Ao longo das últimas décadas, a proteção ao meio ambiente vem se tornando um tema que parece aglutinar em torno de uma pauta comum os mais variados atores sociais: empresas, ONGs, governos, todos, de alguma forma, adotam uma retórica “verde” na construção de suas ações e na defesa de sua legitimidade. Com a Rio+20 então, o debate ambiental ganhou grandes proporções, reunindo chefes de Estado, pesquisadores, representantes do setor privado e de organizações da sociedade civil para discutir como aliar crescimento econômico com a proteção do meio ambiente. Enquanto isso, na Cúpula dos Povos, movimentos sociais, indígenas e militantes de todo o mundo se reuniam para debater propostas alternativas. Mas será que “proteger o meio ambiente” significa a mesma coisa para uma empresa como, digamos, a Votorantim, e para uma organização como a Via Campesina, por exemplo?
Para aqueles que procuram adotar uma abordagem crítica acerca do que significa meio ambiente e das estratégias empregadas pelos diferentes atores sociais em sua defesa, a resposta é não. Entender as diferentes maneiras com que os grupos humanos interagem com o ambiente em que vivem é fundamental para compreender que o próprio conceito de meio ambiente é um termo em disputa, e que, ao contrário do que o discurso ambientalista que emerge da Rio+20 faz parecer, proteger o meio ambiente não implica apenas em reduzir a emissão de gases de efeito estufa e racionalizar o uso de recursos naturais finitos nos processos de produção capitalistas.
Indissociabilidade entre natureza e sociedade
O geógrafo Paulo Alentejano, professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), explica: “Meio ambiente não é apenas aquilo que existe como meio natural, é o resultado dessa relação entre sociedade e natureza em dada configuração histórica, espacial, etc. Então quando falamos em meio ambiente estamos falando das condições naturais, mas também daquilo que é produzido pela sociedade a partir dessa relação com a natureza”. No seu entender, o termo meio ambiente só faz sentido a partir de uma análise que liga sociedade e natureza de forma indissociável. “Isso quer dizer que não existe um meio natural totalmente isolado da forma como as sociedades se apropriam dele e cada sociedade tem uma forma de se relacionar com a natureza que vai resultar em um ambiente diferente. O meio ambiente é o resultado dessa apropriação que a sociedade faz desses bens naturais”, diz Paulo.
Para Alentejano, na sociedade moderna ocidental, contudo, natureza e sociedade são vistas como dois domínios separados. Essa separação, segundo ele, não nasce com o sistema capitalista. “Essa ideia de que a natureza deve estar a serviço do homem vem dos gregos, está em Platão, Aristóteles, atravessa toda a teologia católica de São Tomás de Aquino, Santo Agostinho. Há uma tradição forte de pensar na natureza a serviço do homem, o ser supremo ao qual a natureza deve servir”, diz. Segundo Alentejano, o que o capitalismo intensifica é o processo de transformação da natureza em mercadoria, que se expressa de maneira categórica com a ideia de economia verde. “O que norteou o processo de produção da Rio+20 foi uma visão de meio ambiente construída a partir da lógica do capital, o que predominava era uma forma de entender o meio ambiente e a natureza como algo que tem que ser apropriado de uma forma que gere lucro”.
Para a antropóloga Andrea Zhouri, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a separação entre natureza e sociedade tem na adoção da máxima de Descartes “penso, logo existo” como a principal característica humana um de seus momentos simbólicos fundantes. “Aí se instaura uma cosmovisão que tem na razão o elemento característico do humano, que o define enquanto tal e que o separa da natureza. É um distinguir que se constrói em uma hierarquização, uma ordem hierárquica que coloca o humano como a forma mais complexa de ser devido a razão”, explica.
Natureza para ser explorada ou para ser cuidada?
