Segundo o Censo da Educação Superior, divulgado na semana passada, “entre 2014 e 2024, as matrículas de cursos de graduação a distância aumentaram 286,7%, enquanto na modalidade presencial não houve crescimento, e sim queda de 22,3%”. O mesmo documento informa que “o maior percentual de matrículas dos cursos a distância se concentra na rede privada (95,9%)”, principalmente nas instituições de ensino superior com fins lucrativos. Os números, portanto, mostram que a prevalência da EaD tem diretamente a ver com o crescimento da participação das instituições privadas na oferta de ensino superior. Essa afirmação está correta? A que isso se deve?
No Brasil, historicamente, a matrícula no setor privado é maior realmente, isso não é uma coisa nova. O problema é a expansão vertiginosa que a gente enxerga nesses últimos dez anos. O que a gente está vendo acontecer é uma mudança no modelo de negócio das instituições privadas com fins lucrativos. A Educação Superior sempre contou com a participação da iniciativa privada, e nunca foi pouco. Esse [setor] privado era constituído por [instituições] confessionais, comunitárias e por empresas quase que familiares, que tinham interesse educativo mesmo, que estavam dedicadas ao ramo da Educação. Era um negócio, era privado, mas até 1997, as instituições privadas que estavam presentes na Educação Superior não podiam ter fins de lucro. Isso muda no governo Fernando Henrique Cardoso [com o decreto nº 2.306/97]. E aí, nos anos 2000, há uma mudança estatutária nessas instituições. Várias delas, que eram familiares, passam a ter fins lucrativos e, ao mesmo tempo, acontecem fusões. Já se tem aqui o que eu chamaria de uma concorrência difícil de enfrentar: outras empresas vão fagocitar as pequenas empresas familiares. Elas vão crescendo e apresentando possibilidades bem distintas [de cursos]. Estou ainda falando de educação presencial, mas já é um modelo mais massificado.
Passa a ser interessante captar matrículas, sem que isso necessariamente signifique permanência e conclusão. Porque o que importa é o giro do negócio
Em 2007, pela primeira vez essas empresas entram no mercado de ações na bolsa de valores. Elas passam nesse momento por uma transformação importantíssima, que a gente costuma chamar de financeirização. E passa a ser interessante captar matrículas – no ensino presencial ainda –, sem que isso necessariamente signifique permanência e conclusão. Porque [o que importa] é o giro do negócio. E aí a gente tem uma política governamental importante que fomenta isso, que é o Fies, o financiamento estudantil, que explode justamente aí nos anos de 2012, 2013, 2014. É uma loucura. O Fies financia as instituições privadas com e sem fins lucrativos com [ensino] presencial, então, você ainda tem um forte apelo para o presencial. Mas o Fies tem um custo fiscal enorme para o governo e, em 2012, 2013, 2014, há um percentual altíssimo de inadimplência. O governo Michel Temer, em 2017, muda o Fies, mas, mesmo antes, há uma diminuição importante desse financiamento. E o que acontece nesse momento? As instituições privadas, principalmente as com fins lucrativos, começam a estabelecer financiamentos próprios e também financiamentos bancários. Funcionam como bancos. E o que elas fazem? Dão um ‘abraço’ para o [ensino] presencial, que é mais caro, e vão migrando para a Educação a Distância, para esse novo modelo de negócio com cursos mais baratos – porque o Fies financiava cursos também um pouquinho mais dispendiosos, como os da área de saúde e muitas engenharias. Você tem um rearranjo em que a Educação a Distância aparece como uma solução mais barata e, por isso, mais capilarizada. Como ela se capilariza muito mais, os donos dessas grandes empresas, inclusive, fazem a crítica à nova regulação da EaD, dizendo que os maiores prejudicados seriam as pessoas com menos condições. No entanto, é justamente em cima dessas pessoas que esse financiamento cai, é para elas que essa dívida fica. Porque se você olhar a taxa de desistência acumulada dessas instituições, é muito maior do que as taxas de desistência das [instituições] públicas e, inclusive, quando você compara a taxa de desistência dos cursos presenciais e à distância dessas empresas com fins lucrativos, os cursos EaD têm uma taxa estatisticamente muito maior.
