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Farmacovigilância

Processo de detecção, avaliação, compreensão e prevenção de eventos adversos a imunizantes e medicamentos foi estruturado no mundo na década de 1960 e é arma fundamental para combater hesitação em vacinar
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 22/03/2021 09h29 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a cada minuto a vacinação em massa evita quatro mortes no planeta – o que corresponde a mais de 2,1 milhões de vidas salvas por ano. Ainda segundo o organismo, caso a cobertura vacinal fosse ampliada, mais 1,5 milhão de mortes poderiam ser evitadas anualmente. Ao mesmo tempo, em alguns lugares cresce a desconfiança da população em relação aos imunizantes – e a própria OMS apontou recentemente a hesitação em vacinar como uma das dez maiores ameaças à saúde global.

No maior estudo já feito sobre o assunto, publicado na revista The Lancet em setembro de 2020, pesquisadores mapearam o grau de confiança nas vacinas. Foram analisados dados de 149 países, coletados ao longo de cinco anos. E uma das nações onde esse nível vem caindo é o Brasil. Em 2015, 73% dos brasileiros acreditavam que as vacinas eram seguras – o que nos colocava na 26ª posição no ranking internacional. Em 2019, esse índice tinha caído para 63%, nos empurrando para a 57ª posição.

Um dos pilares para manter – e, de preferência, aumentar – essa confiança é a farmacovigilância, estrutura responsável pela avaliação de medicamentos e vacinas durante seu uso pela população.

O que impulsionou

O principal marco desta história é conhecido. Trata-se da tragédia da talidomida, medicamento lançado em 1957 como sedativo, que depois foi promovido pela farmacêutica alemã Grunenthal como uma panaceia para todos os males, da ejaculação precoce à tuberculose. Seu slogan publicitário era “completamente inócuo, completamente seguro”. Aprovada em diversos países, a talidomida acabou sendo receitada também para gestantes. Em 1961, dois médicos publicaram trabalhos em que ligavam o aumento de casos de má-formação em bebês ao consumo da droga durante a gravidez, despertando atenção mundial para o problema.

“Com o reconhecimento dessa tragédia é que se estabeleceram os princípios da farmacovigilância: um processo de detecção, avaliação, compreensão e prevenção de reações adversas a fármacos”, pontua José Ruben Bonfim, da Sociedade Brasileira de Vigilância de Medicamentos (Sobravime). O caso – que nas palavras da OMS “encerrou abruptamente uma era de confiança acrítica nos remédios” – mudou, dentre outras coisas, a forma como os países se organizavam para monitorar medicamentos e vacinas durante sua comercialização, com o surgimento de regras de notificação para serviços e profissionais de saúde. No plano internacional, levou à criação, em 1968, do programa da OMS para monitoramento de reações adversas, que hoje coordena uma rede com mais de 130 países e auxilia outros 20 a estruturarem seus sistemas de farmacovigilância.

Uma ponta e outra

Ao longo da pandemia, aprendemos que, desde a fase pré-clínica, quando os testes de vacinas são realizados em animais, até os três momentos da etapa posterior, com voluntários humanos, precisam ser produzidos dados confiáveis sobre segurança e eficácia. Essas informações são analisadas por agências reguladoras, que também se certificam de como acontecerá a fabricação do produto, o que inclui inspeções nas empresas de insumos.  Mas, após o registro, o trabalho não está acabado.

“Por mais participantes que tenha, um estudo clínico nunca vai atingir o número total de pessoas que podem vir a usar o produto quando ele for para o mercado”, explica Patrícia Mouta, da área de farmacovigilância da Assessoria Clínica de Bio-Manguinhos, da Fiocruz. E dá para perceber isso, diz ela, olhando exemplos atuais. Um dos maiores ensaios clínicos de uma vacina contra o corona foi o conduzido pelas farmacêuticas Pfizer/BioNTech, com 43 mil voluntários. Mas só na primeira semana da campanha do Reino Unido, país que tomou a dianteira mundial da vacinação em dezembro, o imunizante foi aplicado em 130 mil pessoas.

