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Nota de posicionamento da EPSJV sobre o VII Fórum Nacional de Gestão da Atenção Básica

“Saúde é direito de todos e dever do Estado” (artigo 196 da Constituição Federal de 1988)

 

Nos dias 18, 19 e 20 de outubro foi realizado, em Brasília, o VII Fórum Nacional de Gestão da Atenção Básica, evento organizado pelo Ministério da Saúde, que visou iniciar um processo formal para a revisão da PNAB (Política Nacional de Atenção Básica). A Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) manifesta nesta nota sua discordância com a forma de organização desse Fórum, que sem deixar claro os critérios que foram utilizados para definição dos seus participantes, teve sua composição fechada à participação social. Manifestamos também nossa preocupação com o caráter das propostas que dele derivaram e que estão presentes no documento de sínteses do evento.

Na visão da EPSJV, a composição dessa edição do Fórum, e as propostas que dele saíram, colocam em questão a universalidade, a integralidade, a igualdade e a gratuidade do Sistema Único de Saúde (SUS), princípios legais nascidos da luta pela democratização do país e sucessivamente reafirmados na Constituição de 1988 e nas Conferências Nacionais de Saúde. A discussão sobre a política nacional de saúde deve ser feita conforme estabelecido na Lei 8.142, de 1990, ou seja, de forma ampliada, garantindo a participação de trabalhadores, pesquisadores da área e cidadãos, sendo estes últimos o sentido de existência de uma política pública de saúde. A defesa dos preceitos constitucionais é tarefa precípua de uma instituição de Estado.

Ao não considerar as posições e propostas expressas pelos cidadãos em geral e pelos trabalhadores da saúde, o referido Fórum favorece determinados interesses, como o do setor privado, que já há alguns anos busca ampliar seu acesso aos recursos públicos. 

As propostas contidas no documento de sínteses se alinham a outros movimentos já iniciados pelo governo federal, como a PEC 241/2016 – aprovada na Câmara Federal e que agora tramita no Senado como PEC 55/2016 – e a proposta de criação dos planos populares de saúde. Essas medidas, que visam reduzir os investimentos estatais e reduzir a ação direta do Estado, afetam, por um lado, políticas sociais fundamentais, sinérgicas com o direito à saúde, e por outro, o financiamento do SUS de forma direta, sacrificando a cobertura da atenção básica e atentando contra o preceito constitucional de que “Saúde é direito de todos e dever do Estado”. Além disso, o documento sedimenta o entendimento de que os problemas do SUS advêm de sua má gestão, posição da qual discordamos.

Como vem sendo demonstrado por diversos agentes públicos que atuam na área de políticas sociais, tais medidas levarão a um profundo desfinanciamento da área social, reduzindo a capacidade Estatal de prestação de serviços públicos, o que penalizará de forma direta a população e, em especial, os setores mais pobres.

A síntese do Fórum ressalta que “a quantidade de pessoas cobertas deve estar correlacionada com a necessidade sanitária do território” utilizando o termo “carteira de serviços”. Acena-se aqui com a perspectiva de segmentação de clientela com oferta seletiva, restrita e diferenciada da Atenção Básica, flexibilizando inclusive a infraestrutura necessária. Ao optar pela quantidade de pessoas cobertas, em detrimento do princípio da universalidade, a proposta representa um retrocesso em relação à Constituição Federal, que entende a atenção primária de forma ampliada, coerente com um sistema único e universal de saúde.

Tais propostas estão em consonância com uma concepção de Estado e se apoiam numa ideologia gerencialista. Assim, sustentam um modelo de monitoramento e avaliação (M&A) que orienta tanto o processo de trabalho, quanto as questões relativas à clínica a serem utilizadas para a constituição de indicadores e metas de pactuação que espelham apenas parcialmente o processo de trabalho em saúde, não incorporando, por exemplo, as tecnologias leves em saúde – coração da atenção primária. Não se indica a participação de trabalhadores e cidadãos na construção dessas metas e indicadores, exceto através de possíveis “consultas públicas e conscientização dos usuários”. O Fórum parece reconhecer tanto cidadãos em geral quanto trabalhadores da saúde apenas como interessados passivos e não atores fundamentais a esse processo.

