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Sementes de Paulo Freire no SUS

EPSJV/Fiocruz conclui etapa do Curso de Educação Popular em Saúde que chegou a mais de 9 mil educandos pelo Brasil
Ana Paula Evangelista - EPSJV/Fiocruz | 10/12/2018 16h14 - Atualizado em 01/07/2022 09h44
Foto: Aline Sampaio

Em 2013 instituía-se a Política Nacional de Educação Popular em Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (Pneps-SUS). O objetivo principal da política era a valorização e promoção da saúde a partir do diálogo entre as diversidades de saberes populares e a ancestralidade. Para a efetivação da Pneps, foi pensado um curso que pudesse mobilizar profissionais da saúde a atuar sob esses conceitos. Foi assim que nasceu o Curso de Educação Popular em Saúde (EdPopSUS), que encerrou na semana passada, com o I Encontro Nacional do EdPopSUS, que aconteceu entre os dias 3 a 5 de dezembro na cidade de Caucaia, no Ceará.

Em sua primeira etapa em 2013, ele foi realizado pela ele foi realizado pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz) e teve Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) no comitê gestor, voltado apenas para agentes comunitários de saúde (ACS), com carga horária de 53 horas. Em 2015, por solicitação dos próprios participantes do curso, o projeto ampliou seu público alvo e incluiu além dos ACS, agentes comunitários de endemias (ACE), conselheiros de saúde, militantes de movimentos sociais e lideranças comunitárias. Na segunda etapa, que teve a EPSJV como coordenação nacional, a formação chegou a mais de 9.500 educandos em 15 estados brasileiros e envolveu mais de 600 educadores. A carga horária também foi ampliada para 160 horas e o material didático reformulado. Esta segunda versão também foi financiada pela Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa (SGEP) do Ministério da Saúde. “O curso foi um sucesso, ultrapassamos a meta inicial, pois alguns estados quiseram continuar o curso mesmo tendo terminado a sua cota, com financiamento próprio. A educação popular é uma maneira de fazer educação em saúde de uma forma crítica, problematizando as situações que existem do território e encontrando soluções para transformar a realidade”, afirma a professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz e coordenadora nacional do EdPopSUS, Vera Joana Bornstein, que ainda acrescenta: “Pelos relatos, os participantes saíram muito empoderados e com a quebra de preconceitos, já que a educação popular em saúde trabalha com a diversidade, procurando entender as experiências de cada um. O curso possibilitou que as pessoas, além de conhecerem a sua própria história,  pudessem reconhecer as várias características das pessoas que estão nesse território, sejam elas quilombolas, indígenas”, comemorou Vera.

“Educação popular é um jeito, uma proposta de fazer educação, que parte do pressuposto de que todas as pessoas buscam ser mais e têm conhecimentos importantes. Para que a educação possa ser potente, ela tem que começar por isso, valorizando o que a pessoa está buscando e o que ela já sabe. Educação popular também é problematizar, criar espaços de discussão coletiva onde esses fatores possam ser aprimorados”

Eymard Vasconcelos, pesquisador da Universidade Federal da Paraíba, coordenador da Rede de Educação Popular em Saúde (RedePop) e referência nacional nessa área, explica que o sucesso do projeto se deu pela forma que a educação popular acontece. “Educação popular é um jeito, uma proposta de fazer educação, que parte do pressuposto de que todas as pessoas buscam ser mais e têm conhecimentos importantes. Para que a educação possa ser potente, ela tem que começar por isso, valorizando o que a pessoa está buscando e o que ela já sabe. Educação popular também é problematizar, criar espaços de discussão coletiva onde esses fatores possam ser aprimorados”, argumenta. E acrescenta: “Além disso, é uma educação preocupada com a superação da injustiça e das opressões que existem na sociedade, mas não como uma doutrinação. É o silenciado se tornar protagonista da transformação da sociedade”.

