesta que “embora carreguem o rótulo de energia limpa, a forma como as grandes usinas eólicas e solares e suas linhas de transmissão vêm sendo instaladas no Nordeste brasileiro está longe de ser inofensiva” e lista uma série de recomendações para a implantação desses empreendimentos a paritr da seguinte provocação: “como nosso país pode gerar e transmitir energia renovável sem violar direitos humanos, causar injustiça e racismo ambiental nos territórios, colocar em risco a produção de alimentos e a segurança alimentar, provocar desmatamento e perda de fauna e biodiversidade, e sem estabelecer relações contratuais abusivas e concentração de renda e levar à expulsão das comunidades rurais da terra?”.

Em 18 de fevereiro deste ano, o governo do estado chegou a ordenar a paralisação dos parques eólicos dos municípios de Caetés e Venturosa, após indígenas Kapinawá ocuparem por dois dias a Agência de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco (Adepe). Uma semana depois, o Intercept Brasil publicou a matéria ‘Grilagem verde’, sobre empresas ligadas à Enel, Empresa Nacional de Eletricidade, que estão sendo acusadas por moradores do município de Umburanas, na Bahia, de grilar suas terras para gerar energia eólica.

Rio Grande do Sul: a Agroecologia diante da catástrofe climática

Miqueli Schiavoni, engenheiro agrícola e militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), descreve em detalhes os impactos da catástrofe climática que atingiu o Rio Grande do Sul, especialmente as enchentes que devastaram comunidades rurais em 2023 e 2024. Em sua narrativa, destaca-se a avaliação de como a agroecologia se mostrou uma ferramenta crucial para a resiliência e a recuperação dessas comunidades, ao mesmo tempo em que expôs as vulnerabilidades do modelo agrícola convencional.

Schiavoni relata que em algumas áreas o solo fértil foi completamente arrastado pela força das águas, enquanto em outras houve sedimentação excessiva, deixando a terra improdutiva. Além disso, a água carregou consigo resíduos de agrotóxicos e outros poluentes, contaminando rios e córregos e ameaçando a saúde das comunidades. De fato, uma  nota técnica do Observatório de Clima e Saúde, da Fiocruz, intitulada ‘Problemas de saúde relacionados ao desastre climático no Rio Grande do Sul - Situação atual e cenários pós-enchente’, lançada em 10 de maio de 2024, alertou para a necessidade de reforço nas ações de vigilância em saúde, dado que a presença de “alguns agentes químicos presentes em saneantes (como o cloro e detergentes), produtos industriais, agrotóxicos e inseticidas (...) pode aumentar ao longo dos próximos meses, tanto de forma direta, com o contato com os produtos e embalagens contaminadas que se espalharam com as enchentes, bem como de forma indireta, pelo contato acidental com águas, solo e alimentos que podem ter sido contaminados pelo vazamento dessas substâncias, principalmente oriundos de locais de armazenagem e indústrias da região.”

Diante da devastação, Schiavoni conta que o MPA e mais de 20 outras organizações colaboraram para que a retomada da rotina entre pequenos produtores se desse em bases agroecológicas. Foram cerca de 5 mil famílias visitadas nos municípios. O movimento optou por garantir a autonomia ou a retomada da produção de comida dessas famílias, entregando sementes de milho e feijão, todas crioulas ou varietais. “Além delas, distribuímos sementes de hortaliças, para a recomposição das hortas, e um kit de mudas frutíferas e outro de mudas nativas, pensando o processo de reposição florestal das áreas. Ramas de mandioca, que também é base da alimentação, e mudas de espécies para alimentação animal, como capim, por exemplo. Uma coisa que nos chamou muita atenção é que havia demanda por mudas de flores, pensando no processo de embelezamento dos entornos das propriedades”, lembra.

Durante essas visitas, Schiavoni pode observar exemplos de agricultores que utilizavam sementes crioulas e práticas como o plantio direto e a rotação de culturas, que ajudaram a manter a estrutura do solo e a reduzir a erosão. Além disso, as hortas agroecológicas e os sistemas agroflorestais, que combinam árvores frutíferas com cultivos agrícolas, mostraram-se mais resistentes aos extremos climáticos. Já nas “áreas que têm uma uniformidade na agricultura, por exemplo, com produção muito grande de soja, de monocultura”, segundo ele, “houve uma remoção muito grande de solo para dentro desses rios, que estão assoreados”, com acúmulo de sedimentos. “E os solos estão praticamente inviabilizados de produção”, lamenta.

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