O século XX assistiu a um desenvolvimento acelerado dos meios de comunicação, bem como sua rápida popularização e disseminação pelo planeta. Ao mesmo tempo em que se dava esse desenvolvimento, crescia o coro de vozes que viam no emprego da tecnologia nos processos de produção cultural um caminho para a democratização do conhecimento e para a emancipação do indivíduo. Em meio à euforia causada pelo potencial comunicativo de tecnologias como o cinema e a televisão, existiam, porém, aqueles que apresentavam postura mais cética frente a esse processo. Uma das respostas veio na forma do conceito de indústria cultural, elaborado pelos filósofos alemães Theodor Adorno e Max Horkheimer.
Cultura como estratégia de dominação
O objeto de estudo desses autores eram os produtos culturais que, após o desenvolvimento das técnicas modernas de reprodução, passaram a fazer parte do cotidiano de cada vez mais pessoas. A expressão ‘indústria cultural’ foi utilizada pela primeira vez no livro Dialética do Esclarecimento, escrito por Adorno e Horkheimer e publicado em 1947. No artigo ‘A atualidade da crítica de Adorno à indústria cultural’, o professor da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) Rafael Cordeiro Silva explica que a obra buscou fazer uma leitura filosófica do Iluminismo , contrapondo-se à concepção de história como progresso contínuo. Os iluministas, segundo Silva, entendiam que a razão levaria ao desenvolvimento da espécie humana, através das conquistas materiais, que assegurariam, por exemplo, maior domínio sobre a natureza. Adorno e Horkheimer defendiam, contudo, que o aspecto emancipatório da razão foi deixado em segundo plano em favor da razão instrumental, que buscava o domínio técnico-científico da natureza, incluindo a natureza interior do homem e do mundo social.
A indústria cultural seria produto dessa razão instrumental.“Isso começa no século XVIII, com a produção em série e a comercialização da literatura, e no século XX se amplia com as novas expressões culturais, como o cinema, o rádio e a televisão”, explica Bruno Campanella, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF).“A cultura passou a ser produzida e distribuída de maneira a atingir o maior número possível de pessoas, adquirindo um caráter massificador, que acabou por naturalizar a visão de mundo das elites”, diz. A ideia é que, numa lógica de mercado, a cultura também vira mercadoria e estratégia de controle. Sabe esses cantores e bandas que parecem todos iguais, reproduzindo um certo padrão de música que ‘deu certo’ comercialmente? Ou então aquelas telenovelas que parecem seguir a mesma fórmula, sendo esteticamente parecidas e tendo sempre a mesma estrutura, os mesmos tipos de personagens e até o mesmo final feliz? Ou ainda revistas que impõem a seus leitores, veladamente, um certo modelo de consumo e comportamento? Esses são típicos produtos da indústria cultural, que padroniza as expressões artísticas para que elas possam ser facilmente reproduzidas e comercializadas. E essas ‘mercadorias’ são importantes tanto para gerar lucros como para disseminar determinadas crenças e formas de se comportar. Por isso, em geral deixam pouco espaço para que o consumidor reflita sobre o que está vendo, ouvindo ou lendo. A ideia de indústria cultural, portanto, tenta um diálogo com o pensamento marxista. “Esse conceito busca refletir sobre as implicações que a base material do sistema capitalista – ou seja, o controle dos meios de produção pelas elites –, teriam na conformação da ideologia”, diz Campanella.
Segundo Manoel Dourado Bastos, professor de Sociologia da Arte na Universidade Estadual de Santa Catarina (Udesc), no entanto, para entender o conceito de indústria cultural, é preciso entender o contexto histórico em que ele foi elaborado. “Entre as décadas de 1930 e 1940, Adorno e Horkheimer confrontaram-se com a ascensão do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, bem como do stalinismo na União Soviética”, afirma Bastos. Os filósofos constataram que tanto a derrota da nazifascismo na 2ª Guerra Mundial quanto a revolução proletária na Rússia não trouxeram o fim da dominação do homem pelo homem. “Fugindo do nazismo, os autores foram para os Estados Unidos, onde caíram em Los Angeles, o olho do furacão da produção cinematográfica norte-americana. O país estava em plena fase de consolidação do capitalismo monopolista, com a lógica da produção em série do fordismo”, diz. Trazida para o campo da cultura, essa lógica de articulação mercadológica entre cultura, arte e diversão passou a legitimar o modo de produção capitalista também nos momentos de lazer da classe trabalhadora. Daí a frase de Adorno, de que a “diversão é o prolongamento do trabalho no capitalismo tardio”.