É justamente a população mais vulnerável que está submetida a um modelo de negócio que não está ligado em fornecer Educação de qualidade, formação crítica, formação de bons profissionais
Então, o que está acontecendo? Na verdade, é justamente a população mais vulnerável que está submetida a um modelo de negócio que não está ligado em fornecer Educação de qualidade, formação crítica, formação de bons profissionais. Não é isso que está em jogo, o que está em jogo é capturar a matrícula desses estudantes para que eles fiquem endividados e se evadam com formação nenhuma. Não é nem formação precária – é também porque o Enade [Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes] vai mostrar a diferença. Quando o sujeito [estudante de cursos EaD dessas instituições privadas com fins lucrativos] consegue terminar, ele desempenha muito pior. Isso quando ele consegue terminar, porque muitos [abandonam]. É uma barbaridade. Então, isso não tem nada a ver com Educação, isso não é Educação, é negócio.
De fato, esse último censo da Educação Superior também mostra que, quando mudamos o indicador de matrículas para concluintes, o retrato se inverte: 54,7% dos concluintes em 2024 eram de cursos presenciais e a taxa de evasão da EaD é muito maior que a dos cursos presenciais, 24% contra 9,5%. Como se explica isso?
A Educação é relação entre as pessoas
Seja Básica ou Superior, a Educação é relação entre as pessoas. Ainda que se possa ter muitas críticas, quando vai para a escola ou para uma universidade pública ou privada em que há um ambiente educacional, você se relaciona com o seu professor, tem um ambiente universitário com condições de estabelecer relações com outros estudantes, tem acesso, por exemplo, a atividades extracurriculares e programas paralelos de formação, às vezes tem monitoria para as pessoas com dificuldades... Quando você tem um ambiente que favorece a formação, ainda que tenham muita dificuldade, a tendência das pessoas, quando passam do primeiro, do segundo ano, é ficar porque o investimento foi alto. A Educação a Distância dessas instituições privadas não tem critério de matrícula, você vai lá e se inscreve. Você já tem um compromisso muito mais frágil, não tem estímulo algum, o seu professor não te conhece, não conversa com você. Até aqueles tutores estão desaparecendo, porque você tem agora instrumentos de inteligência artificial que estão tomando o lugar dos tutores e dos professores. Você tem uma aula à distância, por vezes, síncrona, ou seja, [em que estudante e professor estão on line] ao mesmo tempo, e tem mais de 1.500 pessoas [na sala]. A pessoa que está ali e tem alguma dificuldade, que não está entendendo alguma coisa, você acha que ela vai correr à apostila, como eles dizem?
É só você imaginar o que é participar de uma coisa que absolutamente não tem significado. São poucos os que conseguem atravessar isso, geralmente, pessoas um pouco mais velhas ou quem está em uma segunda graduação. Porque também tem isso: quem fica na EaD, muitas vezes, é quem já é formado e precisa. ‘Eu sou professor de física e, para virar diretor ou coordenador da minha escola, eu precisaria fazer pedagogia ou um mestrado. Vou fazer uma pedagogia à distância, e aí eu pego aquele diploma, mas para fortalecer aquilo que já estou fazendo’. Então, é um compromisso muito frágil.
Pedagogia, inclusive, é o curso que, de longe, tem mais matrículas em EaD, segundo os dados do Censo. Em seguida, vem o curso de administração. São essas necessidades a que você fez referência que explicam esse ranking?
Eu acho que não é só isso que explica. Eu acho que quem consegue concluir o curso de pedagogia geralmente já está em uma rede trabalhando como professor licenciado em outra área. Eu conheço porque sou professora do curso de pedagogia, tenho estudo de Educação Básica e formação de professores há muito tempo, então eu dei esse exemplo com consciência de que isso acontece bastante...
Mas então isso explica mais a conclusão do que o ingresso num curso de EaD. É isso?
O cara tem uma formação geralmente precária na Educação Básica, entra num curso de pedagogia à distância, consegue se formar e volta para a Educação Básica pública mal formado. É um ciclo vicioso
Isso. O que ocorre é que tanto pedagogia quanto administração são dois cursos muito amplos em termos de acesso ao mercado formal e também informal de trabalho. Por exemplo, com um curso de pedagogia, você pode fazer várias coisas para além de estar na escola de Educação Infantil e de Ensino Fundamental. As escolas de Educação Básica no Brasil são quase todas públicas e a rede pública de Educação Básica, em comparação com a privada, com exceção das escolas de elite, paga muito melhor. E o estudante que vai fazer pedagogia vem de classe popular. Ainda que a gente possa dizer que o professor é desvalorizado, entrar nessa profissão para um sujeito que vem da classe popular não é ser desvalorizado, ao contrário, talvez ele seja quem mais ganha na família. Veja você o mal que nós estamos fazendo: o cara tem uma formação geralmente precária na Educação Básica, entra num curso de pedagogia à distância, consegue se formar e volta para a Educação Básica pública mal formado. É um ciclo vicioso. Já com o diploma do curso de administração você consegue, muitas vezes, acessar e ficar na frente de quem tem nível médio. É um pouco isso que acontece.
