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Interculturalidade

Ao lado de ideias como liberdade, universalidade, independência e transparência, todas familiares às democracias modernas, na Constituição Federal da Bolívia e do Equador, aparece, ao longo de todo o texto, o princípio da interculturalidade. Não é por acaso que esse termo ganha destaque em textos constitucionais recentes, de países com grandes populações indígenas que, nos últimos anos, têm buscado uma maior participação social. Interculturalidade é, no entanto, um conceito polêmico. E, segundo alguns estudiosos do tema, ganha contornos diferentes quando aparece como reivindicação dos movimentos sociais e como política de Estado.
EPSJV - EPSJV/Fiocruz | 01/07/2011 10h22 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Ao lado de ideias como liberdade, universalidade, independência e transparência, todas familiares às democracias modernas, na Constituição Federal da Bolívia e do Equador, aparece, ao longo de todo o texto, o princípio da interculturalidade. Não é por acaso que esse termo ganha destaque em textos constitucionais recentes, de países com grandes populações indígenas que, nos últimos anos, têm buscado uma maior participação social. Interculturalidade é, no entanto, um conceito polêmico. E, segundo alguns estudiosos do tema, ganha contornos diferentes quando aparece como reivindicação dos movimentos sociais e como política de Estado.

Interculturalidade e multiculturalismo

A ideia de interculturalidade é comumente associada a outros conceitos, como diversidade cultural e, principalmente, multiculturalismo. Esses dois aparentes sinônimos são, inclusive, tratados como partes de uma mesma definição no verbete escrito por Vladimir Safatle no livro ‘Palavras-chave’, de Raymond Williams. Segundo ele, o multiculturalismo diz respeito a “uma lógica de ação política baseada no reconhecimento institucionalizado da diversidade cultural própria às sociedades multirraciais ou às sociedades compostas por comunidades linguísticas distintas”. E o autor completa, destacando aquela que é uma das críticas mais recorrentes a essas abordagens: “Isso implica transformar o problema da tolerância à diversidade cultural, ou seja, o problema do reconhecimento de identidades culturais, no problema político fundamental”.

Para alguns estudiosos e militantes dessa área, no entanto, essas são exatamente algumas das limitações que tornam necessário um outro conceito — o de interculturalidade. “O reconhecimento e a tolerância com os outros que o paradigma multicultural promete não só mantêm a permanência da iniquidade social como deixam intactas as estruturas sociais e institucionais que constroem, reproduzem e mantêm essas iniquidades”, explica Catherine Walsh, professora da Universidade Andina Simon Bolívar, do Equador, no artigo ‘Interculturalidad y colonialidad del poder’.

Segundo essa autora, uma diferença fundamental entre os dois conceitos é que a ideia de multiculturalismo foi elaborada pelos “de cima” e, portanto, está ligada à manutenção dos centros de poder. Já o conceito de interculturalidade, diz, foi desenvolvido nas lutas sociais, por grupos subalternizados, como os movimentos indígenas e afrodescendentes. “A interculturalidade tal como é concebida pelo movimento indígena introduz o jogo da diferença colonial, que o conceito de multiculturalidade esconde”, explica, no artigo. Referindo-se aos movimentos sociais do Equador, onde, segundo ela, essa concepção transformadora do conceito se desenvolveu mais do que nos outros países da América Latina, a autora explica que a ideia de interculturalidade questiona não só o colonialismo (que, embora presente, tem suas origens no passado) como também o imperialismo atual. “A interculturalidade assinala uma política cultural e um pensamento de oposição não baseados simplesmente no reconhecimento ou na inclusão, mas também dirigidos a uma transformação estrutural e sócio-histórica”, explica o texto. E resume: “Uma política e um pensamento voltados para a construção de uma proposta alternativa de civilização e sociedade”.

A própria autora, no entanto, destaca que também o conceito de interculturalidade tem sido apropriado e “cooptado” pelo discurso de Estado e de organismos internacionais, como o Banco Mundial. Ela cita como exemplos as reformas educacionais desenvolvidas no Peru, na Bolívia e no Equador na década de 1990, que, embora tenham incluído a interculturalidade como “critério transversal” do ensino, teriam produzido apenas resultados superficiais. O tema, segundo ela, permaneceu marginal em sala de aula; na formação dos professores, ganhou, no máximo, um “tratamento antropológico da tradição folclórica”; e, nos livros didáticos, passou a aparecer de forma estereotipada, reforçando o que Catherine chama de “processos coloniais de racialização”. Ela destaca, portanto, que a ideia de interculturalidade que nasce dos movimentos sociais segue uma “lógica radicalmente distinta da que orienta as políticas de diversidade estatais”, exatamente porque “não busca a inclusão no Estado-nação estabelecido”. Reivindica, ao contrário, uma outra sociedade, em que “a diferença não seja aditiva, mas sim constitutiva”.

