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Que atenção básica para que SUS?

Seminário organizado pela EPSJV/Fiocruz discute princípios que deveriam orientar discussões sobre a Política Nacional de Atenção Básica
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 15/12/2016 09h44 - Atualizado em 01/07/2022 09h45
Seminário discute Atenção Básica Foto: Maycon Gomes (EPSJV/Fiocruz)

“Não há SUS sem atenção básica!”. Foi com esse mote que a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) promoveu um seminário para discutir com profissionais e estudantes o que foi caracterizado como um desmonte das políticas de saúde. Como pano de fundo do debate crítico, pairavam medidas como a PEC 55 do teto dos gastos – aprovada em definitivo pelo Senado no mesmo dia do evento, 13 de dezembro -, o texto da nova reforma da previdência, em tramitação no Congresso, e, mais especificamente, o processo de revisão da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) que vem sendo tocado pelo Ministério da Saúde. Embora não esteja formalmente em curso, essa revisão já foi objeto do VII Fórum Nacional de Gestores da Atenção Básica à Saúde, realizado pelo Ministério em outubro deste ano. Na ocasião, a EPSJV emitiu uma nota pública discordando da forma como foi organizado o evento, sem ampla participação, e se posicionando criticamente em relação a algumas medidas sugeridas no documento-síntese do encontro.

O objetivo principal do evento foi fomentar a construção coletiva de um posicionamento em defesa do SUS pautado na Atenção Básica à Saúde e na ampla proteção aos direitos sociais. O documento de teses produzido para o evento contextualiza: “A ofensiva do mercado contra a perspectiva dos direitos sociais tem avançado no campo da saúde pública brasileira, na disputa do fundo público, oferecendo propostas aparentemente democráticas, como o acesso a planos de saúde populares, a contratação de trabalhadores por meio de mecanismos de terceirização e a remuneração diferenciada, promovida pela gestão produtivista e privatista. Tudo isso reforça a desconstrução da face pública e universal do SUS. Na contramão dessa história, a atenção básica em saúde tem sido o espaço estratégico de expansão do SUS e de tentativa de reorientação do modelo de atenção à saúde. Por isso, a investida dos interesses privatistas tem se dirigido atualmente para esse espaço”.

Gerencialismo

A mesa começou com uma fala da professora-pesquisadora Ialê Faleiros, da EPSJV/Fiocruz, sobre a relação entre público e privado. Ela explicou que esse “mix”, que parece muito atual, já estava previsto na origem da reforma do Estado, um processo movido pelas necessidades das forças empresariais que tem como uma de suas expressões a segmentação da assistência à saúde. Ela destacou que, na saúde, essas mesmas “forças empresariais” estariam se empenhando em construir a visão de que o importante é garantir um serviço de boa qualidade, independentemente de quem o oferece, seja um ente público ou privado. “Isso retira a potência do modo de pensar a saúde e a atenção básica construída pelo movimento sanitário”, lamentou.

Na sequência, a também professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz Danielle Moraes se dedicou a destrinchar o que chamou de “lógica gerencialista”, apresentada como um padrão de mercado que tem servido como metáfora para se pensarem os sérvios públicos e o conjunto da vida social. O objetivo era discutir criticamente princípios e pressupostos que, segundo a debatedora, parecem estar orientando o debate sobre a PNAB. “O gerencialismo tem relação com a ideia de otimizar resultados, visando minimizar os gastos”, definiu, explicando que muitas vezes esse processo “dá um tom” privatista à gestão pública. Não que seja necessariamente ruim a busca por mais efetividade nos processos e na gestão, esclareceu. O problema, disse, é definir o “valor” principal a ser defendido. “O que o dono de uma empresa deseja é que se diminua ao máximo o custo com o seu produto. Para isso, ele vai querer diminuir o quanto gasta com a matéria-prima e fornecedores. Se o bem-estar da população não for um valor, ele pode substituir um fornecedor de matéria-prima que não usa agrotóxicos, se for um gênero alimentício por algo de menor custo, com agrotóxicos, que são venenos. Se o bem estar ou as condições materiais de existência do trabalhadores da fábrica não forem um valor, o dono vai reduzir o número de trabalhadores, vai demitir, vai diminuir o salário, flexibilizar vínculos de trabalho, precarizar os processos de trabalho”, ilustrou.

Ela explicou que o gerencialismo busca otimizar custos principalmente por meio da reorganização dos processos de trabalho, que passam a ser geridos, por exemplo, por metas e indicadores que não dão conta de toda a complexidade do trabalho em saúde. “É com esse mesmo entendimento que a gente se depara quando vê as críticas aos trabalhos dos agentes comunitários de saúde que aparecem nos textos das portarias 958 e 959. Lançadas no primeiro semestre deste ano, e depois revogadas, elas dizem nas entrelinhas que os ACS não estariam dando o resultado desejado para o quadro sanitário brasileiro”, exemplificou, questionando: “Ora, resultado desejado por quem?”.