No início do primeiro governo Lula, o Brasil assistiu à ampliação da Rede Federal e a concursos públicos, entre outras medidas que fortaleciam a Educação pública, inclusive de nível superior. Mas os dados da última década, trazidos pelo censo, mostram que “no período compreendido entre 2014 e 2024, a rede privada cresceu 73,1%, enquanto a rede pública apresentou crescimento de 4,9%”. A que isso se deve? O que justifica esse crescimento tão grande do setor privado e, consequentemente, da modalidade à distância também? Em relação a esse período, você chegou a falar do Fies, mas existem outras razões?
Eu falei do Fies e deveria ter falado também do ProUni [Programa Universidade para Todos], que é o outro incentivo [público ao ensino superior privado]. Em termos de desempenho, o estudante do Fies [se sai] pior do que o do ProUni. Porque o ProUni já é mais seletivo: tem que ter uma nota mínima no Enem [Exame Nacional do Ensino Médio] para acessar o programa... Quem vem para o ProUni, ainda que seja de extração popular, passa por um filtro. Você vê um número maior de concluintes no ProUni do que no Fies. E o ProUni também está vinculado às instituições privadas, muitas confessionais, muitas comunitárias, mas não só, há também instituições privadas com fins de lucro. Então, há duas políticas que estimulam a iniciativa privada e o seu crescimento.
Onde está a produção científica do Brasil? Noventa e tantos por cento está nas universidades públicas
O ReUni [Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais] fez uma expansão na rede de universidades e institutos federais. Mas como é que elas cresceram? Abrindo cursos no período noturno, aproveitando a infraestrutura instalada... A ideia era aumentar o número de alunos por professor. Por mais que elas fizessem, e mesmo construindo campi novos, foi limitado esse crescimento. Os institutos federais cresceram mais, mas também, de uma certa forma, limitadamente diante do que foi [o crescimento da rede privada]. É muito mais fácil para o governo financiar e deixar o setor privado investir e crescer do que assumir orçamentariamente o crescimento de toda a infraestrutura e pessoal [das instituições públicas de ensino superior], que é uma coisa muito cara. Você não entra na universidade federal [como professor], praticamente, se não for doutor. Onde está a produção científica do Brasil? Noventa e tantos por cento está nas universidades públicas. Então, o sujeito não vem para a universidade federal só dar sua aula, ele tem que fazer um monte de outras coisas. Não dá para pegar um professor da universidade federal e fazê-lo ser professor horista, como você faz nas outras instituições de ensino superior.
Então, a gente tem que deixar claro que fazer crescer as universidades públicas federais é um projeto arrojado e precisa ser muito estratégico para responder às grandes demandas de desenvolvimento social, econômico e cultural do Brasil. Você precisa pensar estrategicamente, porque é caro. Por isso que você tem aqui um limite. Crescer [o acesso ao ensino superior com] as [instituições] privadas podia fazer parte do jogo, mas não nessa dimensão. Não existe isso nem nos Estados Unidos. Talvez o país que tenha mais privadas do que o Brasil seja o Chile. Esse modelo de Educação Superior que a gente tem no Brasil é uma coisa não comparável.
É correto dizer que, passando por diferentes governos, de diferentes partidos, a estratégia política de ampliação do acesso ao nível superior no Brasil tem sido prioritariamente a rede privada, tanto com atuação própria como financiada com recursos públicos?
É isso. Essa é a grande opção.
Embora a curva de cursos de graduação à distância seja ascendente desde o início dos anos 2000, os dados do Censo mostram uma aceleração desse crescimento, que chega a 256%, entre 2018 e 2024. O que aconteceu nesse período que explique essa variação?
Essa é uma pergunta de um milhão de dólares [risos]. Eu tenho para mim que é o modelo de negócios que começa a mudar em 2015, 2016, 2017. Você tem uma traulitada enorme no Fies. Ele murcha, praticamente se torna algo lateral, e as instituições privadas passam a funcionar como bancos. É o que eu falei no começo. Eu acho que essa é a virada. Depois a gente entra na pandemia e não tem dinheiro para nada. Teve ajuste fiscal, corte em política social... Diante de tudo isso, essas instituições privadas e lucrativas precisaram mudar o seu nível de negócio. E é aí que eu acho que está a explicação para essa loucura.
