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Estado

Diz-se o tempo todo que direitos como saúde e educação são deveres do Estado, garantidos pela Constituição brasileira. Exige-se ainda que diversos problemas da população, a exemplo da segurança pública e da habitação, sejam objetos de políticas de Estado, e não apenas ações de governos. Mas, afinal, qual a diferença?
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 01/05/2011 10h45 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Diz-se o tempo todo que direitos como saúde e educação são deveres do Estado, garantidos pela Constituição brasileira. Exige-se ainda que diversos problemas da população, a exemplo da segurança pública e da habitação, sejam objetos de políticas de Estado, e não apenas ações de governos. Mas, afinal, qual a diferença?

Não há uma resposta única: de acordo com o Mauro Iasi, professor da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o conceito de Estado varia de acordo com as concepções de política e sociedade que compõe as diferentes correntes de pensamento. “Existe o pensamento contratualista, por exemplo, que compreende o Estado como uma força colocada acima da sociedade e que teria surgido porque, sem a existência de normas e de um poder capaz de manter a sociedade, ela se tornaria uma terra de todos contra todos – o chamado ‘estado de natureza’. Essa é a posição de Thomas Hobbes, um autor clássico da política, entre outros. E é também a posição que fundamenta o pensamento liberal”, explica.

Esse poder soberano teria, assim, o direito de impor as normas e também de punir quem não as cumpra, de modo a manter um ‘estado civil’ em vez do estado de natureza. E, segundo Iasi, a legitimidade desse Estado é afiançada na medida em que ele garanta aos membros da sociedade os seus ‘direitos naturais’: “Trata-se do direito à vida e à integridade, à liberdade, à igualdade e, especificamente a partir do liberalismo, o direito à propriedade, que é também transformado em direito natural”, enumera.

A professora Sonia Mendonça, do programa de pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF), observa ainda outra característica importante da visão clássica-liberal: ela vê tanto o Estado quanto a sociedade como somatórios de indivíduos e desconsidera a existência de classes sociais. Dessa forma, não admite os conflitos de classe. “Para essa visão, a sociedade não é formada por grupos de indivíduos inseridos em um processo de produção, mas sim por indivíduos autônomos, que têm livre arbítrio. Trata-se de uma matriz conveniente, porque esvazia o potencial de conflitividade que existe no mundo social real. E o Estado se legitima o tempo todo, já que a sociedade ‘precisa’ dele para se preservar”, diz.

Onde entram as classes

A visão liberal é contestada pela posição marxista do Estado, que questiona se ele é mesmo algo acima e fora da sociedade. “O marxismo defende que o Estado é, na verdade, um produto do desenvolvimento da própria sociedade, num momento histórico em que ela se divide por interesses antagônicos – esses interesses, por sua vez, são a base da existência das classes sociais. Para o marxismo, o Estado é produto desse antagononismo inconciliável entre classes”, afirma Iasi.

Ele explica: o desenvolvimento da propriedade privada e da apropriação da riqueza por apenas parte da sociedade, e não por todos, gera uma contradição. “Essa contradição exige um corpo armado especial que se imponha à sociedade. Por isso, para o marxismo, o Estado é sempre o Estado de uma classe social – nas palavras de Marx, o Estado de uma classe economicamente dominante que, graças a ele, se torna também politicamente dominante”, diz.

Outra novidade da leitura marxista, segundo Sonia Mendonça, é a ideia de que não existe a tal dicotomia entre estado de natureza e estado civil vista pela corrente clássica-liberal. “Marx diz que não existe estado de natureza, porque a sociedade sempre se organizou a partir das formas de produção dos homens. A partir daí é que se caminha para uma compreensão da sociedade e do Estado como sendo interrelacionados”, conclui.

Desdobramentos

De acordo com Iasi, uma das linhas questionadoras da teoria marxista é a social-democracia, que relativizou o caráter de classes sociais. Um dos pressupostos de Marx é o de que, como o Estado é de uma classe dominante, ele não pode ser simplesmente reformado pela sociedade. “O que pode acontecer é, em um processo de mudança social, a classe revolucionária derrubar esse Estado e construir um novo, como propôs Lênin, dirigente da revolução russa, que visou à constituição de um Estado proletário. Entretanto, a social-democracia prega que essa ruptura e destruição não são necessárias, pois é possível que o Estado mude de qualidade, dependendo da correlação de forças na sociedade. Trata-se, portanto, de uma linha reformista”, explica o professor.

Quem também questionou a concepção de Estado de Marx, mas por dentro do campo marxista, foi o filósofo italiano Antonio Gramsci. “Embora Marx tenha desmontado a noção de estado de natureza, desfazendo a dicotomia entre estado de natureza e estado civil, e embora considerasse que o Estado era produto da sociedade e fizesse parte dela, sua visão ainda era um pouco dicotômica: havia uma separação entre sociedade civil e o Estado, mesmo que eles estivessem interrelacionados”, diz Sonia. 