Segundo Andrea, essa separação está na origem de duas posições antagônicas: o discurso capitalista que vê no meio ambiente um entrave para o desenvolvimento, e o ambientalismo que ela chama de global. “De um lado há uma posição que tem no ambiente um objeto de conquista e dominação, do qual a sociedade industrial capitalista é o exemplo maior, que tem na natureza um domínio a ser conquistado, administrado, gerido, consumido. De outro lado, há um discurso que foi sendo construído de oposição a essa visão, mas que tem a mesma raiz, que é o discurso ambientalista global, em que o ambiente aparece como o planeta, como algo a ser cuidado, com atitudes positivas de solidariedade”, diz a antropóloga, complementando em seguida: “Ironicamente, as duas posições partem de uma mesma raiz que é a dicotomia primeira entre natureza e sociedade. Daí o discurso global ascender hierarquicamente sobre os outros discursos ambientais que são mais centrados no lugar de viver das pessoas”. Por isso, diz ela, esse discurso ambientalista global deve ser visto com cautela. “Essas visões globais, tanto as capitalísticas quanto as ambientalistas, se hierarquizam no ocultamento ou subjugação de olhares mais locais, mais centrados nas experiências de viver do sujeito. Se por um lado não podemos deixar de pensar em uma dimensão um pouco mais ampla, planetária, por outro lado não podemos permitir que essa ênfase na perspectiva mais global obscureça os espaços de viver, senão ela se torna também uma visão colonizadora. Se o global é o mais importante, ela acaba colonizando e através dessa visão você justifica ações que negam as existências localizadas” avalia.
Paulo Alentejano dá um exemplo concreto de um problema advindo da adoção dessa visão global de meio ambiente à qual Andrea se refere. Segundo ele, muitas das licenças ambientais que estão sendo concedidas atualmente no Brasil para empreendimentos que causam grandes impactos ambientais têm na ideia de compensação ambiental um de seus alicerces. “Aqui no Rio de Janeiro temos vários exemplos, como o Comperj [Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro] e a TKCSA, que são exemplos brutais de empreendimentos que causam poluição intensa, devastação de manguezais, mas que são autorizados a operar sob o argumento de que há medidas compensadoras que vão mitigar esses impactos. Aí se diz que, para combater o aquecimento global, o Comperj vai plantar não sei quantas mudas de árvores em outro lugar, e em nome disso se pode destruir o que resta de manguezal na baía de Guanabara”, protesta.
Para Andrea Zhouri, os conflitos em torno dos impactos das barragens para produção de energia elétrica são exemplos emblemáticos das disputas entre diferentes grupos sociais acerca do significado de meio ambiente. “Um barramento é um exemplo dessa visão de conquista, de domínio da natureza, algo que interrompe, que não entra em sintonia com os fluxos da natureza, mas se impõe e que muda e transforma à revelia das interações humanas e não humanas ali”, afirma. Do outro lado, complementa Andrea, estão as populações ribeirinhas diretamente afetadas. “Essas populações estão ali, são parte dessa movimentação, fazem parte do ambiente, constroem a sua cultura com esse ambiente e a partir dele. O que acontece é que o rio é um ambiente que tem significações diversas para esse grupo: é no rio que se lava roupa, se lavam utensílios, se toma banho, se diverte, pesca, tira areia, pedras para construção. Em muitos casos, a agricultura que eles praticam depende do fluxo do rio. Tudo isso acaba sendo reduzido a uma dimensão única que é a geração de energia elétrica através de um barramento”.
Recursos naturais
Andrea critica a retórica ambiental capitalista que atribui ao meio ambiente um sentido único: o de “recurso natural”. “Meio ambiente não é algo a ser apropriado para fins de determinados tipos de produção com vistas à acumulação de riqueza. Dizer que natureza e sociedade são indissociáveis implica dizer que o planejamento econômico não pode se dar a partir de metas matemáticas, de porcentagens de crescimento sem a devida consideração operacional prática das condições ecológicas, sociais e culturais dos lugares. É de fato considerar o ambiente como lugar prenhe de significações, de relações sociais. Incorporar de fato os sujeitos nos ambientes é considerar projetos de desenvolvimento muito diferenciados, aspirações, a diversidade cultural, as formas de viver, fazer e ser nos diferentes ambientes”, aponta a antropóloga.
Quando se fala em superação dessa lógica de dominação da natureza, frequentemente se faz referência à maneira com que os povos indígenas e camponeses se relacionam com a natureza. Para Paulo Alentejano, as práticas dos indígenas e camponeses servem não como caminhos prontos a serem seguidos, mas como exemplos de sociedades que têm algo a ensinar nessa área. “Essas populações guardam ainda formas de convívio com a natureza menos destrutivas do que a forma como o capitalismo desenvolveu. Elas são nesse sentido exemplos da possibilidade de se ter uma relação não destruidora com a natureza, mas é evidente que não é possível pensar na reprodução desse modo de vida de forma absoluta. Elas tem que ser estudadas em uma lógica de pensar o futuro a partir dessas experiências que existem hoje, como formas de pensar um mundo que não seja esse que está provocando essa enorme destruição da natureza, exploração do trabalho e degradação das condições de vida”,diz Alentejano.