A Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) promoveu, no dia 4 de abril, uma atividade para marcar os 60 anos do golpe de 1964, completados no dia 1º de abril de 2024. Com o tema “Descomemoração dos 60 anos do golpe de 1964”, a atividade, organizada pelos professores-pesquisadores da EPSJV/Fiocruz, André Dantas e Helena Vieira, buscou apresentar e problematizar a serviço de quem estava o golpe empresarial-militar e os 21 anos de ditadura brasileira e quem estava na contramão dos interesses daqueles que permaneceram no poder.
Na parte da manhã, o bate-papo contou com a participação do jornalista Cid Benjamin e da professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e integrante do Grupo Tortura Nunca Mais (GTMN-RJ), Joana D’arc Fernandes Ferraz.
Na mesa de abertura, representando a Direção da Escola, o coordenador geral do Ensino Técnico de Nível Médio em Saúde da EPSJV, Jonathan Ribeiro, destacou a importância de se respeitar a democracia e a garantia de espaços que abordem os acontecimentos do passado, porque, segundo ele, “a memória precisa ser preservada para que isso nunca mais volte a acontecer”. “O golpe não só perseguiu militantes de esquerda. O golpe foi e continua sendo uma fissura no Estado brasileiro. Ele perseguiu também pessoas negras, militantes de periferia, pessoas LGBTs e muitas outras. O ato democrático de você discordar de um professor não era possível na ditadura”, completou.
Para André Dantas, a história não é um passado estático, é um presente, que está na disputa permanentemente. “A disputa está dada. Há uma tentativa muito significativa de normalizar o golpe, a ditadura, a repressão, a censura. A importância desse dia é para que lembremos e não deixemos que se repita, porque nós que escolhemos o país que queremos morar”, afirmou.
André apontou ainda o interesse evidente do empresariado nacional e internacional, que, segundo ele, explica, em boa medida, “a participação direta dos Estados Unidos na produção do golpe. Por isso, a denominação mais correta é golpe empresarial-militar".
Falando diretamente com os jovens estudantes da Escola Politécnica, Helena Vieira explicou a ideia do evento: “Pensamos em trazer a discussão para vocês que não viveram. Eu mesma que sou filha da ditadura - meus pais foram militantes – tenho essa lembrança, mas às vezes tenho dificuldade de fazer conexões de como essas coisas começam”. Em seguida, foi exibido um episódio de “Os incontáveis”, uma série documental que aborda diversos aspectos da ditadura e explica suas consequências, em especial, para o país e para os brasileiros.
Cid Benjamin destacou a importância da política para a vida de todas as pessoas e relatou a sua experiência de prisão, tortura e exílio durante o período da ditadura. “A política é essencial para a vida humana. Isso de dizer que ’não me interesso por política’ é uma bobagem. Vocês são alunos de uma instituição pública de excelência e a questão do ensino público vai depender da política. Depende da quantidade de recursos que se destina para saúde, para o SUS, para o ensino. É papel da escola tratar sobre política, no sentido de informar, debater, dar os elementos aos jovens. Além de formar técnicos, formar cidadãos”, ressaltou.
Cid observou que quando se vive em comunidade deve-se ter regras para organizar a vida das pessoas. Essas regras são definidas por leis. “Você elege, por exemplo, governante, prefeito que vai gerir a cidade, o presidente que vai liderar o país, o governador que tem uma série de funções relativas à gestão do Estado”, contou, para continuar: “Quando falamos em golpe, na verdade, é que o pessoal das forças armadas atropelou essas regras, depuseram o presidente eleito e puseram o general para ser presidente, determinando o que vai fazer, o que não vai fazer, sem que as pessoas participassem”.
Depois de contar um pouco de suas memórias, inclusive, algumas que estão no livro “Gracias a la vida: - memórias de um militante”, Cid resumiu: "A militância política sempre esteve no centro da minha vida. Fui preso, torturado, passei dez anos no exílio, fiquei em situações muito precárias, difíceis materialmente. No entanto, não me arrependo em participar da política. Porque ela pode ser a mais nobre das profissões desde que seja desenvolvida com uma visão humanista de melhorar a vida das pessoas”, afirmou Cid.
Em sua fala, Joana D’arc apresentou sua pesquisa que investiga a participação e responsabilização da empresa Aracruz-Celulose durante a ditadura, que geram consequências até hoje. “Apesar de não termos acesso aos arquivos públicos da ditadura, buscamos provas documentais em processos, audiências públicas, arquivos de instituições e também em histórias de vida”, contou, apresentando alguns dos achados: “Por exemplo, Antônio Dias Leite, um dos donos da Aracruz-Celulose e que também era Ministro de Minas e Energia à época, criou uma lei de reflorestamento quatro meses antes da criação da empresa. Nossas descobertas mostraram a relação de diversos empresários da Aracruz-Celulose com cargos políticos”, contou.
Joana falou sobre como a empresa afetou e ainda afeta o modo de vida tradicional de comunidades quilombolas e indígenas. “Além de contaminar a água, a empresa tem o monopólio dos recursos hídricos da região. Uma árvore de eucalipto consome 40 litros de água por dia, então o clima nessa região já é semidesertificado. O que nós vemos é carro pipa passando nos territórios quilombolas e indígenas. Como essas comunidades sobrevivem sem água?”, questiona Joana.
A professora contou que os povos tradicionais perderam suas terras para a empresa durante anos. Como? Ela explica: “O Estado colocava esses territórios como terras devolutas, que eram compradas por funcionários ’laranjas e, em seguida, repassadas para essa empresa. Hoje, o Ministério Público Federal entendeu que essas terras não eram devolutas e os quilombolas estão retomando os seus territórios, por exemplo. De 12 mil, hoje tem apenas três mil quilombolas. É etnocídio”, apontou.
Joana denunciou que, atualmente, passam drones de “veneno” nas plantações, que ficam muito próximas das comunidades, contaminado pessoas e causando doenças, como câncer e cegueira. "Quando estive lá, acordei com um drone em cima de nossas cabeças. Todos os alimentos que os quilombolas têm são envenenados”, lamentou.
Oficina
Na parte da tarde, Luciana Lombardo, do Fórum de Ciência e Cultura, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FCC/UFRJ), , conduziu uma atividade com uso de documentos, fotografias, músicas e produção de cartazes sobre o tema. “A oficina parte de uma experiência da exposição 'Rastros da Verdade’. Fizemos uma pesquisa com muitos documentos da época. Foi daí que fizemos o corte para a série ‘Os incontáveis’, porque começamos a ampliar um pouco os temas que podíamos tratar quando falamos de ditadura, que é um projeto de país, um projeto de classe e um projeto opressor. Aí, vindo para a oficina de hoje, puxamos o fio da memória para tentar contar um pouquinho da nossa história e mostrar o que permanece, porque o fio é o mesmo. Precisamos cortar o fio”, frisou.
Para ela, a hora de tratar sobre ditadura e golpe é na escola. “O Ensino Médio é fundamental para construirmos um pouco de base para as escolhas profissionais, de futuro. Não podemos falar de ditadura só quando eles entram na graduação. A hora é na escola, construir uma base crítica e sensibilizar para os direitos humanos. O tema é transversal a diversas disciplinas”, concluiu.