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Educação Popular em Saúde

Que os explorados e oprimidos sejam sujeitos de sua própria história. Esse é o resumo do que Eduardo Stotz, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), caracteriza como o “compromisso com uma democracia radical” de um dos educadores mais conhecidos e respeitados do mundo. O educador é Paulo Freire e o “compromisso”, com cara de método e conceito, foi batizado com o nome de Educação Popular.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 01/11/2009 11h49 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Que os explorados e oprimidos sejam sujeitos de sua própria história. Esse é o resumo do que Eduardo Stotz, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), caracteriza como o “compromisso com uma democracia radical” de um dos educadores mais conhecidos e respeitados do mundo. O educador é Paulo Freire e o “compromisso”, com cara de método e conceito, foi batizado com o nome de Educação Popular. Mas essa forma de ver a educação e as classes populares ganhou espaço também no campo da saúde, ajudando a romper com um modo de educar centrado na doença e na aquisição de hábitos e comportamentos pela população, como explica Helena David, professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Com o acréscimo da expressão ‘em Saúde’, também nessa área a Educação Popular fez seus nomes. Um deles, o californiano Victor Valla, chegou ao Brasil na década de 1960, se espantou com a miséria que encontrou, viveu e morreu, no último dia 7 de setembro, dedicando-se à mobilização e organização da população.

Uma pedagogia para os oprimidos

Talvez você conheça a Educação Popular como um método que valoriza a experiência do aluno. Embora não esteja errada, essa definição reduz muito o trabalho de Paulo Freire e seus seguidores. Isso porque toda a sua obra — inclusive o método que leva seu nome — tem um objetivo maior muito explícito: a libertação dos homens da condição de oprimidos. O que importa para a Educação Popular, portanto, é a opressão contida na experiência dos alunos. “Em Paulo Freire, a problematização tem por objetivo identificar as situações-limite em que os educandos se encontram”, diz Stotz. E completa, destacando que a proposta do educador não tem nada de ingênua: “Experiência e totalidade nunca foram termos antagônicos. A totalidade é, na verdade, totalização, que nunca se completa”.

A Educação Popular se opõe ao que Paulo Freire chamou de ‘educação bancária’, porque ‘deposita’ conteúdos no aluno, como se ele fosse um pote vazio. “Eis aí a concepção ‘bancária’ de educação, em que a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los”, explica o autor, no livro ‘Pedagogia do Oprimido’, o maior marco da Educação Popular no Brasil. Nessa forma de ‘ensinar’, que teria como objetivo final a adaptação dos homens e não a transformação social, estariam, segundo ele, preservadas todas as contradições entre opressores e oprimidos. Contra a prática bancária, Freire propôs, então, uma educação problematizadora, que ajudasse a desnaturalizar a realidade dos alunos. “O adjetivo ‘popular’ não quer dizer que se destina exclusivamente às classes populares e sim que parte do saber das classes populares”, explica Eduardo Stotz.

José Ivo Pedrosa, coordenador geral de Apoio à Educação Popular e Mobilização Social da Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde, concorda. “A Educação Popular em Saúde não se limita necessariamente às ações com o ‘popular’. Ela guarda a possibilidade de influenciar a formação de profissionais de saúde e, portanto, tem que ser debatida nos espaços acadêmicos, nas universidades e servir de referência para a produção de conhecimentos”, opina.

Escola e conteúdo

A crítica à educação que ‘faz depósitos’ deu à Educação Popular, principalmente por parte de pesquisadores e militantes da Educação vinculados a uma luta da esquerda, a imagem de uma prática que não se preocupa com os conteúdos. Defendendo-se dessas críticas, Paulo Freire é taxativo, no livro ‘Política e Educação’, publicado em 1993. “Nunca houve nem há educação sem conteúdos”, diz. E, em outro trecho, defende a combinação de “formação científica e clareza política”, com rigor. A Educação Popular, explica, “é a que trabalha, incansavelmente, a boa qualidade do ensino, a que se esforça em intensificar os índices de aprovação através de rigoroso trabalho docente e não com frouxidão assistencialista, é a que capacita suas professoras cientificamente à luz dos recentes achados em torno da aquisição da linguagem, do ensino da escrita e da leitura”.

De fato, segundo Eduardo Stotz, a Educação Popular não abre mão do conhecimento científico, apenas tenta colocá-lo em diálogo com o saber da população. Mas isso não quer dizer, de acordo com o pesquisador, que se acredite num saber popular ‘puro’ e sem influências, por exemplo, dos meios de comunicação de massa. Por isso, segundo ele, ao contrário do que muitos imaginam, a Educação Popular não parte do princípio de que o povo tem sempre razão. “O saber espontâneo da população precisa ser problematizado, mas o conhecimento científico também precisa”, diz.