Apesar de os cursos EaD estarem concentrados na rede privada, verifica-se também um crescimento regular da oferta de vagas de graduação à distância nas instituições públicas, embora haja crescimento também na oferta do presencial. Há políticas públicas fomentando essa oferta? A que isso se deve?
Eu acho que o Ministério da Educação tinha que voltar, por exemplo, com a política da Universidade Aberta do Brasil, a UAB. Ele simplesmente não está mais financiando a Universidade Aberta do Brasil, que, justamente, era a formação, à distância, de professores pelas universidades públicas, fundamentalmente, daqueles professores que precisavam fazer uma segunda graduação. É uma tristeza, porque isso tudo migrou para as privadas também. Evidentemente, esse mercado foi ocupado. Porque você sabe que não fica lugar vazio na guerra do mercado educacional. Se tem uma iniciativa importante de Educação à distância pública, na minha opinião, é o Cederj, no Rio de Janeiro. Nós temos iniciativas de Educação a distância públicas bem-sucedidas, nas quais a gente poderia investir e multiplicar, além da UAB, que eu também acho que é uma iniciativa que foi muito interessante, apesar de alguns problemas. A gente tem que olhar de uma maneira sistêmica para o que está acontecendo [com a Educação Superior] nessas diversas instituições e redes.
Mas, então, não seria um problema se tivéssemos esse volume de cursos em EaD se, em vez de serem ofertados por instituições privadas com fins lucrativos, que fazem disso seu modelo de negócios, eles fossem iniciativas de instituições públicas?
Minha posição é de que, se possível, toda Educação deveria ser presencial, fazendo uso de diferentes recursos [educacionais]. Essa é a minha posição ideal. A Educação presencial é fundamental. Mas dá para fazer Educação à distância de boa qualidade? Eu digo para você: dá. Tem o Cederj e mesmo, talvez, algumas iniciativas privadas que eu desconheça, mas se você pegar instituições internacionais, há várias coisas sensacionais à distância. Eu não sou contrária a nenhuma tecnologia, só que a gente precisa saber usá-la.
A Educação a Distância pode ter qualidade e ser um tipo de solução para capilarizar a Educação aonde ela não chega. Agora, fazer isso tem um custo alto
Agora, mais do que tudo isso, se a Educação a Distância fizesse aquilo que prometeu fazer, que é alcançar, por exemplo, as populações ribeirinhas, aonde só se chega de barco... Lá, a Educação a Distância é uma solução. Mas tem sinal da internet lá? Os polos de Educação a Distância dessas instituições privadas são pouquíssimo frequentados, por isso essa regulação é importante, para botar um pouco de ordem nisso. E muitas vezes, o polo presencial está nas grandes capitais. Não se está fazendo aquilo que eles dizem que fazem, que é chegar às populações que não têm acesso. Porque chegar à população que não tem acesso, por EaD, custa caro. Então, na minha opinião, a Educação a Distância pode ter qualidade e ser um tipo de solução para capilarizar a Educação aonde ela não chega. Agora, fazer isso tem um custo alto. Não é do jeito que está sendo feito.
O PNE que ainda está em tramitação no Congresso (PL 2.614/24), tem um objetivo (13) de “ampliar ao acesso, a permanência e a conclusão na graduação, com redução das desigualdades e inclusão”. A meta 13.c, associada a esse objetivo, fala em números absolutos: alcançar 1,65 milhão de titulações ao final dos dez anos, sendo 300 mil na rede pública, o que, em termos percentuais, dá 18%. Essa é uma redução significativa em relação aos 40% de que falava a meta 12 do PNE atualmente em vigor, que expira este ano, embora este trate de matrícula e o Projeto de Lei fale em titulação. O texto ainda deve sofrer várias alterações no parlamento, mas é uma proposta apresentada pelo Executivo que, portanto, mostra os caminhos priorizados pelo governo. Queria uma análise sua sobre isso.
Algum desses objetivos [do Projeto de Lei do novo PNE] fala do financiamento?
Há um objetivo, nº 18, que trata do financiamento da Educação Básica, retomando a proposta de investimento de um percentual do PIB... Mas não tem objetivo nem meta específica para o financiamento da Educação Superior.