Massificação
Campanella destaca que, na visão de Adorno e Horkheimer, com a produção em série de cultura e sua transformação em mercadoria para ser comercializada visando ao lucro, a produção cultural perdeu o seu valor como forma de expressão. E isso se manifesta, de acordo com o artigo de Rafael Cordeiro Silva, por exemplo, na distinção entre a alta cultura, como a música erudita, e a baixa cultura, produzida pela indústria cultural: “A obra de arte burguesa autônoma, em específico a música, teve sempre a consciência de que não era acessível às massas. Mas nem por isso ela sacrificou sua pretensão em favor de uma audição facilitada [...] Dessa forma, a música ‘séria’ denunciava indiretamente a falsidade da organização social dos homens”. Para o intelectual alemão, explica Silva, a obra de arte “autêntica” estabelece com seu apreciador uma relação que requer “atenção, concentração, esforço e compreensão”. “Por sua vez”, escreve, “os produtos da indústria cultural dispensam qualquer um desses aspectos. Tudo está desde já preparado para que o consumidor não precise utilizar suas faculdades mentais. Tudo é previsível: a maneira como o filme terminará, como uma determinada canção de sucesso desenvolverá seu tema”.
Para professora da UFF Ana Lucia Enne, a divisão da cultura em níveis realizada por Adorno é simplificadora. “Prefiro entender que essa divisão empobrece e simplifica algo muito mais complexo, que é a própria cultura, com sua diversidade e multiplicidade de sujeitos, produtos, ações e intenções. Isso ajuda a quebrar essa construção hierárquica e compartimentada entre níveis de cultura”, diz. Ela contesta a tese de que a indústria cultural esvazia as disputas políticas no campo da cultura, citando a cultura popular. “Para mim, cultura popular compreende formas de produção, material e simbólica, de atores sociais à margem de uma cultura ‘oficial’, quase sempre ligados a lugares de periferia e à marginalidade. Neste sentido, a cultura acaba funcionando como importante instrumento para a luta política, para a afirmação de identidades e visões de mundo muitas vezes não incorporados por uma cultura elitizada”, diz.
Indústria cultural e hegemonia
De acordo com Manoel Dourado Bastos, o pensador marxista italiano Antonio Gramsci deu uma contribuição importante para a compreensão da indústria cultural, por meio do conceito de hegemonia. “Gramsci estava interessado em reconhecer os mecanismos de relação entre coerção e consenso no capitalismo. Com o conceito de hegemonia, ele apresentou a ideia dos momentos em que o capitalismo se consolida não pela coerção física, mas sim pela aceitação das classes subalternizadas. Nesse processo é que atuam os aparelhos de hegemonia, como a indústria cultural” diz. É por meio da hegemonia, diz o professor, que os valores da classe dominante são elevados ao status de consenso. “Gramsci, assim como Marx, entende que a ideologia dominante é a da classe dominante. Mas o detalhe é que essa ideologia dominante, no capitalismo, incorpora elementos das classes populares”, aponta. Para o professor, a indústria cultural faz exatamente isso, incorporando conteúdos aparentemente contestadores apenas para produzir o consenso nas classes subalternizadas em torno do poder do capital. Exemplo categórico disso, afirma Manoel, está na mercantilização da figura de Che Guevara, reproduzido à exaustão em camisetas. “A indústria cultural não só inculca ideias. Ela é a forma da alienação de sua época, ou seja, da dificuldade da aquisição da consciência de classes, já que os trabalhadores não se reconhecem como produtores da cultura”.
Segundo Bastos, os produtos da indústria cultural não são necessariamente de má qualidade. “Um dos nomes moralistas que costumamos dar para eles é ‘lixo cultural’, mas a indústria cultural faz produtos de boa qualidade do ponto de vista estético, como algumas novelas”, diz Bastos. Ele cita a novela ‘Cordel Encantado’, da Rede Globo. “Ela era muito bem-feita, mas ainda assim homogeneizadora, incorporando elementos da cultura popular do Nordeste, como o cordel, de modo a forjar uma integração entre as classes sociais” diz.
Atualidade
Segundo Bruno Campanella, o pessimismo de Adorno frente ao potencial dos meios de comunicação foi alvo de críticas ao longo do tempo. A partir dos anos 1990, com o desenvolvimento das mídias digitais e da internet, essas críticas se renovaram. “Hoje argumenta-se que com a internet ficou mais fácil a circulação de ideias”, diz. Mas ele ressalta que as razões para aquele ‘pessimismo’ continuam atuais: “As ideias que circulam ainda são produzidas por grandes grupos econômicos. A atualidade da crítica de Adorno está no entendimento de que sempre que olhamos a cultura, novas mídias, novas maneiras de produzir arte, não podemos deixar de lado os interesses econômicos que estão movendo essa produção”, defende.