Gramsci compreendeu que o Estado capitalista do século XX era muito mais complexo e deveria ser entendido em outros termos, ainda que mantivesse seu caráter de classe. Assim, o autor desenvolveu uma teoria ampliada do Estado, em que, como explica Sonia, “não há separação efetiva – a não ser para fins didáticos – entre a sociedade civil e o Estado restrito, que é aquilo que chamamos de Estado, mesmo”. “O Estado restrito só funciona na exata medida em que a própria sociedade civil se constitui e se move. E qualquer mudança na correlação de forças da sociedade civil gera mudanças no Estado restrito”, completa a professora. De acordo com ela, essa visão é interessante porque atribui à sociedade civil uma capacidade de atuação política maior.

Mas uma observação é necessária: “Gramsci só considera como verdadeira sociedade civil os homens que se encontram nela organizados, produzindo seus próprios projetos de transformação. Os que não estão organizados são chamados homens-massa – não num sentido pejorativo, mas no sentido de que são enfraquecidos politicamente. Eles não fazem parte do Estado ampliado”, diz Sonia. E os meios que a sociedade tem para organizar a vontade coletiva são os chamados aparelhos privados de hegemonia. “Podem ser clubes, associações de moradores, imprensa, partidos políticos e outras formas de organização”, explica. (para saber mais sobre esse tema, veja o verbete Hegemonia ).

Sonia explica que, num momento de maior complexidade do Estado capitalista, há mais aparelhos privados de hegemonia e é cada vez mais difícil fazer uma revolução tradicional, nos moldes da revolução russa. “Isso porque as classes dominantes têm mais facilidade de criar e manter seus aparelhos de hegemonia, já que têm mais recursos e até mais tempo. Esses aparelhos das classes dominantes organizam a vontade coletiva e elaboram projetos que se tornam consensuais – inclusive aos dominados. A saída, para Gramsci, é justamente que as classes dominadas e suas várias frações se organizem também em aparelhos. A revolução viria daí”, explica. Assim, Gramsci não só desenvolveu uma nova concepção de Estado como também uma nova visão de vias de transformação social.

Estado e governo

O Estado é um conceito. Na prática, segundo Iasi, ele se materializa em um conjunto de instituições que englobam “o poder executivo, o legislativo, os elementos do judiciário, as forças armadas”. “Os governos são os homens que ocupam as funções do Estado momentaneamente”, completa Sonia.

De acordo com a professora, mesmo que as classes dominadas não estejam presentes nos governos, é preciso que sejam feitas concessões a elas, para manter a legitimidade: “Qual foi a primeira coisa que Getúlio Vargas criou após o golpe de 1930? O Ministério do Trabalho. Porque já havia um problema grave de movimentos grevistas, com contestações da classe operária o tempo todo”.

Para Iasi, é preciso tomar cuidado com a ilusão de que o controle do governo geraria, por si só, o controle do Estado. “O Estado tem determinações mais profundas, está ligado às classes econômica, política e ideologicamente dominantes. Se, num Estado capitalista, a correlação de forças na sociedade permite que um grupo de orientação socialista ou popular chegue ao poder do governo, ainda assim ele estará constrangido pelo poder econômico e pela hegemonia político-ideológica que se mantém na sociedade. Chegando ao governo, terá que desenvolver políticas que respondam à ordem capitalista e sejam pautadas e constrangidas por ela. O cientista político Adam Przeworski diz: a social-democracia percebeu, na sua experiência histórica, que estar no governo confere muito pouco poder. Isso porque qualquer Estado capitalista é dependente, em última instancia, do capitalismo”, afirma Iasi.

É por isso que, segundo o professor, as políticas de Estado, embora importantes, acabam respondendo à lógica da forma societária em que se encontram. “A correlação de forças pode produzir políticas que atendam a interesses da classe trabalhadora, como de fato aconteceu na história. Houve regulação da jornada de trabalho, das férias e dos salários, por exemplo. Essas trincheiras são, sem dúvida, importantes. Mas elas são sempre constrangidas pela perpetuação ou não das formas econômicas de propriedade e de acúmulo de riqueza próprias do capitalismo”, diz. Ele salienta ainda que, durante muito tempo, se acreditou que esses direitos conquistados, uma vez acumulados, não seriam perdidos. “A conjuntura atual tem mostrado o inverso. Há vários pontos, mesmo no centro do sistema, como na Europa e nos EUA, em que patamares de direitos alcançados nos últimos períodos históricos estão hoje em franco regresso”, observa.

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