Eu acho o seguinte: a gente fica falando desses números, mas o que está acontecendo com o financiamento das universidades? Porque atingir [a meta do] PNE que está em vigor é uma espécie de wishful thinking [pensamento positivo] se você não discutir as estratégias financeiras para isso. Para mim, aqueles 40% [de ampliação de matrículas de ensino superior nas instituições públicas] mostraram o que eu estou falando, wishful thinking. Eu acho que os 18% [de ampliação de titulação no ensino superior em instituições públicas] de agora mostram uma tendência de redução na expectativa do crescimento da rede federal [de ensino superior].
Na Educação Básica, você tem uma subvinculação constitucional que se chama Fundeb [Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação]. Para financiar a rede federal de ensino não tem. Diferente da USP, Unicamp e Unesp, que recebem [um percentual] do ICMS, em que o orçamento é da universidade, nas federais isso não acontece. Um reitor não tem como projetar um crescimento ou uma expansão para uma determinada área do conhecimento ou cursos altamente inovadores que demandem, por exemplo, construção de laboratórios, porque quem define o orçamento [das universidades públicas federais] é o Congresso Nacional. E esse Congresso Nacional que está aí. Então, eu acho que [a mudança no PL do futuro PNE] mostra uma tendência de que a gente vai ficar mais subfinanciado, infelizmente, num momento em que, neste governo, nós tínhamos uma janela de oportunidade. Há uma dificuldade desse governo de fazer o que os governos Lula 1 e 2 fizeram. Porque, ainda que tenham feito crescer as [instituições] privadas [de ensino superior], eles também fizeram crescer a rede federal. E agora não é isso o que nós estamos vendo. Nem manter... Eu sou coordenadora de pesquisa de um centro de estudos chamado ‘Sou Ciência’. Se você olhar o nosso painel do financiamento da Educação Superior, vai ver que é realmente muito difícil pensar em qualquer coisa com esse histórico de financiamento que nós estamos tendo nos últimos anos.
Eu queria, por fim, lhe perguntar sobre como anda a regulação da Educação a Distância no Brasil. A principal novidade no âmbito regulatório, que ainda não teve tempo de ter efeitos sobre os resultados do Censo recém-divulgado, é o decreto 12.456, que dispõe sobre a oferta de EaD na graduação e pós-graduação. Queria sua avaliação sobre isso.
O novo marco regulatório da Educação a Distância é um avanço
Olha, eu digo para você que o novo marco regulatório da Educação a Distância é um avanço. O decreto se coloca como uma possibilidade real de coibir práticas tão predatórias como as que a gente estava vendo. Ele traz, por exemplo, uma exigência de presencialidade que não tinha antes, de maior qualificação do corpo docente, exige uma infraestrutura mínima obrigatória, trata das questões de método, de material didático. Ele fala de uma série de coisas que a gente não tinha antes, coisas que não estavam reguladas de uma maneira tão clara. Tira alguns cursos da possibilidade de serem [ofertados] completamente à distância. Então, avança em muitas coisas. Agora, como eu estudo política pública de Educação, como é que olho para esse decreto? Eu acho que esse decreto foi um freio no que vinha acontecendo, que era uma exposição grande de várias dessas coisas que nós conversamos aqui. E um consenso possível. Porque existem muitos interesses em jogo, muita pressão, muito lobby.
Quando trata das licenciaturas, por exemplo, o decreto diz que esses cursos só podem ser semipresenciais, precisam ter um mínimo de 30% de carga horária presencial e um mínimo de 20% de atividades síncronas. Mas o que pode estar nesses 30% de carga horária presencial? Por exemplo, como é que vai ser regulamentado o estágio nas licenciaturas? Vai ser considerado dentro desses 30% de carga horária presencial? Então, tem toda uma discussão que nós ainda vamos ver. No meu ponto de vista, muitos avanços talvez depois sejam negociados por essas grandes empresas. A rede pública [de ensino superior] representa cerca de 20% das matrículas. Na rede privada, você tem grandes conglomerados educacionais que são responsáveis por [pelo menos] 70% dos outros 80%. E se você tem dez grandes grupos que detêm esse número de matrículas, eles têm um poder de pressão muito grande. Eu diria que essa conquista, que pode parecer ainda muito frágil e cheia de problemas, foi um pequeno avanço no mar de retrocessos em que nós vínhamos vivendo.
Eu vou terminar um pouco mais otimista. A gente costuma reputar essas coisas ao governo A ou B, mas eu também acho que tem muita gente na estrutura do Ministério da Educação que luta por [melhorias]. Apesar de a burocracia pública estar muito combalida, ainda tem gente lá que está fazendo o seu trabalho.