O Fórum pretendeu “incorporar as visões dos trabalhadores e gestores da revisão da PNAB”, mas a síntese apresentada impõe o questionamento sobre quem seriam esses trabalhadores, já que no tópico sobre formação e educação permanente há um silenciamento, por exemplo, da questão da formação dos trabalhadores de nível médio – pauta que já sofre de dívida histórica. Não há referência às Escolas Técnicas do SUS e às políticas de formação profissional dos trabalhadores de nível médio/técnico, especialmente aos ACS (Agentes Comunitários de Saúde) e ACE (Agentes de Combate às Endemias) cuja formação depende de investimentos do Estado.

Também é preocupante a incoerência do Fórum ao apostar ao mesmo tempo em duas propostas antagônicas: de um lado, um processo de educação permanente “baseado no desenvolvimento de competências”, e, de outro, uma “troca de saberes e no trabalho em equipe” e na “perspectiva da educação popular”. Assim, contrapõem-se respectivamente uma lógica gerencialista focada na obtenção de competências especificas para determinadas funções – o que impõe fragmentação do processo de trabalho, compartimentalização dos conhecimentos, e adequação ao instituído – a outra de ação dialógica que busca romper normatividades dominantes, inclusive retirando o saber científico do topo da hierarquia.

Defendemos a educação popular na formação dos trabalhadores, compreendendo-a, inclusive, como instrumento para que gerências das unidades de saúde possam incorporar na gestão dos processos de trabalho, os conhecimentos construídos pelos trabalhadores e cidadãos e seus necessários impactos sobre o planejamento das ações de saúde. De nossa aposta na educação popular em saúde deriva nossa rejeição à proposta de criação de equipes externas “de monitoramento e avaliação em estados e municípios” que não vivenciam os processos de trabalho no território.

Nossa defesa da educação profissional passa pela democratização do acesso ao conhecimento incluindo os fundamentos científicos dos processos de trabalho – daí a importância dos cursos técnicos bem como da educação popular – que não se faz sem o protagonismo da população atendida e dos trabalhadores.

Também questionamos o deslocamento da “educação popular em saúde” no documento do VII Fórum: tomam como metodologia de educação permanente, mas ignoram que esta é a referência e o instrumento de trabalho do Agente Comunitário de Saúde, propondo, assim, a “unificação dos ACS com ACE”. É necessário compreender as diferenças das funções e atribuições desses dois trabalhadores e valorizá-los igualmente em suas especificidades, como o fato de que os ACS estão intimamente ligados à história de constituição da Estratégia Saúde da Família (ESF), enquanto os ACE foram recentemente incluídos na ESF. Além disso, é comum não se encontrar uma correspondência entre as áreas cobertas pelos ACE e pela ESF. Portanto, as formulações do VII Fórum geram intensificação da carga de trabalho e o esgarçamento destes mesmos processos, possivelmente com o propósito de cortar gastos, não parecendo dimensionar suas repercussões para a qualidade da atenção ofertada à população.

Além disso, causa preocupação que o documento do Fórum siga no sentido oposto ao da necessidade de diminuição da rotatividade e fixação de profissionais, e da construção de planos de cargos, carreiras e salários, quando aposta na “diferenciação de regimes de trabalho, carga horária e vínculo dos trabalhadores de acordo com as demandas dos serviços a partir das características do território adscrito”.

Defendemos que renovação da PNAB deve avançar no sentido de consolidar o SUS, concretizando os princípios da “universalidade, da acessibilidade, do vínculo, da continuidade do cuidado, da integralidade da atenção, da responsabilização, da humanização, da equidade e da participação social” (Brasil, PNAB 2012) que pautaram sua formulação e ainda não foram integralmente conquistados. Temos, portanto, o dever histórico de continuar a pavimentação do caminho que nos levará a alcançar a saúde como “direito de todos e dever do Estado”.