Além disso, enquanto houver comercialização, haverá vigilância. Isso permite avaliar se o produto continua trazendo mais benefícios do que riscos. “A farmacovigilância tem condições de identificar eventos adversos muito raros – e é importante que ela esteja funcionando bem para captá-los o mais rápido possível”, sublinha Mouta. No caso das vacinas, por exemplo, existem manuais listando todas as reações adversas já identificadas, assim como o tratamento clínico mais adequado para cada uma delas. O manual brasileiro, aliás, foi atualizado há pouco pelo Ministério da Saúde, e relançado em dezembro de 2020.

Mais do que reações adversas, a farmacovigilância hoje trabalha com a noção de “evento adverso”. O monitoramento pós-registro precisa verificar se um produto está fazendo menos efeito do que o prometido pelo fabricante, se o fármaco está sendo prescrito e dispensado da forma correta, se há uso abusivo de um medicamento e até se preocupar com a chamada prescrição off label, fora das finalidades indicadas na bula.

Além disso, precisa separar o joio do trigo, ou seja: analisar se o evento adverso tem a ver com o produto em si (sua qualidade, seus ingredientes, seu mecanismo de ação), com a forma como foi manuseado ou aplicado ou com a pessoa que o consumiu. “Na vida real, os médicos vão prescrever para pacientes que são muito mais complexos do que os participantes da pesquisa clínica. Então aparecem outros problemas, interações com medicamentos que o paciente já tomava”, exemplifica José Ruben Bonfim.

Como funciona no Brasil

Por aqui, a farmacovigilância tem dois braços diferentes, um destinado somente às vacinas, coordenado pelo Programa Nacional de Imunizações (PNI), e um segundo que abarca medicamentos e também vacinas, tocado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa.

Procurada pela Poli, a Anvisa explicou, por meio da sua assessoria de imprensa, que o PNI se concentra no aspecto epidemiológico, enquanto a agência avalia “se há evidências ou indicativos de alteração na relação de benefício-risco da vacina que podem direcionar alguma medida regulatória”, que vão desde comunicação de risco aos profissionais e à sociedade, até restrições nas especificações de uso do produto. Cabe à agência, por exemplo, o contato com os fabricantes. “Enviamos relatórios periódicos à Anvisa para dizer se o perfil do produto continua favorável, se a gente julga que é importante fazer algum estudo complementar”, explica
Patrícia Mouta, destacando que a agência também pode exigir das empresas esses estudos, se julgar necessário.

Para isso, a Anvisa conta com o VigiMed, um sistema voltado para empresas farmacêuticas, mas também aberto a serviços de saúde, profissionais liberais e cidadãos. Entre janeiro de 2018, quando a plataforma começou a funcionar, e janeiro de 2021, juntando-se todos os medicamentos e vacinas aplicados no país, haviam sido informados 29.905 eventos adversos, a maioria leves, como prurido, náusea e dispneia.

A vacina contra a Influenza A (H1N1) só tinha recebido uma notificação. A BCG, três. A pentavalente, responsável por proteger contra tétano, difteria e hepatite, recebeu quatro alertas. Já medicamentos que vêm sendo usados off label durante a pandemia ostentam mais notificações: a azitromicina recebeu 123 e a cloroquina 1.039, sendo que esta última pulou de 135 notificações em 2019 para 889 no ano passado.

Na avaliação de José Ruben Bonfim, porém, do jeito como funciona hoje, a farmacovigilância de medicamentos não chega a ter força para mudar a conduta dos médicos nem dos gestores de saúde pública. “No Brasil, o cidadão comum ainda tem uma confiança quase ilimitada de que aquele remédio vai ser bom para ele. Por outro lado, também falta um trabalho contínuo de educação dos prescritores e dos dispensadores”, opina.

Já no caso das vacinas, o controle é bem maior. “Essa vigilância surgiu junto com o PNI, em 1973, mas se estruturou de maneira mais organizada na década de 1990, quando foi criado o Sistema Nacional de Vigilância de Eventos Adversos Pós-Vacinação”, retoma Mouta, fazendo menção à estrutura que reúne órgãos de todas as esferas da federação.