Educação e diferença

Refletindo sobre o campo educacional, Reinaldo Fleuri, professor da Universidade Federal de Santa Catarina e presidente da Association pour la recherche interculturelle (Aric), explica que é difícil reduzir a noção de interculturalidade a uma noção geral. “Esse é um conceito complexo e polissêmico. E representa propostas, concepções e projetos políticos pedagógicos muito diferentes”, diz. Ele enumera três diferentes abordagens desse conceito na educação. A primeira é aquela que busca desenvolver nos estudantes a capacidade de viajar, conhecer e interagir com outras culturas visando sua melhor inserção no mercado de trabalho. “Esse é um conceito muito inserido na perspectiva da internacionalização, ligado às regras e aos processos da sociedade industrial capitalista e muito funcional à lógica econômica vigente”, explica. Outra forma de se compreender a interculturalidade na educação é, de acordo com Fleuri, numa abordagem mais “culturalista” ou “pessoal”. “Essa concepção envolve o entendimento entre pessoas diferentes sem considerar muito a importância e a força das relações históricas, econômicas e políticas, que promovem muitas vezes os dispositivos de sujeição e de dominação entre os povos”, critica. E completa: “Muitas vezes, ela acaba por produzir a sujeição mais do que a autonomia”. Uma terceira definição, mais adequada segundo ele, é aquela que visa “potencializar o desenvolvimento de propostas dos diferentes povos ancestrais que constituem a realidade social e cultural das Américas”. Essa é uma perspectiva, de acordo com Fleuri, mais próxima da atuação dos movimentos sociais de países como Bolívia, Equador e Venezuela, cuja luta é, nas palavras do professor, pela “reconfiguração de toda a organização política e do Estado”.

Carlos Eduardo Batistella, professor-pesquisador da Escola Politécnica de saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), que tem estudado esse tema associado à construção de currículos, ressalta a necessidade de se superar a “perspectiva monocultural”, que, segundo ele, acaba produzindo a invisibilidade das desigualdades e diferenças na sala de aula. “As práticas pedagógicas devem favorecer o reconhecimento das identidades culturais, sejam elas ligadas à classe, etnia, nação, origens regionais e comunitárias, religião, e até mesmo, no caso da educação profissional, à cultura institucional e a grupos profissionais”, defende.

Reinaldo Fleuri destaca ainda a necessidade de que a interculturalidade esteja baseada numa política da diferença e não apenas da diversidade. “As políticas de diversidade pressupõem que você possa categorizar os diferentes públicos socioculturais a partir de alguns padrões mais ou menos gerais. Categorizamos diferentes grupos étnicos por suas características genéricas e enquadramos os indivíduos nessas categorias. Já as políticas da diferença consideram que as diferenças se constituem na interação viva entre as próprias pessoas, os próprios grupos. E que, nesse jogo de forças, cada um vai se constituindo, se posicionando, propondo contrapontos, interagindo com todos. Vão se configurando processos de identificação e, portanto, de diferenciação”, explica.

Cultura e relações sociais

Nomenclaturas à parte, uma crítica comum que pensadores e militantes de esquerda fazem a ideias como interculturalidade, multiculturalismo e diversidade cultural é que elas privilegiam a cultura na análise da desigualdade, ignorando, muitas vezes, as relações econômicas próprias das sociedades de classes. Em entrevista publicada no livro ‘Em defesa da história’, Aijaz Ahmad, professor e pesquisador do Centro de Estudos Contemporâneos do Nehru Memorial Museum and Library, de Nova Delhi, resume o questionamento: “Essas definições tendem a privilegiar a ideia de cultura como um sistema que confere significado, suspendendo a ideia do enraizamento da cultura na vida material. Tendem a enfatizar a separação de culturas dentro de espaços nacionais e a privilegiar a etnicidade na constituição de cada cultura”.

Mas nem todo mundo concorda que essas sejam abordagens opostas. “Em primeiro lugar, penso ser impossível reduzir a complexidade das relações sociais à determinação material. Por outro lado, parece-me desaconselhável analisá-las fora deste contexto, como parte dos teóricos pós-críticos vem fazendo”, alerta Carlos Eduardo Batistella, professor-pesquisador da Escola Politécnica de saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), que tem estudado esse tema associado à construção de currículos, essa não é necessariamente uma oposição. Segundo ele, esse campo tem mostrado que é possível uma outra “leitura” do cultural. “Afastando-se de posições que fixam distinções entre cultura, economia e política, busca-se entender o cultural refuncionalizado como mercadoria, rearticulando sua dimensão política”, diz. E completa, fazendo referência mais direta aos processos educativos: “Não vejo o movimento de valorização da cultura como antagônico à análise histórico-crítica. Assumir a centralidade da cultura na análise contemporânea deve significar, para além da luta pela ampliação do acesso aos conhecimentos e à cultura sistematizados pela humanidade, perceber o caráter histórico e construído desses conhecimentos, colocando novos e importantes temas em pauta, como as tensões entre universalismo e particularismo e as relações entre saber e poder”.

Curiosidade:

Ao contrário do que se pode imaginar, a preocupação com a diversidade de culturas não é uma originalidade latino-americana nem indígena. Segundo Vladimir Safatle, no livro ‘Palavras-chave’, de Raymond Williams, a ideia de multiculturalismo, por exemplo, nasceu na Suiça, em 1957, e se tornou política pública pela primeira vez no Canadá, no começo da década de 1970. O desafio, na época, era dar conta da dupla influência inglesa e francesa e do aumento da imigração no país.


Leia mais:

Constitución Politica de Bolivia, 2009.
Constitución del Ecuador, 2008.
El concepto de Sumak Kawsai(buen vivir) y su correspondencia con el bien comum de la humanidad. Francçois Houtart, 2011. (Disponible em: http://justiciaypazcolombia.com/El-concepto-de-Sumak-Kawsay-buen)
Interculturalidad, descolonización Del estado y Del conocimiento. Catherine Walsh, Álvaro Garcia Linera e Walter Mignolo. Ediciones del signo, 2006.

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