Outra polêmica que envolve a Educação Popular diz respeito ao lugar da escola no processo formativo. Para ser popular, a educação tem que ser informal, fora da escola? “Como está estruturada hoje, a escola é contrária à Educação Popular”, opina Stotz.  Isabel Brasil, diretora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), traz essa discussão para a história. “A divergência sobre se a Educação Popular deveria ou não abarcar a luta pela escola pública esteve mais presente nos anos da ditadura militar, pois, nesse período, por conta da repressão, ela só podia mesmo acontecer nos espaços não-formais”, explica. E ela acha muito positiva a aproximação da Educação Popular com os movimentos sociais nesse período. “Com Paulo Freire e os movimentos sociais, a Educação Popular fez parte de um esforço de mobilização e capacitação política, científica e técnica das camadas populares pela transformação da escola que reproduz a ordem dominante em outra escola, voltada para os interesses da população”. Na opinião de Isabel, a cultura é o mote que ajuda a trazer a Educação Popular de volta para o espaço da Escola.

Na Saúde, segundo Helena David, a Educação Popular tem mais presença nos espaços informais, embora já esteja alcançando as instituições de ensino. “As experiências iniciais e as que foram desenvolvidas até poucos anos atrás centralizam seus objetivos na democratização das relações entre população e serviços, no fortalecimento de sujeitos populares para atuarem nas diversas frentes de luta, para vocalizarem suas demandas e apresentarem propostas e pautas políticas para o setor. É natural que a ênfase seja, então, nos processos informais, que acontecem no cotidiano dos serviços e das comunidades. No entanto, princípios da Educação Popular, em especial o da problematização da realidade, foram incorporados a processos formais de educação, sobretudo na formação profissional em saúde”, avalia. Um exemplo de experiência de Educação Popular não-formal, segundo ela, foi o trabalho de Victor Valla à frente do Centro de Estudos e Pesquisas da Leopoldina (Cepel). “Merece destaque, em especial, a produção e divulgação de informações locais em saúde nos bairros da região da Leopoldina (no Rio de Janeiro), que durante anos permitiu articular estudos diversos e ações de mobilização popular para o enfrentamento das questões emergentes sobre condições de vida e saúde”, conta. Batizada de “capacitação técnica”, essa era, aliás, outra ‘bandeira’ de Valla: fornecer à população o conhecimento que ela precisa para levar adiante suas lutas.

EPS como política pública

Desde 2003, o Ministério da Saúde tem, na sua estrutura, um setor voltado para a Educação Popular em Saúde. Hoje, esse lugar é a Coordenação Geral de Apoio à Educação Popular e Mobilização Social, que integra a Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do SUS (SGEP). Mas até 2005, a EPS esteve vinculada à Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES). “A base da transformação da Educação Popular em Saúde em política pública foi a necessidade de os movimentos populares se sentirem protagonistas no campo da saúde, não somente nos momentos de luta para consolidação e ampliação dos direitos assegurados, mas na própria formação de um sistema que possa contar com profissionais que cuidam e com estruturas que são acolhedoras e resolutivas, permeadas de relações de solidariedade e afetividade, em que usuários e trabalhadores se encontram implicados na produção da saúde dos indivíduos e dos territórios”, explica José Ivo Pedrosa, que coordena a área do Ministério responsável pela EPS desde a sua criação, no início do governo Lula. No formato atual, a coordenação de Educação Popular é, segundo José Ivo, uma estratégia para o fortalecimento e a qualificação da participação social na saúde . Desenvolve, por exemplo, “ações compartilhadas” com movimentos em defesa do SUS e do direito à saúde que usam práticas de Educação Popular. “Políticas do próprio Ministério, como a de Humanização e a de Promoção da Saúde, têm sido importantes para afirmar a Educação Popular como prática pedagógica no SUS e a articulação com outros setores do governo que têm interlocução com os movimentos e coletivos sociais”, explica. Além disso, o setor tem contribuído com a implantação de programas como o Saúde na Escola (PSE) e o Saúde e Prevenção nas Escolas (SPE). Resultado de reivindicações dos movimentos sociais com a SGEP, foi criado, este ano, por portaria, um Comitê Nacional de Educação Popular em Saúde, com o objetivo de construir uma política nacional para essa área.