Na ponta, unidades básicas de saúde, salas de vacinação e outros serviços ficam responsáveis por identificar os eventos adversos e classificá-los como graves, não graves e decorrentes de erros de imunização. Todos os eventos graves devem ser notificados ao setor responsável por imunizações ou à vigilância epidemiológica dos municípios em até 24 horas. As cidades devem iniciar a investigação do que houve em, no máximo, 48 horas. De acordo com o protocolo, essas informações vão ‘subindo’ e sendo analisadas pelos estados e pelo PNI, que conta com um comitê de especialistas só para isso. “Mas não é um processo burocrático. Dependendo da gravidade do evento, município, estado e PNI atuam ao mesmo tempo para orientar o tratamento”, afirma Helena Sato, coordenadora do Programa Estadual de Imunizações de São Paulo.

É dela um exemplo que ajuda a entender como tudo isso funciona na prática: “A vacina BCG é aplicada na maternidade porque a tuberculose é endêmica no Brasil e é fundamental que o bebê seja imunizado antes de entrar em contato com o Mycobacterium tuberculosis para prevenir neurotuberculose, uma forma grave da doença que traz um comprometimento neurológico muito importante. É raríssimo, mas existem crianças que têm uma alteração na imunidade celular e isso pode provocar a disseminação da cepa vacinal pelo organismo. É papel da farmacovigilância captar quando isso acontece”. Para isso, as equipes das salas de vacinas e os profissionais do SUS são treinados para estarem atentos a esses sinais. No caso dessa reação em particular, as principais pistas são demora para cicatrizar a lesão onde foi aplicada a vacina (a BCG deixa a famosa marquinha no braço) e aumento no tamanho dessa ferida. Também pode ser feito um exame para confirmar se a cepa é da tuberculose ou da vacina – e isso influencia no tratamento da reação adversa. “Mas se tratar adequadamente e no tempo certo, cura”, destaca Sato, que é pediatra.

Os números do PNI não estão abertos para a consulta do público. Por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), a Poli obteve dados dos eventos adversos pós-vacinação desde que o sistema começou a funcionar, em 2000, até 2020. No total, foram relatados 623.278 eventos adversos de todos os tipos para todas as vacinas já usadas no país, sendo os mais comuns dor (60 mil), edema (48 mil) e febre (46 mil). Em relação às vacinas que estão sendo aplicadas contra a Covid-19 – Oxford/AstraZeneca e CoronaVac –, o Ministério da Saúde divulgou no início de fevereiro ter recebido 1.038 comunicações de eventos adversos quando o país já tinha mais de dois milhões de pessoas imunizadas. Desse total, apenas 20 foram considerados graves, e estavam sob investigação.

Em meio à pandemia, a orientação da OMS é que os países fortaleçam seus sistemas de farmacovigilância. “O que nós temos hoje é o sistema passivo, cabe aos profissionais notificarem e à vigilância epidemiológica dar os feedbacks caso a caso. Mas a vacinação de Covid-19 traz desafios e existe a discussão de instituir programas de vigilância ativa. O PNI está discutindo isso”, conta Eder Gatti, médico da Divisão de Imunizações de SP, que vem representando o estado nesse debate. Ele lembra que esse tipo de vigilância, chamada sentinela, já ocorreu no país com outra vacina, a do rotavírus. Isso porque a primeira geração do imunizante provocou obstrução intestinal em crianças – e, por isso, foi retirada do mercado. Mais pesquisas foram feitas e surgiu uma segunda geração – mas, com base na experiência anterior, SP cadastrou todos os serviços do estado que faziam cirurgia pediátrica para investigar ativamente se havia casos de obstrução e se poderiam estar ligados à nova vacina. Gatti explica que o mesmo poderia ser feito para as vacinas contra a Covid-19 usando como base, por exemplo, uma lista com 18 eventos adversos de interesse especial produzida pelo Brighton Collaboration – rede com milhares de especialistas que auxilia a OMS no tema. No final de fevereiro, também a Fiocruz lançou uma nota técnica com orientações específicas para a farmacovigilância da vacinação contra a Covid-19.

Se nenhum medicamento ou vacina é totalmente livre de riscos, é consenso que seu uso mudou radicalmente a forma como as doenças são prevenidas e tratadas – e, no caso da pandemia atual, são a única luz no fim do túnel. “É preciso aproveitar a oportunidade das doenças para as quais a gente tem vacina e se imunizar”, defende Patrícia Mouta.

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