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ACNUR

Criado para amparar refugiados de guerra, o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados ampliou atuação ao longo das décadas para assistir populações forçadas a se deslocarem
Juliana Passos - EPSJV/Fiocruz | 21/05/2024 16h32 - Atualizado em 21/05/2024 16h44

O número de pessoas forçadas a se deslocar dos seus locais de origem dobrou na última década, alcançando, em 2023, a marca de 114 milhões, segundo dados do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, o Acnur. Criado em 1950 com o objetivo de acolher as vítimas da Segunda Guerra Mundial, esse órgão vinculado à Organização das Nações Unidas (ONU) é responsável por promover o acolhimento e a garantia dos direitos humanos de refugiados e de pessoas forçadas a se deslocar. “Ao longo dos últimos 70 anos, o trabalho do Acnur foi apoiar os Estados a criarem seus próprios critérios de elegibilidade de refugiados e promover a expansão dos direitos dessas populações”, resume a professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Carolina Moulin.

Quem é refugiado?
De acordo com a definição adotada na Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, apenas 36 milhões desse contingente apontado pelo Acnur seriam reconhecidos nessa condição. Isso porque o documento, elaborado também no contexto da Segunda Guerra, define como refugiada a pessoa “perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, [que] se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país”. Quem não tem nacionalidade e encontra-se em situação semelhante fora do país de “residência habitual” também é reconhecido pela Convenção. Em outras palavras, o Estatuto de 1951 entende como refugiados as vítimas de guerra.

Já a abrangência de atuação do Acnur é mais ampla. “O agravamento de crises econômicas e das mudanças climáticas provoca uma série de violações de direitos atrelados às populações que estão impactadas por essas duas condições. Essa situação influencia no acesso aos direitos dessa população e isso faz com que elas possam ser reconhecidas como refugiadas”, explica o porta-voz da entidade no Brasil, Miguel Pachioni. A partir dessa definição, o Alto-Comissariado identifica que a maioria desses deslocamentos é realizada dentro dos próprios países: 76% dessas populações que se sentem obrigadas a migrar estão localizadas em países de baixa e média renda, que vivem crises humanitárias, que levam à falta de condições mínimas de assistência por parte dos governos, o que significa insegurança alimentar, falta de acesso a cuidados básicos de saúde, além da exposição à violência por parte de grupos armados. Um dos exemplos do impacto das mudanças climáticas – responsáveis pelo deslocamento de 22,8 milhões de pessoas desde 2008, segundo a entidade – está na Somália, onde, de acordo com dados da ONU, 750 mil pessoas foram deslocadas entre outubro e dezembro de 2023 em função de inundações. No mesmo ano, apenas seis meses antes, o país passava por uma grave seca que levou a insegurança alimentar da população.

Venezuela e Haiti são exemplos de dois países próximos ao Brasil que o Acnur reconhece como origem de refugiados em função de crise humanitária. Embora não se enquadrem nessa condição pelos termos da Convenção de 1951, essas populações estão protegidas também pela Declaração de Cartagena de 1984, assinada pelos países da América Latina e Caribe e com apoio do Acnur. O documento considera como refugiadas “as pessoas que tenham fugido dos seus países porque a sua vida, segurança ou liberdade tenham sido ameaçadas pela violência generalizada, a agressão estrangeira, os conflitos internos, a violação maciça dos direitos humanos ou outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública”. A outra regulamentação regional existente sobre o tema é a Convenção da Organização da Unidade Africana (OUA), que também reconhece a condição de refúgio de maneira ampliada. No caso do Brasil, a lei que implementa o Estatuto do Refugiado de 1951 foi aprovada em 1997 e incorpora as previsões da Declaração de Cartagena.

Acolhimento
A atuação do Acnur se inicia em duas frentes: uma é a negociação com as nações para criarem legislações de definição e proteção de refugiados, bem como garantir os direitos dessas populações, a outra é a  assistência humanitária com auxílio financeiro, proteção e abrigo, além do registro dessas pessoas e seus perfis, para fins de documentação e entendimento de suas demandas. O papel da entidade varia de acordo com a situação dos refugiados e da estrutura do país para onde se deslocam. Se não se tratar de um grande contingente, não houver necessidade de assistência humanitária e o país de destino possuir legislação e órgãos responsáveis por acolher, o Acnur atua como observador e consultor. Em países em que não há essa estrutura, é o próprio Acnur que define quem é refugiado. Em contextos de crise humanitária que geram grandes massas de deslocamento, ele é responsável pela instalação de abrigos ou campos para receber e cadastrar essas populações.

Outras frentes de atuação da entidade se dão na integração desses estrangeiros no novo país, no acompanhamento para a liberação da documentação de nacionalidade e na garantia de acesso a políticas públicas por parte dessas populações. No Brasil, a lei 9.474/97, considerada bastante avançada, prevê o acesso dos refugiados a políticas públicas como um todo e inclui medidas como a facilitação do reconhecimento de diplomas e certificados para que a pessoa exerça sua profissão no país. “Entre a norma e a prática há uma distância, mas alguns estados no Brasil conseguiram ampliar o processo de validação de diplomas e várias universidades hoje têm ingresso facilitado para essas populações”, comenta Moulin. O país acolhe 731 mil pessoas com necessidade de abrigo, a grande maioria delas venezuelana (574,6 mil) e haitiana (88 mil). Destas, 140 mil já estão formalizadas como refugiados: no topo dessa lista,  estão 128 mil venezuelanos e 4 mil sírios.

