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Banco Central

Criado por uma lei publicada em 31 de dezembro de 1964, o Banco Central do Brasil completa 60 anos em meio a um debate político sobre o sentido da sua autonomia da entidade e polêmicas sobre a concepção econômica que orienta suas estratégias
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 19/12/2024 11h20 - Atualizado em 19/12/2024 11h24

A economia brasileira “parece estar pujante”. O desemprego está “na mínima da série histórica”, a renda mantém um “crescimento de 12% desde o início de 2023” e a indústria encontra-se “no máximo da capacidade instalada dos últimos 11 anos”. O diagnóstico foi feito pelo futuro presidente do Banco Central (BC), Gabriel Galípolo, durante a sabatina no Senado. Mas se você pensou em comemorar as boas notícias, vai se surpreender com a conclusão que ele tira desses mesmos dados. “Isso não é ruim”, opinou, alertando ainda que, diante desse cenário, era preciso “estar de olho na inflação”. É nessa contradição entre o otimismo dos indicadores e o pessimismo da análise que se localiza a queda de braços amplamente noticiada entre o governo Lula e o Banco Central em torno da taxa de juros – um problema que ilustra muito bem as mudanças que essa instituição sofreu desde a sua criação, há exatos 60 anos, em dezembro de 1964.

A relação entre as duas coisas está estampada – embora quase nunca explicada – nas páginas e telas dos jornais todos os dias: afinal, o argumento para que o Banco Central mantenha uma alta taxa de juros é que essa é uma medida necessária para cumprir a sua missão de controle inflacionário. Curioso é observar que, entre as 15 atribuições que a lei de criação do Banco Central (nº 4.595) estabelece, nenhuma menciona a palavra ‘inflação’. Passadas seis décadas, no entanto, quem visita hoje o site da entidade é informado de que “manter a inflação sob controle, ao redor da meta, é objetivo fundamental do BC”. “A partir da década de 1970, o Banco Central começa a ser objeto de interesse como uma organização que pode ter um potencial muito grande de coordenar a economia dentro de uma lógica liberal”, explica o economista Rodrigo Rodriguez, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), que coordena um projeto chamado ‘Observatório dos Bancos Centrais’. Isso não quer dizer, segundo ele, que na origem o BC não se ocupava da inflação, mas essa era uma tarefa mais coletiva dentro da estrutura de governo. “Durante o período da ditadura, boa parte da política de combate à inflação era feita por um comitê interministerial que negociava com os setores-chave da economia um certo ritmo de reajuste dos preços, oferecia benefícios tributários, fiscais e empréstimos, para que eles colaborassem com a política de combate à inflação”, ilustra. 

Todos contra a inflação

Você nem precisa entender o ‘economês’ para associar a inflação com “o aumento do preço de bens e serviços”, que leva à “diminuição do poder de compra da moeda”. Essa definição é adotada no site do próprio Banco Central mas, se viveu os anos 1980 e o início da década seguinte, você certamente vai se lembrar das notícias quase diárias sobre o volume cada vez maior de notas e moedas que as famílias precisavam levar aos supermercados para comprar os mesmos itens, sem contar as repetidas cenas das ‘maquininhas’ de remarcação de preço. Eram os tempos da hiperinflação, que não deixaram saudade.

A mudança nesse cenário veio em 1994, com a implementação do Plano Real, uma medida de estabilização econômica que criou aquela que ainda hoje é a moeda do país e controlou a inflação. Seguindo o que Marina Gouvêa, economista e professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) destaca como uma tendência de “reconfiguração do capitalismo em escala mundial”, esse foi um verdadeiro marco na política e no debate econômico brasileiro. Mas, ao contrário do que a memória traumática da inflação pode sugerir, nem todos os resultados são flores. Poucos anos mais tarde, para responder à crise que, no final de 1998, levou a uma forte desvalorização do real em relação ao dólar, foi dado mais um passo na direção da política que consolidaria um novo papel para o BC. Foi em 1999, por meio do decreto nº 3.088 – revogado em 2024 por outro, nº 12.079, que não alterou o papel do BC – que se criou o regime de metas de inflação, estabelecendo-se que competia ao Banco Central “executar as políticas necessárias” para o seu cumprimento e delegando ao presidente da entidade o dever de se justificar publicamente quando a meta não for cumprida. Quem fixa a meta de inflação é o Conselho Monetário Nacional – órgão do qual faz parte o presidente do BC – mas, de acordo com essa nova legislação, agora isso deve ser feito “mediante proposta do Ministro de Estado da Fazenda”. No ano seguinte, foi promulgada a Lei Complementar nº 101, conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal, que, na avaliação dos entrevistados desta reportagem, é um outro marco legal que vai orientar e limitar o papel que o Banco Central desempenha hoje no Brasil. E, para consolidar esse modelo, em 2021 veio a Lei Complementar nº 179, que garantiu a autonomia do BC, tornando-se o pomo da discórdia das relações entre a entidade e o governo atual.

