O anúncio, ainda no final de 2022, da criação do Ministério dos Povos Indígenas por parte do presidente reeleito Luiz Inácio Lula da Silva tem motivado muitas discussões entre as organizações indígenas, entidades apoiadoras e a própria Funai, que mudou de nome nos primeiros dias do novo governo. A sigla permanece, mas o órgão passou a se chamar Fundação Nacional dos Povos Indígenas – em vez de Índios. Ainda que atualmente as ações em prol das populações indígenas estejam distribuídas por alguns ministérios, é a Funai o órgão responsável pela defesa dos direitos indígenas e, com a posse do novo governo, passa a estar vinculada ao recém-criado Ministério.
A Funai estava vinculada ao Ministério da Justiça desde que o Ministério do Interior foi extinto, no começo da década de 1990. Nesse período também ocorreram outras mudanças e as competências sobre a execução de políticas de saúde e educação saíram da alçada da entidade e seguem para os ministérios de Saúde e Educação, respectivamente. O primeiro órgão governamental dedicado a questões indígenas foi o Sistema de Proteção aos Índios (SPI), criado em 1910. No verbete dedicado ao SPI disponível na página do programa Povos Indígenas do Brasil (PIB), vinculado ao Instituto Socioambiental (ISA), a política inicial do antigo órgão é identificada como ambígua e ao mesmo tempo que dizia proteger culturas e os povos, permitia o avanço sobre suas terras. Na década de 1940, foi vinculado ao SPI o Conselho Nacional de Proteção aos Índios (CNPI), que contava com antropólogos que defendiam a autonomia dessas populações. Tanto o CNPI quanto o SPI foram extintos no começo da década de 1960 sob acusações de ineficiência e corrupção e em seu lugar, em 1967, foi criada a Funai. Ainda de acordo com o PIB, a ditadura militar subordinou a política indígena aos planos de defesa e grandes empreendimentos, como estradas e hidrelétricas. A virada na forma de tratamento veio com a Constituição de 1988, que garante autonomia dos povos, o direito coletivo à terra e a preservação de seus costumes e crenças.
Atualmente, a Funai está dividida em três diretorias: Administração e Gestão, Promoção ao Desenvolvimento Sustentável (DPDS) e Proteção Territorial (DPT). “A Funai como um todo tem um significado de suma importância. Tanto é que passamos os últimos tempos lutando para que ela permanecesse existindo, para a gente conseguir hoje, de alguma forma, ajudar a reconstruir e reformular a política indigenista e a atuação do órgão”, diz o coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas (Apib), Kleber Karipuna. A Administração e Gestão executa ações que permitem às outras duas existirem e trabalha tanto com a parte de recursos humanos quanto com compras e licitações das 39 unidades espalhadas pelo país, do Oiapoque a Passo Fundo (RS). “A Funai está presente no país inteiro e é pouca gente para dar conta de todo o território nacional”, diz Priscila Colodetti, diretora executiva da Indigenistas Associados (INA), organização de servidores da Fundação. Ela informa que o órgão conta com 1,5 mil servidores.
A atuação da DPDS
Essa divisão tem duas atribuições principais: a promoção da cidadania e do desenvolvimento sustentável nos territórios. No primeiro caso, as atividades incluem providenciar o registro civil, aposentadoria, auxílio maternidade e acompanhamento das atividades dos indígenas na escola e no acesso à saúde. Colodetti explica que não cabe à Funai executar políticas de Saúde e Educação, mas à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) – vinculada ao Ministério da Saúde e ao Ministério da Educação (MEC). No entanto, cabe à Funai mediar situações em que os direitos indígenas não sejam cumpridos. “Eles podem recorrer a nós para que a gente faça a articulação junto à Sesai para entender porque está faltando atendimento, por exemplo”. Uma assistência que deve ser destinada a todos os indígenas, sejam eles moradores de áreas demarcadas ou não, o que significa, de acordo com o Censo de 2010, atender a uma população de mais de 800 mil pessoas. Desse total, cerca de 500 mil estão em áreas rurais.
Já as ações de desenvolvimento sustentável incluem a elaboração e implementação de Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTAs) de cada comunidade indígena conforme a PNGATI, a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental em Terras Indígenas. “A política de ecodesenvolvimento, principalmente em governos anteriores a 2019, se fortaleceu muito para garantir essa autonomia. As populações indígenas puderam trabalhar um plano de gestão do seu território, com a definição de quais áreas são mais estratégicas para preservação, quais são mais históricas, como cemitérios antigos, áreas que são de circulação de caça e de turismo em terras indígenas”, avalia o coordenador executivo da Apib. Ele também destaca que havia recursos para a agricultura familiar, para a produção de artesanato. Essa oferta de financiamento também é realizada pela Funai. No entanto, Karipuna concorda com a denúncia apresentada em dossiê produzido pelo INA de que o espectro de ação dessa diretoria foi bastante reduzido nos últimos anos. “Então, a DPDS, não se resume apenas, como aconteceu nesses últimos quatro anos, a uma diretoria para a entrega de cestas básicas ou instalação de barreiras sanitárias dentro das comunidades indígenas. Pelo contrário, temos atribuições que passam pelo licenciamento ambiental, pela implementação da PNGATI, pela promoção do ecodesenvolvimento das comunidades indígenas, enfim, pela parte das políticas sociais”, argumenta. A implementação da política não passa apenas pelo desenvolvimento da produção local, mas também de proteção contra avanços agrícolas vizinhos. “Há uma relação muito próxima com o Ibama [o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis], que é o órgão licenciador na questão ambiental, e a DPDS precisa validar os estudos de impacto ambiental dentro do componente indígena de determinado empreendimento. Então isso tudo ficou paralisado nesses últimos tempos”, completa.
