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‘Não há laicidade sem democracia nem democracia sem laicidade’

Em auditório lotado de jovens estudantes e pesquisadores, José Antonio Sepulveda, professor da UFF, abre o ano letivo da EPSJV/Fiocruz no dia em que se descomemorou 55 anos do Golpe Militar com um debate sobre educação laica
Julia Neves - EPSJV/Fiocruz | 03/04/2019 15h55 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

“Eu sou vítima do período ditatorial. Meu pai era médico, ajudou um grupo de jovens que estava fugindo do Massacre da Praia Vermelha. Ele não era comunista, nem de esquerda. Ele simplesmente ajudou esses jovens e foi perseguido durante anos por causa disso”. O relato foi de José Antonio Sepulveda, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), integrante do Observatório de Laicidade na Educação e líder do grupo de pesquisa sobre Conservadorismo e Educação Brasileira, ao dar início ao ano letivo da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). O evento se deu no marco dos 55 anos da ditadura empresarial-militar brasileira, em 1º de abril, evidenciando os fundamentos e a importância da educação laica nos contextos democráticos.“Laicidade e democracia andam de mãos dadas. Não existe uma sem a outra”, destacou.

Separação de Estado e Igreja

“A separação do Estado e da Igreja não é fácil”, afirmou Sepulveda, relembrando que a construção do Estado contemporâneo no fim do século 18, que teve como símbolo de transformação liberal do mundo o processo da Revolução Francesa, foi carregada de um discurso em defesa da laicidade. “A Revolução na França foi o primeiro momento em que a laicidade se apresenta como um fundamento básico. Porém, Napoleão [Bonaparte] restaurou a relação Estado-Igreja. Somente quase um século depois, em 1905, houve efetivamente essa separação na França”, historicizou. 

Segundo ele, oficialmente o Brasil separa essas instituições antes da França, com o decreto nº119A, de 1890, assinado pelo presidente Deodoro da Fonseca. “Todavia, a França tem um histórico de laicidade muito mais profundo e mais eficiente que o nosso”, contrapôs, explicando a que se refere a laicidade: “A posição laica não é neutra, é imparcial em matéria de religião, seja nos conflitos ou nas alianças entre as crenças religiosas, seja diante da atuação dos não crentes”.

Os conceitos de agnóstico e ateu também foram esclarecidos pelo professor, que acredita que a sociedade brasileira parte do pressuposto de que todos têm uma religião. “Agnóstico é um termo utilizado para pessoa ou pensamento que não afirma e nem nega a existência de uma realidade transcendente. Já ateu é aquele que não tem religião e não segue nenhuma instituição religiosa”, definiu. E, reivindicando a laicidade como a defesa de todas as crenças e não-crenças, resumiu: “Eles precisam ser respeitados”.

Nesse contexto, Sepulveda ressaltou que o Estado laico é imparcial até o momento que seja necessário. E exemplificou: “Ele defende o direito de você ter religião. Ele respeita todas as crenças religiosas, desde que não atentem contra a ordem pública. Cabe ao Estado interferir e punir os casos de violência por motivo religioso”. Diferentemente de Estado laico, o professor definiu a expressão ‘Estado leigo’, difundido durante anos pela sociedade: “Esse termo de origem cristã designou, originalmente, todo indivíduo que não tinha a preparação para as funções clericais, nem feito o voto que levavam ao sacerdócio. A expressão foi estendida ao Estado que não tinha religião oficial. Hoje, o termo leigo é empregado para indicar a falta de qualificação específica de uma pessoa ou de um grupo”.

Sepulveda chamou atenção de outros dois termos relacionados a Estado: o Estado Ateu, que é definido como aquele que proclama que toda e qualquer religião é alienada e alienante, em termos sociais e individuais; e o Estado Confessional, que estabelece uma religião como oficial. “Atualmente, o Estado Ateu, que surge para combater a alienação e tentar suprimir toda e qualquer religião ou dificultar suas práticas, não existe. A manifestação mais eficaz nesse sentido foi a União Soviética. Todavia, jamais conseguiu destruir a igreja cristã-ortodoxa”, exemplificou. Segundo ele, já o Estado Confessional está em muitos lugares. “Na Arábia Saudita, onde até pouco tempo mulher não podia dirigir; no Brasil, esse Estado existiu durante o período imperial”, citou, contando que, segundo critérios desse modelo de Estado, “quem controlava o sepultamento no país, por exemplo, era a igreja católica, e se você não fosse católico não poderia ser enterrado em um cemitério”.

