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Educação Profissional

“Particular atenção dedicarei ao ensino técnico-profissional, artístico, industrial e agrícola que a par da parte propriamente prática e imediatamente utilitária, proporcione também instrução de ordem ou cultura secundária, capaz de formar o espírito e o coração daqueles que amanhã serão homens e cidadãos”. Não fosse pelo estilo mais rebuscado, que denuncia a idade, você poderia achar que essa foi uma frase do Ministro da Educação Fernando Haddad ou do Presidente Lula na recente campanha pela reeleição. Mas, acredite, o discurso acima foi feito por outro Presidente da República, o Marechal Hermes da Fonseca — em 1910!
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 25/01/2007 11h48 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

“Particular atenção dedicarei ao ensino técnico-profissional, artístico, industrial e agrícola que a par da parte propriamente prática e imediatamente utilitária, proporcione também instrução de ordem ou cultura secundária, capaz de formar o espírito e o coração daqueles que amanhã serão homens e cidadãos”.

Não fosse pelo estilo mais rebuscado, que denuncia a idade, você poderia achar que essa foi uma frase do Ministro da Educação Fernando Haddad ou do Presidente Lula na recente campanha pela reeleição. Mas, acredite, o discurso acima foi feito por outro Presidente da República, o Marechal Hermes da Fonseca — em 1910! Com quase 100 anos de distância, as duas falas apresentam os mesmos velhos desafios: a priorização da Educação Profissional e sua articulação com a formação geral.

É bem verdade que, naquela época, a expressão Educação Profissional não havia sido ainda legalmente assumida — o que só aconteceu em 1996, com a atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) —, embora já fosse defendida pelos militantes do movimento da Escola Nova, na década de 30. Pela definição de um dos decretos que regulamentou a LDB, Educação Profissional é o segmento que engloba três níveis de ensino: a formação inicial e continuada, que se refere a cursos de qualificação para o trabalho, em geral de curta duração; os cursos técnicos, que exigem o ensino médio; e os cursos tecnológicos de graduação ou pós-graduação, que são de nível superior, mas têm duração, estrutura e objetivos específicos. Para se ter uma ideia do que isso significa na nossa vida cotidiana, cerca de 54% dos trabalhadores do SUS são de nível auxiliar ou técnico. Auxiliares de enfermagem, auxiliares de consultório dentário , agentes comunitários de saúde, técnicos em enfermagem, higiene dental, biodiagnóstico e vigilância sanitária são exemplos de profissionais formados nesse segmento.

Independentemente do nome que recebeu ao longo do tempo, o que hoje nós chamamos de Educação Profissional sempre se referiu à formação do trabalhador. Mas o que isso significa na prática? “Na nossa vida, estamos o tempo todo nos preparando para o exercício da profissão, e parte desse processo não se dá necessariamente em cursos específicos de formação profissional”, explica Ana Margarida Campello, pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV) que foi uma das autoras desse verbete no ‘Dicionário de Educação Profissional em Saúde’, editado pela Escola. Assim, segundo ela, de certa forma já havia Educação Profissional na prática dos antigos artesãos, mas num contexto em que o aprender era colado no fazer, sem a mediação da escola. Ela nos conta que, por isso mesmo, alguns autores apontam a industrialização como um marco nessa história. “Manacorda, por exemplo, diz que aescola nasceu junto com a fábrica”, explica, referindo-se ao autor italiano.

A presença da escola fez toda diferença nos rumos da Educação Profissional também na área específica da Saúde, no Brasil. O primeiro grande incentivo à formação em massa dos trabalhadores de nível auxiliar e técnico em saúde no país foi o Projeto Larga Escala, idealizado e coordenado pela enfermeira Izabel dos Santos nos anos 80. Claro que antes disso as pessoas se qualificavam no trabalho, aprendiam com os erros e acertos da prática cotidiana. Mas para transformar a Educação Profissional em Saúde numa política pública que modificasse a realidade do sistema, o projeto previu a criação de uma Escola em cada estado brasileiro, para que os trabalhadores aprendessem fazendo, inseridos nos serviços, mas contando com a estrutura e o saber educacional. Nasciam, assim, as Escolas Técnicas do SUS.

O papel da escola ao longo da História ajuda a entender também os principais desafios da Educação Profissional ainda hoje. No mundo como um todo, foi só com a Revolução Industrial, por exemplo, que a escola passou a transmitir conhecimentos técnicos e profissionais. Antes, ela cuidava apenas da formação ntelectual e delegava a outras instituições a preparação para o trabalho. E, embora isso pareça coisa de um passado remoto, basta reler o discurso de Hermes da Fonseca que abre esta matéria ou algumas declarações de campanha do Presidente Lula para perceber que, apesar de essa separação espacial ter sido superada, a divisão que, segundo muitos autores, ela representa — entre uma parcela da sociedade formada para pensar e dirigir e outra formada para trabalhar e obedecer — continua atual.