Monitoramento e demarcação de terras – as funções da DPT
De acordo com dados do Sistema Indigenista de Informações da Funai, há um total de 701 terras indígenas no país que somam 111 milhões de hectares. Isso equivale, aproximadamente, ao estado do Pará. Destas, 114 estão em estudo, 43 foram delimitadas, 63 declaradas, 22 homologadas, 411 estão regularizadas, ou seja, cumpriram todas as etapas de demarcação e 48 são reservas indígenas, áreas compradas pela União ou doadas por terceiros. “Diria que a principal atribuição dentro da Funai é a demarcação de terras e a proteção dos territórios indígenas”, diz o coordenador executivo da Apib. “E a gente entende que esta é uma responsabilidade de proteção das terras indígenas, seja ela em fase inicial do seu processo demarcatório ou seja ela fase conclusiva”.
Essa vigilância é feita tanto em parceria com os próprios indígenas como em conjunto com as forças de segurança. Além disso, com agentes do Ibama e do ICMBio, Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, que, apesar de não serem forças de segurança, são agentes ambientais que fazem parcerias de monitoramento. Há estratégias tecnológicas também, tanto próprias quanto em parceria com o Inpe, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. “O monitoramento territorial trabalha com um monitoramento um pouco mais ostensivo, pensado para evitar ilícitos, invasões; e a gestão é uma forma de monitorar o território a partir da proteção ambiental. Eu as vejo conectadas, uma preventiva e uma ostensiva”, diz Carolina Santana, advogada e ex-funcionária da Funai.
O monitoramento realizado também inclui povos em isolamento voluntário, decisão que deve ser protegida, e a Funai tem uma divisão específica dentro da DPT para estes povos chamada Coordenação de Índios Isolados e Recém Contatados (CGIRRC). “O isolamento é um direito e é uma manifestação de vontade, ainda que não seja verbal ou escrita, mas essas populações deixam muito claro, fugindo, rechaçando, deixando armadilhas, atacando quem se aproxima, de que esse é o modo de vida que querem levar”, recorda Carolina Santana.
A demarcação de terras, que Santana defende que seja prioridade, também é específica. “A equipe da Funai é especializada em localização e monitoramento de povos isolados e conseguem monitorar o perímetro por onde eles andam, onde eles coletam material para construir casas, redes, instrumentos, caça, pesca, a partir dos vestígios e assim conseguem identificar o perímetro utilizado por essas populações. Aí a demarcação é realizada também sempre evitando o contato”, explica. A advogada lembra que o indigenista assassinado Bruno Pereira fazia parte dessa coordenação. Pereira e o jornalista Dom Phillips estavam em viagem de trabalho no Vale do Javari, no Amazonas, quando foram mortos a tiros, em junho de 2022.
Passos da demarcação
A primeira etapa da demarcação inclui identificação e delimitação e é feita pela Funai. Esse estudo é chamado de Relatório Circunstanciado de identificação e Delimitação, conhecido como RCID. O RCID é feito de forma interdisciplinar envolvendo a parte histórica, ambiental, georreferenciamento o levantamento fundiário, e é coordenado por um antropólogo, técnicos que devem preferencialmente pertencer ao quadro da Fundação. Quando esse relatório é terminado, ele tem o resumo publicado no Diário Oficial da União com despacho do presidente da Fundação. Nesse resumo constam os resultados do estudo e os limites sugeridos. Após a
publicação, as pessoas físicas ou jurídicas que forem citadas têm 90 dias para contestar as informações. Na sequência, o ministro da Justiça deve definir os limites da área ou reprovar a demarcação. Caso o processo seja aceito, a Funai realiza a demarcação física da terra. O próximo passo é a homologação feita pela presidência da República e, por fim, é feito o registro no cartório de imóveis e na Secretaria de Patrimônio da União (SPU).
Na prática, os gargalos começam na largada. “Existem terras indígenas que ficaram mais de 20 anos só na primeira etapa”, conta Santana. A dificuldade inicial é a proibição da entrada de funcionários da Funai por parte de moradores. “Não deixar o poder público entrar para fazer o estudo é muito comum, porque as terras indígenas têm várias propriedades que incidem sobre elas. Aí começa uma briga judicial para que a Funai consiga uma autorização para entrar”, relata. Mais à frente, continua Santana, há a pressão política. “A demarcação da terra indígena tem três atos normativos: o primeiro é o despacho do presidente da Funai, o segundo é a portaria declaratória do ministro da Justiça e o terceiro é o decreto de homologação do presidente da República. Então, a depender, o gargalo político pode incidir nessas três etapas, ou nas três. Isso depende muito das forças políticas que vão estar em cada momento”.
* Esta matéria faz parte da edição 87 da Revista Poli, publicada em janeiro de 2023. Baixe aqui.