Contada assim, essa parece uma história só de progresso e sucesso – que começa com uma inflação de 2.477% em 1993 e termina com 4,6% em 2023. Mas é mais complicado que isso. E o outro lado da moeda é que, antes do regime de meta de inflação, o Estado tinha mais liberdade para investir em políticas sociais e mesmo no setor produtivo, gerando, inclusive, empregos diretos. “A criação do Plano Real foi fundamental para viabilizar as reformas institucionais que vão incluir uma maior abertura econômica do país, mas também vai diminuir a capacidade do Estado de financiar políticas de desenvolvimento”, resume Rodriguez. Isso porque, desde que o controle da inflação passou a estar no foco da política econômica e ser responsabilidade principal do BC, a principal ferramenta para isso tem sido a taxa de juros Selic, que tem impacto direto sobre o gasto público. “A Selic é a taxa de juros que o governo promete pagar pelos títulos da dívida pública dele”, explica Marina Gouvêa. Assim, entendendo que o Banco Central é uma estrutura do Estado, é como se, a cada vez que ele aumenta a taxa de juros, o governo decidisse pagar mais caro pelos empréstimos que pega no ‘mercado’. E, ao fazer isso, incentiva-se que mais gente compre esses títulos (dos empréstimos), aumentando ainda mais a dívida pública. “Manipulação de juros é a emissão de título da dívida pública, porque quando o governo diz a Selic é X, isso significa que ele está garantindo que qualquer pessoa que queira comprar um título da dívida pública nesse preço vai conseguir”, resume a professora da UFRJ, explicando que o ciclo se completa com a exigência legal de que haja superávit primário, que é o que “garante que o governo vai ter um resto de dinheiro para remunerar esse setor do sistema financeiro que está cobrando juros”.  “Por um lado, garante-se dinheiro para remunerar o sistema financeiro. Por outro, se você tem que ter um superávit primário, os seus gastos têm que ser menores do que as suas receitas. A gente poderia aumentar as receitas para garantir isso, só que isso significa aumentar a tributação e a classe dominante brasileira impede um imposto de renda progressivo e a tributação de altas fortunas. E diminuir os gastos do governo significa diminuir os gastos com saúde, educação e todos os serviços públicos”, analisa.

Mas não para por aí. Gouvêa ressalta que os bancos privados tendem sempre a acompanhar a decisão do BC quando a taxa de juros sobe – embora isso não necessariamente aconteça quando ela desce. Assim, explica a economista, os setores do capital ligados à indústria e aos serviços – como as grandes lojas de varejo –, que sempre precisam pegar empréstimos para manter e intensificar suas atividades, não só reduzem o investimento, diante dos juros altos que teriam que pagar, como, muitas vezes, optam por também aplicar o seu dinheiro nos títulos da dívida pública que, com a Selic nas alturas, acaba remunerando mais do que a produção ou a venda de serviços. “Quando você tem uma taxa de juros que é mais lucrativa do que produzir frango, por exemplo, esse capital vai migrando para essa operação financeira. E isso gera um impacto na economia real”, explica Gouvêa. O raciocínio é simples: menos dinheiro investido na indústria e nos serviços significa menos empregos, menos salários e menos crescimento econômico. Tudo isso sem contar que os juros altos do sistema bancário impactam também os empréstimos das pessoas comuns, que querem, por exemplo, financiar a compra de um apartamento. “O nosso comprometimento com o combate ao desemprego e com o combate à fome tem que esperar primeiro o resultado da inflação para acontecer?”, questiona Rodriguez, que completa: “Essa é uma decisão política, que faz parte de um conflito distributivo”.

Quem participa das decisões do Banco Central?

E aqui surge outro problema, já que, segundo os entrevistados desta reportagem, essa “decisão política” vem sendo tomada cada vez mais longe dos espaços que, numa sociedade democrática, deveriam dar a última palavra. Isso porque, com as amarras legais instituídas desde a criação do regime de metas de inflação e, principalmente, com a recente autonomia do Banco Central, a política monetária implementada por essa entidade pode ir na contramão do programa político aprovado nas urnas. “O governo quer tomar uma política de desenvolvimento e tem no Banco Central uma contrabalança, que faz oposição”, ilustra Rodriguez, que critica: “O Banco Central é uma instituição do Estado. Ele tem que colaborar com um projeto que foi eleito, não o contrário”.

No roteiro de questões enviado à assessoria de imprensa do Banco Central, a reportagem incluiu uma pergunta sobre as instâncias de regulação e controle das suas decisões. O pedido de entrevista com um porta-voz da entidade, no entanto, não foi atendido. No site, o texto que fala sobre “prestação de contas e responsabilização” cita a apresentação semestral de resultados ao Congresso Nacional, o atendimento a eventuais audiências solicitadas pelo legislativo e a auditoria interna e externa, feita por uma empresa, além da supervisão e auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) e Controladoria Geral da União (CGU). “Principalmente desde a década de 1980 a gente tem passado [por um processo] de democratização e participação pública nas instituições, de inserção [das instituições] em movimentos sociais e fóruns populares... Como é que o Banco Central conseguiu ficar de fora desse processo e se esconder cada vez mais, ficar mais obscuro e menos transparente?”, interroga Rodriguez.