Aqui no Brasil, o ensino profissional também só começou a ganhar importância no século XIX, com a primeira iniciativa de desenvolvimento industrial no país. Daí em diante, foi alvo de várias leis e de diferentes instituições — Colégios de Fábrica, Liceus de Artes e Ofícios, Escolas de Aprendizes e Artífices, etc —, mas sempre entendido como tipo de trabalho (e de formação) próprio para os mais pobres. “O ensino profissional, desde o período imperial, havia sido inteiramente marginalizado em relação à educação secundária, tendo em vista que o primeiro estava destinado a formar indivíduos para o trabalho manual, enquanto o segundo destinava-se às elites, isto é, aos que ocupariam as funções de dirigentes”, nos conta Jailson dos Santos no artigo ‘A trajetória da Educação Profissional’, que faz parte do livro ‘500 anos de educação no Brasil’.

Os anos 30 foram particularmente importantes para a Educação Profissional no Brasil. Isso porque um país industrializado, como pretendia o governo de Getúlio Vargas, precisava de mão-de-obra formada. Foi nesse contexto, já na década seguinte, que foi criado o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), primeira instituição do Sistema S.

A separação entre o ensino profissionalizante e o secundário (equivalente ao atual ensino médio) era tanta que durante muito tempo eles foram responsabilidade de ministérios diferentes. Na década de 40, a legislação chegou a proibir que um técnico prestasse vestibular para um curso de nível superior que não fossediretamente relacionado com a sua formação — quem tivesse feito o secundário de formação geral poderia se candidatar a qualquer curso, porque seguiria uma formação acadêmica e não profissional. Isso acabou com a LDB de 1961 e, dez anos depois, uma nova Lei (5.692) foi mais radical e obrigou todas as escolas de segundo grau a oferecerem o ensino técnico. Uma mudança total aconteceu em 1997, com o Decreto 2.208 , que regulamentou a parte da nova (e atual) LDB que tratava da Educação Profissional. Se a Lei 5.692 buscou a integração pela força, esse decreto — que foi revogado em 2004 — caminhou para o sentido oposto, proibindo a realização do ensino médio e do técnico de forma integrada.

Para Ana Margarida, embora com ações aparentemente contrárias, essas duas legislações tiveram funções e conseqüências muito parecidas. “A Lei 5.692 parecia que tornava todos iguais, mas não foi bem assim que as coisas aconteceram. A profissionalização compulsória foi uma estratégia para conter o acesso à universidade. Era como se dissessem: ‘você já está profissionalizado, vá trabalhar, não precisa de curso superior’. Mas essa obrigatoriedade atingiu principalmente a escola pública, que foi esvaziada da sua função de formação geral e, sem recursos, teve que dar conta, de forma precária, da profissionalização. Já as instituições privadas criaram formas de ‘burlar’ a legislação e investiram mais na formação geral. O resultado é que a separação entre classes se manteve: para os pobres, a formação para o fazer; para os ricos, a formação para o pensar. Nos anos 90, o Decreto 2.208 veio assumir explicitamente essa dualidade”, analisa.

A relação entre escolarização e ensino profissional foi, junto com o financiamento, o ponto de maior discussão na 1ª Conferência Nacional de Educação Profissional, realizada pelo Ministério da Educação entre 5 e 8 de novembro do ano passado. Mas, embora a Educação de Jovens e Adultos (EJA) esteja presente nas propostas de políticas, essa discussão acaba se concentrando na integração entre ensino médio e educação profissional para jovens em idade escolar. “O sistema educacional se orientou sempre pela faixa etária ideal. A Educação prepara os alunos sem tanto compromisso com o trabalho diretamente. Com isso, a profissionalização do trabalhador adulto acabou sendo delegada a outros sistemas e ministérios, como o do Trabalho ou o da Saúde”, opina Ana Margarida.

Diante dessa realidade, como não reforçar a dualidade do ensino? Para a pesquisadora, um ponto imprescindível é a forte integração entre a Educação e essas outras áreas específicas no nível das políticas públicas. Isabel Brasil, vice-diretora de pesquisa da EPSJV, chama atenção para o fato de que a integração deve se dar desde a construção do conhecimento. “Na formação, os conceitos de educação e trabalho precisam se falar, dialogando também com as especificidades de cada área, como a saúde, por exemplo”, explica. Para ela, uma das premissas do combate à dualidade do ensino é garantir, nos projetos educacionais — que por sua vez se traduzirão tanto em teorias das áreas de conhecimento científico quanto nas práticas —, que a Educação Profissional seja parte de um projeto voltado para a formação humana. Isso requer, segundo Isabel, que os currículos escolares mostrem que o conhecimento a ser ministrado deve contemplar tanto as ciências humanas quanto as da natureza; que tenham uma concepção de ciência para além da abordagem instrumental; e que sua abordagem do trabalho em saúde seja capaz de relacionar suas specificidades com as relações sociais. A pesquisadora acha ainda necessário que os currículos das escolas de ensino médio e EJA promovam mais discussões sobre o trabalho e sua relação com a sociedade.

E essas medidas eliminam a dualidade que marca, desde os primórdios, a Educação? Isabel responde: “Claro que não! Podemos apenas amenizá-la e combatê-la porque, no capitalismo,  Educação vai sempre refletir a sociedade de classes em que vivemos”.