Eymard ainda ressalta que o Curso e a educação popular em si são baseados nos princípios de Paulo Freire – célebre educador brasileiro que defendia a educação como libertação do aluno e, para isso, propôs uma prática de sala de aula que pudesse desenvolver a criticidade dos alunos. “É a pedagogia freiriana entrando na área da saúde. Nós, profissionais da saúde, temos a tendência de ficar mandando as pessoas fazerem as coisas, o que a gente chama de educação normativa. Mas isso é totalmente improdutivo. O olhar de Paulo Freire diz que todas as pessoas têm uma busca de ser mais e nessa busca acumulam saberes, lutas por saúde na sua família. Se a gente começa a nossa relação como profissional compreendendo o que já existe, os resultados mudam”. Eymard exemplifica: “Quando as pessoas podem falar do seu jeito de lidar com a diabetes, vão trazendo algumas coisas e quebrando a resistência. A educação popular transforma a relação. Isso se dá nas relações dentro do consultório, o que a gente chama de construção compartilhada da solução necessária. Isso gera práticas de saúde completamente diferentes, com envolvimento da população. Quebra o bloqueio do profissional, da equipe de saúde, porque se começa a valorizar os evangélicos, o pessoal que fica reunido no bar, os artistas, os atletas e a gente vai juntando tudo isso e gera muitas lutas comunitárias, que é uma das marcas da atenção básica brasileira. Muitos sanitaristas de outros países, tipo os da Europa que já têm a atenção básica mais organizada, quando chegam ao Brasil ficam admirados com essa coisa de construir junto com a comunidade as soluções”.

José Ivo Pedrosa, professor da Universidade Federal do Piauí e coordenador da educação popular no Ministério da Saúde de 2003 a 2010, concorda. “A relação da educação popular em saúde com o SUS é muito simples. Começa do próprio processo de conhecimento da pessoa que se permite, a partir do conhecimento do seu lugar no mundo, que o sujeito seja capaz de construir uma vida melhor, com direito a casa, comida, trabalho e assistência de saúde. A educação popular em saúde no SUS caminham juntos na medida em que preparam profissionais para poder escutar e preparar usurários que possam falar. Os dois juntos podem encontrar uma maneira de viver uma vida melhor”.

Trajetória

Baseado nesses princípios, o curso foi realizado ao longo dos últimos três anos e teve seu encerramento marcado pela realização do I Encontro Nacional do EdPopSUS. O evento recebeu 280 participantes entre educandos, professores e apoiadores do projeto para reflexão sobre os desdobramentos do curso, sistematização das experiências, análises do termo de referência do EdPopSUS, principalmente, organização de ações do movimento de educação popular em saúde para manutenção da iniciativa. Isso porque o financiamento garantido pelo Ministério da Saúde em 2015 foi encerrado. De acordo com coordenadora nacional, essa descontinuidade está ancorada no cenário político e com a implantação de políticas de austeridade fiscal como a Emenda Constitucional 95, que congela gastos para educação e saúde por 20 anos. Nesse bojo, a estratégia de educação popular saiu da gama de prioridades do MS. “Estamos encerrando essa etapa do projeto. Tínhamos a perspectiva de ir para os estados onde ele ainda não chegou, mas isso não está garantido. Com todas as mudanças que têm acontecido na política, não temos garantia de continuidade”, lamenta Vera, mas também comemora: “Porém, temos a garantia de que todos os participantes do curso vão fazer a educação popular acontecer nos seus territórios”.

Segundo Vera, uma das alternativas para manutenção do projeto é a parceria com o controle social, aproveitando os espaços dos Conselhos Municipais e Estaduais de Saúde. Além disso, alguns estados já haviam disponibilizado recursos próprios e a perspectiva é de que essa seja uma das formas de abrir novas turmas.

Simone Leite, conselheira nacional de saúde, concorda que o controle social é um dos caminhos e assumiu o compromisso de manter “acesa a chama do EdPopSUS” no Conselho Nacional de Saúde (CNS).  “Esses profissionais das práticas populares, parteiras, rezadeiras, benzedeiras, são fundamentais para a educação popular em saúde. É o resgate da nossa cultura, do que fazer no território, que vai fazer a diferença dentro do SUS: educação popular com a participação da comunidade dos profissionais de saúde, da universidade, dos conselhos de saúde, juntos construindo uma forma de fazer diferença na saúde”.

“É lisonjeador para nós resgatar através desse curso esse papel preponderante dos agentes de saúde. Nós que somos agentes comunitários de saúde há muitos anos, quando, lá trás, era o que a gente já fazia nas nossas visitas casa a casa e nem sabia que era educação popular em saúde. Mas com o passar do tempo isso foi se perdendo de vista e não podemos deixar que um projeto tão lindo se finde”

Ilda Angélica Correa, presidente da Confederação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde (Conacs) participou do Encontro e disse que a categoria estará sempre atenta e disposta na continuidade dos projetos de educação popular em saúde. “A qualificação e da capacitação dos agentes comunitários de saúde e endemias na educação popular em saúde é de fundamental importância, já que nosso papel principal é a educação em saúde, educar a comunidade para prevenir as doenças. As práticas em saúde popular é que valorizam nosso trabalho”, justifica. E completa: “É lisonjeador para nós resgatar através desse curso esse papel preponderante dos agentes de saúde. Nós que somos agentes comunitários de saúde há muitos anos, quando, lá trás, era o que a gente já fazia nas nossas visitas casa a casa e nem sabia que era educação popular em saúde. Mas com o passar do tempo isso foi se perdendo de vista e não podemos deixar que um projeto tão lindo se finde”.