A última etapa de integração formal na qual o Acnur atua consiste em contribuir para que o refugiado conquiste a naturalidade no local para onde emigrou, retorne para seu país de origem de forma voluntária ou seja reassentado em um terceiro país. Essa última alternativa, que acontece em apenas 1% dos casos, se dá quando o local onde se buscou refúgio não oferece segurança ou condições específicas necessárias para aquela pessoa. Esses três desfechos são classificados pelo Acnur como “soluções duradouras”, principais metas do Alto Comissariado. No caso da naturalização, a atuação do Acnur não é direta, mas de assessoramento e acompanhamento dos processos nos países que já possuem legislação e órgãos próprios para o acolhimento dessas pessoas.

No Brasil, o órgão responsável pelo reconhecimento da condição de refugiado é o Conare, o Comitê Nacional para os Refugiados. O Acnur participa das plenárias realizadas para o julgamento das solicitações apenas de forma opinativa, sem direito a voto. Em caso de ter o status negado, a pessoa se torna imigrante ilegal e pode ser deportada. Mas o porta-voz diz que não há dificuldades de reconhecimento por parte do governo brasileiro, inclusive na etapa de naturalização ou de visto permanente para estadia.

Provisório, mas permanente
A negociação para que os países recebam refugiados não é imediata e pode durar de meses a anos. Para casos em que já existe previsão legal para que os recém-chegados sejam aceitos como refugiados, mas há um grande volume de deslocamentos, o Acnur mantém abrigos. Esse é o caso dos abrigos montados em Boa Vista (RR), capital do estado de Rondônia, e Paracaima (RR), na fronteira do Brasil com a Venezuela. Em março de 2024, as duas cidades abrigavam em torno de sete mil venezuelanos, de acordo com dados do escritório do Acnur no Brasil.

Em situações de longo prazo, são construídos campos de refugiados, que podem se tornar verdadeiras cidades se perduram por mais tempo do que deveriam. Carolina Moulin explica que a demora no acolhimento dessas populações se deve a dois motivos principais: o crescimento de medidas restritivas à imigração e a dificuldade dos países de renda média e baixa de absorverem essa nova população. “A partir da década de 1990 há a emergência de um conjunto de políticas mais restritivas dos países à recepção de solicitantes de refúgio. E isso acaba gerando uma pressão enorme nos países de origem e nos países territorialmente vizinhos aos países onde há crises conflagradas”, diz.

O maior campo de refugiados hoje é Kutupalong, situado em Bangladesh, na Ásia. Abriga 930 mil pessoas, principalmente da população rohingya, minoria muçulmana expulsa do país vizinho, Mianmar. Entre as principais dificuldades do campo diante de sua alta populacional, está a infraestrutura de água e saneamento. Em janeiro de 2024 houve um incêndio no local que deixou a estrutura mais debilitada. No entanto, a infraestrutura de cada campo varia. No Quênia, por exemplo, funciona o campo de Dadaab, que já foi o maior do mundo na década passada e hoje abriga cerca de 250 mil pessoas. “Esse campo é uma cidade de médio porte, com serviços de transporte, com oficinas de conserto e reparos, com escolas, com cursos de línguas. Então, a tendência é que os campos de fato se tornem espaços de sociabilidade que mimetizam a experiência que a gente tem na cidade, mas com muitas limitações, porque muitos deles têm restrições de entrada e saída e a impossibilidade de trabalhar fora dessa área. É um espaço de muito controle e vigilância”, diz Carolina Moulin.

E a Palestina?
Até setembro de 2023 existiam 5,8 milhões de palestinos forçados a se deslocar. Esses números não incluem aqueles que deixaram o território a partir de outubro de 2023, quando começaram os bombardeios de Israel, num ataque que até abril de 2024 tinha levado 1,7 milhão de palestinos a abandonarem a região. O acolhimento e acompanhamento a essa população, no entanto, não é tarefa da Acnur, mas de outra entidade vinculada à ONU: a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (Unrwa). Criada em 1949, o objetivo da Unrwa era dar uma resposta à situação dos 700 mil palestinos que já tinham sido forçados a se deslocar em 1948, em consequência da criação do Estado de Israel. Trata-se da única agência da ONU dedicada a uma população específica de refugiados. “A criação da Unrwa foi uma solução política, porque a Convenção de 1951 [pensada para refugiados de guerras] foi desenhada no mesmo período
em que estava se constituindo o Estado de Israel, responsável por levar a esse processo de expulsão crescente dos palestinos”, explica Moulin.

Em relação à assistência e abrigo, a atuação da agência é realizada na Faixa de Gaza, Jerusalém Oriental, Cisjordânia (áreas de território palestino), além de Síria, Líbano e Jordânia. É nessas regiões e países que se encontram 5,8 milhões de refugiados palestinos. A agência já teve escritórios em outras partes do mundo, mas atualmente estão concentrados na Palestina e regiões próximas. É o caso do Brasil, onde o Acnur assume totalmente a assistência dos refugiados que chegam daquela região. “O Acnur não tem mandato sobre a causa Palestina. A resposta global sobre a causa palestina é feita pela Unrwa, mas localmente, não fazemos distinção. A Unrwa é uma agência irmã do Acnur”, diz Pachioni.