Laicidade no Brasil

“O Brasil é um Estado laico?”, questionou Sepulveda, respondendo que apesar de a palavra laicidade não aparecer na atual Constituição brasileira, ela é garantida pelo Artigo 19, que diz ser “vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; recusar fé aos documentos públicos; e criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si”. Apesar do artigo e de algumas conquistas recentes, o professor atentou para o fato de a laicidade não estar garantida de fato no país, apresentando, como exemplo, fotografias de Casas Legislativas com crucifixos nas paredes. “Isso é manifestação religiosa. É um desrespeito”, alertou. E completou: “O aluno pode expressar sua religiosidade, sem dúvida. Mas a escola pública não, porque vai intimidar os alunos de diferentes religiões. É ilegal e inconstitucional. O conteúdo religioso é extremamente pertinente, uma disciplina sobre religião não”.

Democracia em evidência

A democracia também foi o cerne do debate da mesa de abertura, que antecedeu a palestra de Sepulveda.  Arlindo Gómez, coordenador do Canal Saúde da Fiocruz, ressaltou que, depois de 31 anos da Constituição de 1988, a sociedade se vê diante da necessidade de defender a democracia, de ampliar a defesa de ideais e de reafirmar e ajustar utopias: “Eram tempos de redemocratização, de pensar num novo Brasil, num país a ser refundado. Trabalhávamos com afinco para construir uma sociedade democrática de cidadãos e cidadãs com pleno exercício de direitos individuais sociais, da liberdade, da segurança, do bem-estar, do desenvolvimento, tendo a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceito. Isso está em nossa Constituição. Hoje, somos chamados a defender essa proposta que se encontra ameaçada”, alertou.
Arlindo também relembrou a criação da EPSJV ao homenagear o pesquisador emérito da Fundação e um dos idealizadores da escola, Luiz Fernando Ferreira, falecido em outubro de 2018. “A criação do Poli em 1985 expressaria a relevância de quadros técnicos para a saúde. Nossa utopia propunha um ensino aberto para o mundo, que desse conta de várias dimensões: a formação técnica aliada à ética e à política. Nada de adestramento, e sim a escola como espaço para debate permanente, aberta a diferentes visões de mundo e pluralista, sem discriminações”, sublinhou. E acrescentou: “Nos nossos sonhos não imaginávamos aonde chegaria nosso Poli. Esse complexo de debates, propostas, cursos, publicações, com seu corpo docente organizado e representado por um grêmio estudantil”.

Giovanna Lemos, integrante do Grêmio Politécnico e do coletivo ‘Religião’ da EPSJV, corroborou com Arlindo ao destacar a importância da representatividade estudantil e afirmou que o Grêmio está sempre de “portas abertas” para os alunos, para que juntos possam colocar os valores da EPJSV em prática: “A Escola é para ser plural, diversa, para abrir nossas mentes. Na EPSJV, criamos coletivos para que possamos discutir temas considerados tabus pela sociedade”.

A vice-presidente de Educação, Informação e Comunicação da Fiocruz, Cristiani Machado, falou sobre a importância da educação e da formação crítica para a juventude e saudou a História da Escola Politécnica:  “Existem algumas coisas que são importantes para os jovens, como oportunidades educacionais de qualidade, espírito crítico e a busca por sonhos. O trabalho da EPSJV, por toda sua história e perfil de professores, se ancora nessas dimensões“, acrescentou.

A diretora da EPSJV, Anakeila Stauffer, reafirmou a necessidade do caráter laico da educação pública. Para ela, a Escola Politécnica nasceu com o espírito da ciência. “O sonho de Arlindo, Luiz Fernando e tantos outros possibilitaram que a ciência estivesse no DNA dessa escola. A gente tem clareza que nosso dever é fazer uma formação técnica, ética e política e buscar concretizar nosso projeto político-pedagógico. Aqui, vocês vão compreender que é preciso aprender com o passado para que não se repita os erros no presente e futuro. E essa é uma das funções primordiais da ciência e da educação que a gente buscar desenvolver nessa Escola”, destacou. A diretora também fez referência ao marco dos 55 anos do Golpe Militar e exibiu um vídeo com o depoimento da historiadora Dulce Pandolfi na Comissão da Verdade sobre as torturas que sofreu na condição de presa política da ditadura. “Nesta Escola os estudantes jamais aprenderão uma História falsificada”, disse.