Defendendo que esses não são os melhores parâmetros para se organizar uma Política Nacional de Atenção Básica, ela desafiou o público a pensar outras metas e indicadores, mais amplos e coerentes com a ideia de determinação social da saúde. “Ajustes gerenciais não resolvem a má distribuição de renda, não resolvem a pobreza, as desigualdades de gênero, o racismo. Se a gente achar que a solução está em ajustar as formas de construir metas de produtividade, por que então não se define como meta estabelecer um amplo programa de transferência de renda sem condicionalidade? Ou, mais fácil ainda: por que não se estabelece como meta tantos agentes comunitários com formação técnica ao final de tantos anos?”, propôs.

Saúde e democracia

“Hoje vai ser o dia mais difícil, que abre um período de 20 anos difíceis”. Assim Agleildes Leal, conhecida como Liu, integrante da Associação Latino Americana de Medicina Social (Alames) e representante do Centro de Estudos em Saúde (Cebes) no Conselho Nacional de Saúde (CNS) iniciou sua fala do seminário, lembrando que, exatamente naquele dia, o Senado aprovaria a PEC 55, que congela por duas décadas os investimentos do governo federal. “Está sendo votada a perda da Constituição”, resumiu.

Liu avisou que, no momento atual, decidiu “subverter” todos os temas sobre os quais é convidada a falar, dedicando-se a tratar também da conjuntura. “Porque não dá para discutir atenção básica sem contexto. E precisamos aproveitar essas oportunidades para reconstruirmos um projeto que seja nosso”, disse. O contexto destacado foi o da “PEC da morte” e o da reforma da previdência, entre outras medidas em curso que atacam diretamente os direitos. Ela mostrou, por exemplo, que as chamadas despesas discricionárias serão as mais afetadas pela instituição de um teto de gastos. E é exatamente nessa categoria que se encontra o PAB [Piso de Atenção Básica] Variável], ‘bolo’ de onde saem os recursos para pagamento de serviços como os de vigilância em saúde e profissionais como os agentes comunitários de saúde nos estados e municípios. Ela ressaltou, no entanto, que nem tudo que precisa ser criticado e revertido é resultado desse novo contexto pós-impeachment, citando como exemplo a prevalência da lógica gerencialista no trato das questões de saúde pública. “Mecanismos como Os [Organizações Sociais] e terceirização não são soluções por que não se conseguiu fazer de outro jeito. Eles são parte do projeto”, alertou.

E esse mesmo gerencialismo se expressa, segundo Liu, no texto do relatório do VII Fórum Nacional de Gestores da Atenção Básica, que dá os primeiros passos na revisão da PNAB. Ela chamou atenção, por exemplo, para a insistência do documento em apontar a necessidade de se ter uma “carteira de serviços”, que informa ao usuário o que o serviço de saúde pode lhe “entregar”. O problema, disse, é que isso pode significar também a naturalização do que o serviço não vai “entregar”, mesmo sendo um direito. Na mesma linha, ela destacou a economia do documento no uso de ‘palavras-chave’ para uma política de atenção básica - como cuidado, prevenção e promoção e clínica. A expressão ‘determinação social da saúde’, segundo ela, não aparece nenhuma vez. “ACS aparece duas vezes, uma para dizer que tem que juntar com os ACEs [agentes de combate a endemias] e outra para dizer que tem que diminuir a quantidade”, citou.

Foi para os trabalhadores agentes comunitários, aliás, que Liu dedicou um recado específico durante a sua fala, um chamado para a adequação das lutas à conjuntura política, o que, neste momento, significaria ir além das questões da categoria profissional. “Porque vocês vão ser os primeiros a sofrer o golpe”, alarmou, destacando como na história recente esses trabalhadores conseguiram vitórias importantes de regulamentação da profissão num momento em que todos os outros estavam sendo desregulamentados, mas chamando atenção também para as mudanças do contexto. “Agora não tem jeito. Porque [com a PEC 55] não vai ter dinheiro do PAB Variável. E os ACS vão sofrer mais porque são uma categoria SUS-dependente, ou seja, se o SUS acabar, não tem emprego para ninguém. Vai ser preciso se inserir na luta de todos”, disse.

Resultados

O seminário reuniu cerca de 130 pessoas de diferentes áreas, incluindo trabalhadores de nível fundamental e médio como agentes comunitários de saúde, técnicos de enfermagem e cuidadores. Na parte da tarde, depois das mesas-redondas, os participantes se organizaram em grupos de trabalho que discutiram sobre modelo de atenção e modelo de gestão em saúde.

Na plenária de encerramento, os grupos apresentaram a síntese dos debates e propostas para a elaboração de um documento sobre o tema. Entre outras coisas, esse documento vai afirmar a atenção básica como organizadora do sistema universal e como estratégia para garantir o direito à saúde, o que pressupõe o atendimento, com qualidade, às diversas necessidades da população a partir de uma estrutura de rede territorializada, pactuada, integrada e resolutiva.

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