Isso, no entanto, não significa que o BC não sofra pressões. Na avaliação de Rodriguez, inclusive, a autonomia em relação ao governo tem gerado, na outra ponta, uma dependência crescente do setor financeiro, que lucra com as altas taxas de juros. “O Brasil tem a segunda maior taxa de juros real do mundo. E isso significa que tem uma entrada de capitais estrangeiros muito grande para fazer aplicações a essa taxa de juros. Então, é bizarro dizer que isso é só para controlar a inflação. Existem interesses muito profundos sendo remunerados por essa taxa de juros alta”, analisa Marina Gouvêa. Na mesma linha, Rodriguez pondera que, apesar de essa ter se tornado praticamente a única ferramenta usada pelo BC, nem toda inflação pode ser controlada com a elevação da taxa de juros. “O Brasil ainda é uma economia muito subordinada. Tudo que tem um custo associado a moedas estrangeiras, se o câmbio mudar, aumenta de preço no Brasil”, diz, exemplificando com a alta do valor do petróleo, que altera o preço da gasolina. “A gente não vai combater essa inflação com o aumento da taxa de juros”, ilustra.

Teorias econômicas

Não têm faltado acusações de motivação político-partidária do atual presidente do BC, que foi indicado no governo Jair Bolsonaro, na análise das decisões mais recentes da entidade sobre a taxa de juros. Mas a verdade é que essas opções estão sustentadas num receituário econômico que se fortaleceu e ganhou espaço mundial desde a década de 1970, a ponto de ser naturalizado como um saber tão objetivo e técnico que pode ser blindado de interferências políticas, tanto dos governos eleitos quanto da sociedade civil organizada. “A política neoclássica monetarista se tornou tão hegemônica que consegue não só se sobrepor na realidade, mas também criminalizar outras opções de política econômica”, analisa Gouvêa, citando como exemplo a Lei de Responsabilidade Fiscal.

No que diz respeito à maior polêmica sobre o papel do Banco Central no Brasil, ela explica que o principal aspecto a ser compreendido sobre essa corrente é que ela defende que a economia sempre tende para um nível de equilíbrio que se expressa no pleno emprego. “Vamos ilustrar essa ideia com uma economia que produz geladeiras. E vamos supor que o nível de pleno emprego, o nível do equilíbrio, é a produção de dez geladeiras. A gente tem um bando de pessoas que ganhava, por exemplo, R$ 2 mil por mês e pagava R$ 500 numa geladeira. De repente, o Banco Central emite moeda, que se espalha pela economia, e essas pessoas, em vez de terem R$ 2 mil na mão, passam a ter R$ 3 mil. A demanda por geladeiras aumenta – porque agora que você tem mais dinheiro, quer comprar coisas –, mas a oferta não. E isso aumenta o preço da geladeira. Então, o que, grosso modo, a teoria macroeconômica monetarista pensa é que aumentar a oferta de moeda na economia apenas gera inflação, porque isso não tem efeito nenhum sobre a economia real”, ilustra. E resume: “Basicamente, para a teoria neoclássica, se tem crise é porque a economia não está no pleno emprego, se tem inflação é porque tem dinheiro demais na economia. Então precisa tirar dinheiro da economia e isso tem um efeito recessivo”.

Já o keynesianismo ou desenvolvimentismo, teoria que no debate público brasileiro mais tem se contraposto ao discurso monetarista, não acredita que a economia tende sempre ao pleno emprego, explica Gouvêa. “Para o [John Maynard] Keynes, essas dez geladeiras não são necessariamente o nível de pleno emprego dos fatores de produção. Você tem que analisar. Se estiver nesse ponto, aumentar a oferta de moeda na economia só aumenta a inflação. Porém, se você estiver abaixo desse ponto e as pessoas ganhando mais quiserem comprar mais, o que vai acontecer é que a fábrica vai produzir mais geladeiras. E para isso ela vai contratar mais pessoas e aquecer a economia, num efeito multiplicador”, exemplifica, concluindo: “Então, para o Keynes, é possível gerar investimento através do aumento da demanda. Para a teoria neoclássica, não: isso só gera inflação”. Embora não se considere desenvolvimentista, a professora da UFRJ tem convicção de que a observação da realidade concreta mostra que, de fato, “uma diminuição da taxa de juros, em geral, pode aquecer a economia real”. Mas, falando por uma perspectiva marxista, na qual se reconhece, ela pondera: “Eu, porém, não considero que isso significa resolver a crise capitalista nem que seja sustentável a longo prazo”.

Para além da inflação

Polêmicas à parte, no Brasil e no mundo, o BC é o “banco dos bancos”, como define Rodrigo Rodriguez, tendo, portanto, também, uma função regulatória em relação ao sistema financeiro. Por incrível que possa parecer, existem países, como os Estados Unidos, em que Banco Central é privado, funcionando como um pool de instituições que, de certa forma, se autorregulam. No Brasil, o BC é uma autarquia pública. É o presidente da República quem indica o nome de quem deverá ficar no comando da instituição por um mandato de quatro anos que, como estratégia de reforço à autonomia, não coincide com o período do governo. O indicado deve ainda ser aprovado pela maioria dos senadores, depois de passar por uma sabatina.