Experiências

Durante o Encontro, os 15 estados participantes dessa etapa do projeto – Rio Grande do Sul, São Paulo, Sergipe, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Bahia, Ceará, Maranhão, Amazonas, Pará, Mato Grosso, Minas Gerais, Roraima e Rio de Janeiro - apresentaram suas experiências de formas bem artísticas, com mandalas, danças e cordéis, destacando a importância do curso em seus territórios, que expressam as reflexões sobre como o curso construiu diálogos e convívios. Algo bem próximo às práticas realizadas durante a formação. Entre os pontos fortes, os representantes destacaram a visita a assentamentos, quilombos, aldeias indígenas, escolas, postos de saúde, museus, centros culturais, comunidades, Programa Farmácia Viva, herbários, Jardim Botânico, associação de renderas e de pesquisadores, terreiros.

Júnior Dantas Pankariri, agente comunitário de saúde no estado de Sergipe, contou sua experiência como educando e, posteriormente, educador do EdPopSUS, e reforçou a importância do respeito à pluraridade para a melhoria das condições de saúde. “Quando fui convidado para ser educador, a minha preocupação mudou, pois como agente comunitário de saúde na cidade em que eu moro, onde eu conheço toda comunidade, comecei a pensar no que eu poderia fazer diferente, fazendo com que os alunos tivessem interesse pelo curso, que pudessem conhecer o SUS de verdade que atende a todos, equânime. Além isso, nós, como agentes de saúde, sofremos tantos problemas que acabamos nos isolando e nos distanciando. Além do material didático, que é muito completo, eu busquei trabalhar a questão da ancestralidade. Fomos a campo, à casa da rezadeira, fomos ao movimento das mulheres, fomos ao terreiro de candomblé. O EdPopSUS é isso, respeito das culturas, da religião, orientação sexual”, afirmou.

Jessyka Rodrigues, transfeminista, foi aluna do curso realizado na cidade de Parnaíba, Piauí. Para ela, o deslocamento dos encontros para outros espaços, como a visita em grupos de mulheres, quilombos e terreiros, possibilitou uma aprendizagem pelos sentidos e pelo reconhecimento da história de vida, trabalho e luta dos outros, indivíduos e coletivos. “O EdPopSUS me proporcionou uma gama de possibilidades, dentre elas trabalhar mais a empatia e também compartilhar minha experiência como pessoa trans, problematizando discussões a respeito de gênero, sexualidade, identidade de gênero, orientação sexual. Esse momento foi ímpar pois sabemos que as pessoas trans geralmente não estão nesses espaços, não têm voz, não têm visibilidade, tampouco representatividade. Com esse curso foi possível dialogar com meus colegas e foi uma troca de informações que, com certeza, vou levar para meu cotidiano profissional e para o meu ativismo”, declarou.

O curso também evidenciou práticas populares centenárias, ressaltando o trabalho de parteiras e rezadeiras, incentivando as Práticas Integrativas e Complementares no SUS (PiCs), já que essas práticas estão presentes em quase 54% dos municípios brasileiros e 78% estão na Atenção Básica segundo o Ministério da Saúde, justamente onde estão o público-alvo do EdPopSUS. Ainda segundo o MS, por ano são mais de 2 milhões de atendimentos das PICs nas Unidades Básicas de Saúde, mais de 1 milhão de atendimentos na Medicina Tradicional Chinesa, incluindo acupuntura, 85 mil sessões de fitoterapias e mais de 13 mil de homeopatias.

Sandro Piritó, educando do EdPopSUS,  falou durante o evento sobre como o curso o ajudou a melhorar as práticas de saúde na sua aldeia. Ele é Tuxuau (líder) de uma aldeia indígena na cidade de Pacaraima, que fica em Roraima, na fronteira com a Venezuela. Sandro afirmou que a comunidade já fazia uso das Pics e ele, como ACS, já fazia educação popular em saúde, mas não sabia “que isso tinha um nome”. “Gostei muito de participar do curso, aprendi muita coisa. Eu já fazia educação popular porque sou agente comunitário de saúde, mas agora as coisas estão ainda mais claras. Na minha comunidade existe a parteira, a rezadeira, o pajé e damos muito valor a isso. Usamos remédios naturais, que vêm da natureza ou da nossa horta medicinal. E o EdPopSUS veio para fortalecer essas práticas”.

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